Mater Dolorosa
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Antemanhã.
O vapor seguia rio
acima, bem perto da margem, tão perto que, às vezes, as ramarias sussurrantes
da floresta roçavam na coberta, estendiam galhos sombrios por de sobre a borda.
Ainda não haviam
despertado as aves. O rio estava ali muito sossegado, refletindo o matagal,
banhando os aningais aveludados. Não começara o arruído de pássaros com
que a alvorada é recebida, mas persistiam, contudo, os derradeiros murmúrios
dos animais e insetos notívagos.
A bordo mesmo, à ré,
tudo parecia descansar ainda.
Só o compassado
resfolegar da máquina denunciava que alguns entes velavam a meia-nau, atentos
aos avisos do prático de quarto.
Ao nascente, começava
a desenhar-se uma tênue claridade, — o início do fugaz crepúsculo amazônico. A
sombria noite diluía o negrume num suave frouxel cinzento, muito mal esboçado,
indeciso quase. Estavam longe as meias tintas cor de pérola e lírio,
precursoras das tonalidades rosadas e azuis, que a seu turno precedem as estridências
rubras e alaranjadas, em breve esbatidas na tranquilidade definitiva
dos aspetos mais claros do dia adiantado.
Ia amanhecer.
Em uma porta de
camarote, à popa, assomara um vulto sombrio de mulher. Esteve ali um momento.
Logo encaminhou-se à borda, perscrutando a escuridão, por um lado, por outro,
atentamente.
Aquele vulto vestia
um trajo simples, de rigoroso luto.
Saudou-o da mata um
silvo de pássaro, — a primeira manifestação do despertar das aves.
O ambiente reacendia.
Vinham da floresta virgem aromas capitosos de cumaru e baunilhas. Pelos cipós
que desciam dos galhos, formando emaranhamentos caprichosos, deviam escorrer as
preciosas resinas que trescalavam tão fortes eflúvios.
A mulher inspirou
com força. Queria banhar os pulmões naquela olência. Em seguida, suspirou
um suspiro triste; suspiro de viúva? suspiro de mãe inconsolável?
Clareara um pouco
mais. Já se percebia todo o labirinto de braços folhudos que as árvores
estendiam no ar, em contorções. Uma suavidade paradisíaca se difundia na meia
tinta da luz crepuscular. Era quase sol nado. Os passarinhos já haviam encetado
o canoro certame, volitavam céleres. À beira-rio, nenúfares ostentavam-se
opulentos por de sobre as polposas folhas que pareciam caprichos de escultura
em mármore verde. Mil florezinhas silvestres salpicavam a vegetação das
margens, sem nenhum acanhamento de uma ou outra vitória-régia que se dignava
mostrar-se entre os mássicos dos mururés, os quais recebiam da correnteza
um brando movimento de balouço. E, de um a outro lado do rio, eram grandes
bandos altíssimos de aves aquáticas, — patos grasnadores, pavõezinhos
gemebundos, garças, cegonhas, toda a migração alada dos desertos amazônicos.
Estava ali a natureza intacta, no seu inalterado aspeto milionário, tal como a
viram os primeiros habitantes, as tribos lacustres que foram as raças
autóctones.
O vapor seguia sempre
adiante, rente a terra, na mesma monotonia. Aquela ascensão parecia o
desvirginamento de um éden.
Iniciou-se a bordo a
tarefa quotidiana. Alguns marinheiros apareceram trazendo baldes, desdobrando
mangas para irrigação. Rompeu a súbitas o sol, por além das matas, num
deslumbramento.
Fugiu veloz para o
camarote a madrugadora passageira.
***
Horas mais tarde, o
comandante atravessou o tombadilho, foi bater-lhe à porta. Seguiam-no três ou
quatro pessoas, que se conservaram a curta distância, dissimulando a custo
grande curiosidade.
Era decerto esperada
a visita, porque, imediatamente, a mulher saiu a recebê-la. Com a luz do dia,
via-se que era uma anciã, de rosto enrugado e fronte encanecida. Não tinha
aquela fisionomia outra expressão que a do mais fundo sofrimento. E os olhos
brilhavam estranhos, muito negros e dilatados, entre longos cílios sedosos.
— Já estamos, —
disse-lhe o comandante.
Ela penetrou de novo
no aposento, mas volveu passado um instante. Trazia uma coroa de saudades, —
uma coroa tosca, evidentemente barata. E, com o sorriso triste, murmurou ao
capitão uma palavra de agradecimento.
Depois, apertando com
as mãos crispadas a humilde coroa sobre o coração, foi ajoelhar-se junto à
borda, suspirando, soluçando, toda desfeita em pranto.
Ali perto, na
floresta, rebrilhavam flores de sonho, — estranhas orquídeas gigantes, catleias
variegadas, osculadas de coleópteros zumbidores. Crescia triunfal o canto dos
passarinhos.
***
O grupo de
passageiros arredara-se, num movimento de involuntário respeito por aquela
sincera dor ignorada. No meio deles, o comandante sentou-se taciturno e
falou:
— Não notam? Estou
emocionado. Há doze anos que vejo, em cada viagem, duas vezes repetir-se este
espetáculo e, no entanto, até aqui me não familiarizei com ele. A prova é que
abala-me ainda, como da vez primeira que a ele assisti. Onde encontrar
explicação para isto? De certo que no imenso impulso dessa dor, na grandeza do
sentimento que a provoca e que há de haver compungido o coração dos senhores
todos, não é verdade?
O grupo teve um
movimento igual de assentimento. Em algumas fisionomias brilhava uma
curiosidade inequívoca. Mas o capitão prosseguia:
— Vou referir-lhes a
causa deste espetáculo com que não contavam certamente os meus amigos.
Esta senhora é a viúva do antigo comerciante C. A., de Belém. O marido possuía
seringais no alto Madeira, administrados por um primo. Raras vazes vinha a
estas paragens: a escala dos seus negócios no Pará impedia-o de visitar a
propriedade, perto da fronteira boliviana.
Tinham um filho
único, — o pequenito Anselmo, — um mimo de criança, que os senhores haviam de
estimar se o vissem, uma só vez bastava. Moreno, olhos negros e vivazes, tinha
na franca fisionomia alegre a manifestação exata de um espírito aberto e
elevado. Simpático a valer, bem educado aos onze anos, todos o queriam
sobremaneira.
Esta criança, um dia,
perdeu o pai. Aquela senhora que ali está em pouco tempo soube que os seus
haveres se achavam reduzidos. Ela, que sempre vivera na abundância, não
teve uma palavra de queixa. Abençoando à memória do eterno ausente, resolveu
retirar-se para o seringal, trabalhar como o último caboclo, a fim de atender à
instrução do pequeno. Para este voltaram-se todos os seus afetos. Quem ignora
aí como sabem amar as doces mães amazônicas?
Dona Maria não tinha
parentes próximos. Empreendeu a viagem sem saudades, neste mesmo vapor. Trazia
consigo o retrato vivo do morto, cuja existência era continuada na louçania dos
onze anos risonhos da criança.
A bordo, corriam
felizes os dias. O Anselmito brincava sem pesares, tinha em cada passageiro um
camarada. E a boa senhora quedava-se horas esquecidas a fitá-lo de longe,
no enlevo da sua alma reflexiva, folheando recordações póstumas, revendo
saudades discretas.
Foi há doze anos. Uma
tarde, não sei que passara ao menino: estava mais brincalhão do que nunca. Ia
por toda a parte, correndo, risonho, amável com toda a gente. De súbito, um
grito ressoou, acompanhado de um brado d'alma, indescritivelmente lancinante!
Olhem, ainda o tenho aqui, a vibrar-me nos ouvidos, esse grito de mãe
desesperada!
O Anselmo cavalgara o
parapeito, num instante de descuido de todos nós e, perdendo o equilíbrio,
rolara para o abismo. Foi além, defronte daquela imensa sapupema. Em breves
minutos lá estaremos. Parou o vapor, desceram escaleres, fez-se inúteis
pesquisas durante vinte e quatro horas seguidas.
O cadáver adorado não
apareceu.
De então para cá — e
quantas viagens tenho eu feito? — a infeliz mãe não deixa o Maissi. O seu afeto retempera-se em
passar incessantemente por sobre o sítio onde as águas caudalosas do Madeira
tragaram aquele corpinho tão frágil e tão querido. De cada vez que por aqui
singramos, dona Maria ajoelha-se lacrimosa e, ao chegar ao lugar fatídico,
arroja piedosamente ao rio uma coroa de saudades artificiais. Não tem aqui
flores naturais, a pobre; mas acaso não são bem viridantes as flores do seu
coração, as tristes flores do pesar eterno?
Nunca mais foi a
terra. O seringal, vendeu-o logo, pela metade do preço. Gasta o dinheiro em
passagens para si, e coroas para o anjinho. Já devem estar bem
reduzidos os capitais da desgraçada. Causa-me isto uma lástima profunda.
Mas atendam...
***
Dona Maria
erguera-se, num impulso desvairado. Levantou por cima da cabeça a mesquinha
coroa toda banhada de sol e arrojou-a à água.
O rio tragou a
fúnebre contribuição, fechou-se murmuroso, em círculos concêntricos. A anciã
tornara a cair genuflexa, soluçante e transfigurada no seu apaixonado desespero.
Em terra, bem à orla
da floresta ancestral, mil aves garrulavam na copa gigante de uma feroz
sapupema secular.
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