10/25/2017

Uma história de amor (Conto), de Marques de Carvalho


Uma história de amor - Documentos humanos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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PRIMEIRA QUINZENA

I
Senhor, —
Não posso atendê-lo. Tenho deveres sagrados a cumprir, uma posição social a zelar. Esqueça-me.
(Sem assinatura).

II
Senhor, —
Julgo-o um cavalheiro e acredito-o sincero, por causa da assiduidade com que me procura. Aceito o seu convite para jantar, — mas somente no intuito de o dissuadir dessa loucura que nunca poderá ser correspondida. Até logo.
ELISA.

III
Simpático amigo, —
Por que insiste? Estimo-o como um camarada, quase como a um irmão. Não posso, entretanto, perdoar-lhe a impertinência: — meu marido nunca será enganado.
ELISA.

SEGUNDA QUINZENA

I
Bom amigo, —
Exatamente como o senhor, estou bastante incomodada por tremenda enxaqueca, que obrigou-me a ficar deitada até agora. A sua amável carta, cheia de frases tão meigas, traz-me certo lenitivo e me dá a energia necessária para tomar a pena. Demais disto, a satisfação de escrever-lhe faz-me esquecer os próprios sofrimentos.
Não me agradeça tanto o serão de ontem, ao jantar. Se o senhor comprazeu-se com a minha companhia, o mesmo aconteceu comigo; não tenho, pois, mérito algum em fazer o que ditam os meus mais caros desejos.
Quanto mais conversamos, mais vou eu descobrindo no meu bom amigo sentimentos e gostos que correspondem aos meus. A surpresa rejubila-me; semelhante analogia de caráter e de ideias é demasiado rara para que eu deixe de admirar-me, sobretudo se encarar as barreiras sociais que nos separam e a diferença de classe a que pertencemos. — A sua cartinha de hoje é uma pequena obra-prima de cariciosas frases. Quero crê-lo, desejo acreditá-lo. Já não posso duvidar do senhor. Julgo-o sincero, porque nada o obriga a ter procedimento igual ao seu. O senhor é demasiado superior de espírito para ligar tanta importância a uma vulgar questão de materialismo. Por consequência, a lógica me compeliu a supô-lo franco em seus sentimentos aparentes. Quanto a mim, entrego-me toda ao senhor, intelectualmente. Juro-lhe que sou sincera, mesmo — e sobretudo — nas minhas ingenuidades.
O senhor é cético, já mo disse; isto é, preveniu-me do trabalho que eu teria para fazer-me acreditar. Não ignoro as prevenções que têm os homens pelos sentimentos afetados. Todas as mulheres são enganadoras, volúveis, mentirosas, mas todas têm, contudo, momentos de real sinceridade. Encontro-me em um desses momentos. E note, meu caro Jorge, que não digo isto para diferençar-me das demais mulheres e tornar-me importante aos seus olhos. Não, porque possuo todos os defeitos acima enumerados. Melhor do que ninguém, sabe-o o senhor, porque estou prestes a enganar o homem com quem vivo. Verdade é que esse homem é um imbecil e que nunca simpatizarei com tal categoria de caráter. Não digo isto para desculpar-me aos meus próprios olhos, pois só me importo com a minha consciência e não com alheias opiniões. Digo-o, sim, à laia de informações a respeito dos meus sentimentos reais, no intuito de fazer-lhe compreender que, do senhor para mim e reciprocamente, deve estabelecer-se uma corrente de escrupulosa sinceridade, pela simples razão de que eu e o Sr. não somos impelidos um para o outro por outro interesse que não seja o nosso capricho, — ou, se mais lhe apraz e para falar mais exatamente, pela espécie de correlação que existe entre os nossos dois espíritos.
Como vê, sou mais franca do que o senhor. É talvez um mal. Por princípio, uma mulher, posto que enamorada, nunca deve revelar inteiramente a sua alma. Eu, porém, tenho-o na conta do mais leal dos homens, do mais generoso dos corações. Serei algum dia despertada cruelmente deste adorável sonho?
Percebo que tenho ainda muitas coisas a dizer-lhe: tomo, pois, outra folha de papel. Há de fazê-lo sorrir tamanha expansão. Que quer? Tenho tantas frases agitando-se-me na cabeça... Enfim, perdoe-me. Desejo que o senhor me conheça bem e saiba completamente o que sou e o que quero.
Não imagina até que ponto aprecio a atenção tão firme mostrada para comigo, vai fazer um mês. Agradeço-lho deveras, porque isto me satisfaz imenso. Lembra-se da carta em que lhe pedia que me esquecesse? Pois bem; hoje tem o meu querido amigo a razão por que lhe dizia essas palavras. Não o conhecia bem e receava afeiçoar-me demasiado a um homem cujas aparências eram as de um aristocrático viveur. — Sinto que hei de amá-lo, que hei de amá-lo talvez mais do que o Sr. deseja e o amor é, às vezes, cruel tirano intransigente e molesto. O senhor agora está prevenido: pode defender-se. Não venha um dia lamentar-se pelo fato de haverem-se tornado demasiado sérios os meus sentimentos.
Tenho o gênio tranquilo. De temperamento frio, dificilmente me entusiasmo. Com respeito a questões graves, nada empreendo sem antes prever os resultados do acaso ou do imprevisto. Nunca foi meu fraco a leviandade. É por isso que faço questão de patentear-lhe a alma da mulher que o senhor tem diante dos olhos e que espero nunca será considerada com volubilidade.
Conhece-me agora, querido amigo. Esta carta é uma confissão: nunca fiz outra igual. Sem falsa vergonha revelo os meus defeitos e fraquezas, sabendo a quem os confio.
Falemos agora de coisas que interessam à vida física. Nada tenho a dizer-lhe sobre o ponto que trata do aposento em questão: aprovo o que fez. Veja que o ninho seja bem discreto, bem misterioso, para esconder perfeitamente a felicidade que vai abrigar.
Até amanhã.
ELISA.

II
Jorge, —
Volto do passeio neste instante com meu marido e encontro a tua carta. Então, meu querido, já estás mau e injusto sem motivo!
Em primeiro lugar, dizes — a senhora, o que, na correspondência, é um matiz bem acentuado de frieza. Não é bonito isso.
Depois, agastas-te sem razão. Não conheces acaso a minha existência? Não ignoras que gozo de uma liberdade limitada. Além disso, não temos ambos, eu e tu, as nossas respectivas obrigações? Diferentes, sem dúvida, dir-me-ás, porém isso não impede que seja imprescindível cumpri-las todas.
Tens graça afirmando que eu podia arranjar um pretexto! Invento-os todos os dias, mas lá vem um instante em que os argumentos mínguam e mister se faz pagar o tributo da própria presença, como hoje aconteceu.
Não sejas, pois, injusto: — eu sofreria bastante.
A vida que levo não tem alegrias para mim, acredita-me. E, se vens ainda aumentar-me os desgostos com recriminações que não mereço, ainda mais me entristecerás.
Amo-te, bem o sabes. Se não o crês, é porque impede-te o teu ceticismo. Como provar-te, entretanto, o meu amor?
Vê se sou corajosa: escrevo esta carta (e bem notas com que tranquilidade), diante de quem sabes. Não posso mostrar mais audácia, mais temeridade, parece-me. Ele anda ao redor de mim, com olhares atravessados, que me encolerizariam se eu já não estivesse tão predisposta contra ele.
Até logo. Não sejas tão mau com a tua
ELISA.

TERCEIRA QUINZENA

I
Meu querido, —
Vou mais uma vez enfastiar-te com a minha prosa quotidiana, porém agora tenho uma desculpa: — estás doente.
Como te encontras hoje? Cada vez melhor, presumo-o e desejo-o com toda a minha alma.
O tempo está mau, trata-te bem, não faças imprudências nem afrontes o ar úmido e doentio das ruas lamacentas depois da chuva desta noite.
Muito penso em ti e sofro extraordinariamente por te não ver há longos dias. Tu, meu amigo, que tão bem conheces o coração das mulheres, ainda desconheces o meu, que, no entanto, possuis inteiramente... ou antes, conheces demasiado a esse pobre músculo e é por isso que às vezes o fazes sofrer bastante.
Adeus, meu amor. Trata-te com cuidado e recebe toda a ternura da tua
ELISA.

II
Jorge, —
Depois do que se passou ontem à noite entre nós, tomo a prudente resolução de libertá-lo da minha presença, que o importuna de certo tempo para cá. Esta carta é a da sua alforria: sai ao encontro das suas intenções, que, mais hoje, mais amanhã, seriam propostas decerto.
Não me surpreende a sua conduta. Sinto não haver-me equivocado, porque amava-o. O senhor é muito caprichoso e nunca teve afeição por mim. Nunca houve no mundo caracteres tão desiguais como os nossos. Os nossos gostos e sentimentos andavam em regiões absolutamente opostas, bastante tarde o compreendo.
Adeus, por tanto. Cure-se, restabeleça depressa a saúde, que eu desejara saber completa, mesmo sem nunca tornar a vê-lo. Adeus.
ELISA.
Conforme.

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