10/25/2017

Iaras paraenses (Conto), de Marques de Carvalho


Iaras paraenses
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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No copiar da chácara, aquela noite, haviam-se reunido alguns vizinhos do Comendador Esteves, o principal proprietário do Pinheiro.
Redes fechavam os ângulos, pendentes dos esteios. Era uma roda de homens. Todos balouçavam-se, acalorados, aguardando o açaí que nesse momento a mulata Josefa amassava na cozinha.
O luar de agosto penetrava em diagonal, diáfano, trazendo toda a melancolia profundíssima das incomparáveis noites equatoriais. Da mata pouco distante, lavada de luar, vinha o monótono arruído dos insetos noturnos, o alarido dos cururus teimosos. Na gaiola pendente do teto sem forro, um caraxué silvava. E do rio, que corria ali perto, ao fundo da ribanceira, subiam com a brisa refrigerante os rumores dos barcos de pesca fazendo-se ao largo, para a foz.
Fumava-se, conversava-se. Haviam já discutido os negócios do dia, na capital. Esteves encetara mesmo um poucochinho de política. Português de nascimento, não queria imiscuir-se em assuntos partidários; mas tinha por eles sua predileção e nunca deixava de externar uma ou outra opinião, sempre muito conservador e ordeiro.
Nessa tarde, viera com ele passar a noite na rocinha o velho Barriga, seu aviado do alto Xingu. Era um caboclo adiposo, de ventre proeminente e face larga. Aparência insignificante, matreirice inata: o tipo comum do seringueiro indígena. Trouxera a mulher, que já estava recolhida ao quarto destinado ao casal.
Achava-se também pressente o subdelegado Fonseca, antigo solicitador dos auditórios, agora enviado ao Pinheiro a fim de preparar recursos para uma eleição próxima. Era esta a sua especialidade, ao que parecia. Em todo o caso, rendia mais do que a primitiva profissão. Um presidente vindo da Corte não tivera extraordinária dificuldade para convencê-lo disto.
Mas a palestra veio naturalmente a versar sobre assuntos do sertão. A um quint'anista de direito, que vilegiaturava todo o ano, explicara já o Barriga a pesca do pirarucu e o preparo da grude de gurijuba. O quint'anista era, neste ponto, de uma ignorância absoluta: não admirava a sua curiosidade.
Os demais circunstantes escutavam num silêncio discreto, bocejando. Nas intercadências da narrativa, apenas se ouvia o ranger das escápulas pelo movimento das redes e o farfalhar dos galhos, mata fora.
Uma voz reclamou um conto indígena, uma lenda amazônica. Não compreendeu a frase o Barriga. Quedara-se a olhar o interlocutor, cortado.
— Historias de boto, do curupira, da mãe d'água, — explicou o subdelegado.
— Han! — rosnou o caboclo. Tudo isso é mentira, acredite!
— Como! Pois o senhor atreve-se a negar o que todos no sertão asseguram ser verdade evidentíssima?
Sorriu o velho, superiormente. Tinha no rosto uma profunda piedade, pela boa fé do cidadão. Ergueu-se, afivelou o cós da calça e, espreitando para o lado do quarto da mulher, congregou os companheiros em círculo diminuto. Estava transfigurado: era um filósofo estoico.
— Vocês ouviram já falar em iaras, não? — perguntou. Pois é tudo mentira também.
E abaixando a voz:
— Só há uma espécie de iaras, — prosseguiu. Essas, porém, não vivem no fundo dos rios da minha terra, estão, aí, na cidade; vi hoje à tarde uma porção, quando fui com seu Esteves tomar o vapor. São as mulatinhas cheirosas a periperioca e jasmins, sabem? as verdadeiras iaras encantadas. Mas precisamente não é para o abismo das águas que arrastam a gente!...
— Seu Barriga, venha dormir! — gritou no outro extremo do copiar a encanecida e rotunda esposa do velho caboclo do Xingu.

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