10/12/2017

Maré de vida (Conto), de Salomão Rovedo


Maré de vida

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“Não pode haver amizade entre homem e mulher.
Pode haver paixão, hostilidade, adoração, amor – amizade, nunca."
(Oscar Wilde)

A vila de pescadores de Mangue Seco tem esse nome porque a areia fina e cortante trazida pela ventania costuma pentear as folhas das palmeiras, formando nelas uma cabeleira estilo afro. A areia em seguida avança ferozmente sobre o manguezal, sufocando, matando, deixando as raízes das árvores totalmente secas, transformadas em figuras pré-históricas, fantasmas horripilantes que nem a imaginação fértil de um escultor poderia imaginar. O motor da picape que Daniel dirigia resmungou avançando aceleradamente nas ruas desertas da vila. O carburador soluça, o cano de descarga tosse, o acelerador geme, todo o veículo palpita a cadência diferente como se fosse o velho e meigo coração se despedindo emocionado da paisagem.

Anoitece, a viração transforma o que resta do fulgor em leve ardência de sangue que se funde com o horizonte, sabe-se lá em quais lonjuras. Ele inventou a correria para fingir que tem pressa. Ao pensar que vai a algum lugar, obriga a picape saltitar como peixe na corredeira, levantando da piçarra nua a poeira esbranquiçada. O pó emaranhado e confundido com a vasa que vem da praia se transforma em essência que rasga o manguezal e se entranha na noite, na pele, nas almas, nas pessoas.

Mas na verdade ele morre de amores e de saudades de Gardênia...

Daniel ligou o rádio do carro esperando sufocar com a música outros sons que se confundem com os ruídos corporais. Ele mesmo é uma coisa qualquer, ambulante e inquieta, cheia de sensações, dores, gemidos. [O cantor jamaicano Derrick Harriott com sua voz exultante recicla "Be True", um reggae da década dos 60 tão antigo como a dor de deixar alguém.] A nuca de Daniel dói a dor funda, o braço esquerdo acusa adormecimento repentino, o peito espreme o coração como um tirador de sucos, afloram as mais estranhas memórias de enfartes, taquicardias, palpitações, morte. Do jeito que está, pensou, nem mesmo o cardiologista mais famoso, com toda a medicação prescrita e seguida à risca poderia salvá-lo.

As luzes do Aeroporto, luminosas como as estrelas que socorrem na solidão do mar os pescadores, surgem salvadoras, capazes de evitar o colapso de Daniel. E podem, afinal, alavancar com seu farol as asas brilhantes do avião rumo ao espaço, mar de estrelas que engole tudo quanto for comoção. Daniel diz adeus à vila de seu primeiro amor.

DEPOIS DE UM BANHO na cacimba ao jorro da água fresca que cai de uma cuia à luz das estrelas, Gardênia enrola o corpo na canga estilo rasta e segue para casa. Na escuridão, o passo em falso foi suficiente para fazer o pé resvalar nos degraus do destino, torcendo o tornozelo. E ocasionalmente aparecer – como realmente foi – um desconhecido para massagear o pé machucado, ouvir estórias bem sucedidas, felizes, trocar frases de efeito, ilusórias, das muitas que guardou com o aprendizado oriental. Foi assim que se conheceram: o resto era teatro de camelô, música de cantor de bolero, de quem finge apaixonamento repentino. Sabe? Como as almas conectam os polos positivos.

As frases serpenteiam bonitas pelo pensamento. Daniel e Gardênia caminham juntos em busca de respostas, procurando desesperadamente um farol, algo que os guiasse para a luz, na noite de pecadores. E assim foi. O casal de namorados diz frases que só têm valência para quem precisa e para ouvi-las silencia tudo. Tipo assim como religião, uma reza ou oração. Cala até o ruído exterior, coral formado pelo som da gritaria, para que Daniel possa gravar a voz de Gardênia nalgum canto do coração e da mente. Só assim funcionam as frases de quem se enamora do amor – de outro modo, acabam se transformando em galhofa.

O frio da noite cruza as roupas leves de Gardênia e arrepia seu corpo. Ele acolheu os pés debaixo da camisa de malha para aquecê-los junto ao peito. Os pés criaram nova vida, agradecidos, acariciaram o tórax, o mamilo direito, deixando os pelos do corpo e as coisas mais eriçadas. Ele gosta, ela gosta. Tudo foi mudando, tudo então virou brincadeira, tudo se transforma em irmandade, união alegre e logo se travestiu em tempero erótico, cheiro do peixe assado na brasa. Sabe aquela história de amor à primeira vista?

Na noite escura outra vez o farol da barra gira continuamente. Sob a sua luz salvadora, o casal rasga latas de cervejas, se acaricia à exaustão, brinda com taças de vinho, o prazer de ter-se conhecido. A luz do farol focaliza o grito cadenciado e envolvente dos regueiros, exibe o destaque, o jeito saliente dos passos, as cinturas, os seios, os quadris tirados do ritmo, meio chegados entre a dança-do-ventre árabe e o tambor-de-crioula africano.

Num átimo o cabelo de Gardênia voou na noite e ela sumiu. Como estrela cadente. Nem ela está mais ali sentada na cadeira ao lado nem os pés precisam de calor dele nem a fala macia soluça necessidades nem precisa mais ouvir histórias das mil e uma noites nem o riso valente e libertário ecoa na gargalhada vistosa. Gardênia sumiu como tinha aparecido, tipo gata borralheira.

Ela não está mais ali, ficou somente o cheiro do corpo todo, ardido como pimenta, sufocante como o cheiro de amêndoa doce. Para Daniel aquilo era o inferno. Em tudo, em tudo, em tudo ele sente exalar o peculiar cheiro de Gardênia. No altar sagrado, na quebrada das ondas, na areia da praia, na distância, até mesmo no mar, persiste o sentimento perene do odor. Aroma, perfume, fragrância, essência, olor, cabelos, lábios, olhos, nariz, seios, umbigo.

Em tudo, em tudo exala o cheiro de óleo de amêndoa doce que Gardênia usa. Na distância, na dormência, na constância, mesmo nas coxas, no sexo, mesmo nas nádegas, sobrevive a percepção eterna do frescor de Gardênia.

A luz insistente do cheiro de maresia finge demonstrar ao navegante que é regaço tranquilo a baía formada pelas ondas traiçoeiras, mas acolhedoras do delta das coxas dela.

Sem ela Daniel flutua no mar sem salva-vidas...


O corpo de gardênia reluzia na noite, entre os lençóis verdes das ondas do mar. O som era o mar. O ardor era a vasa. O ritmo de vai-e-vem era as ondas que vinham parir na areia. E enquanto as nuvens cinzentas sobrevoaram a praia em volta deles tudo era morno e gris. E nenhum dos dois sentiu vontade de saber se o sol ia aparecer para tirá-los daquele calor. O cheiro de amêndoa doce guiava o caminhante para a presa favorita. Igual animal noturno, Daniel fareja os poros doces e dali tira sustento para mais um dia.

Nada de pressa, nada de prisão, nada de dominação a não ser aquela que liberta e dá asas para voar como a águia caçadora que vai e vem ensinada pelos Mestres Caçadores. O cheiro de amêndoa doce traduz ao amante ternura e contentamento. Antes de ser agressor era agredido, antes de ser senhor era escravo, antes de ser mestre era aprendiz. E na contínua guerra de carinhos sobrevivem as carícias espontâneas de Gardênia, indicando ao caminhante o roteiro de gozo e prazer. Sempre farol, nunca escuridão. O cheiro de amêndoa doce tira o apetite pelas coisas banais e frívolas como um raro pôr-do-sol qualquer, mesmo que o sol fosse o sol dourado de Van Gogh sobre o vale de girassóis dourados.

E a maré vem e a maré volta, surfistas flutuam sobre as ondas em busca da melhor para lançar-se e alcançar as manobras radicais, adivinhando o êxtase para o qual estão preparados espiritualmente. O supremo prazer aqui é trazido pelo cheiro de amêndoa doce mesclado ao suor dos corpos de Gardênia e Daniel entrelaçados. A pele dos corpos grudados reluz e torna mais clara a negrura do quarto, o lençol mais alvo.

Como repentino luar vara as cortinas e banha de luz difusa os dois surfistas, que não precisam de pranchas, não carecem de água, não flutuam sobre ondas verdes nem voejam no sonho de campeonatos mundiais.

No entanto múltiplos eles são tudo isso, por conta do cheiro de amêndoa doce que incensa o ambiente com a mesmíssima intensidade estonteante de gozo e prazer das tendas de fumadores de haxixe. E quando o tempo esquecer de tudo e deslembrar até de passar, quando as radiolas de reggae calarem os decibéis, quando os tonéis e vidros de óleo de amêndoa doce esgotarem seus mananciais, quando, até mesmo, as odaliscas deixarem de colear a dança-do-ventre, é hora de Gardênia reaparecer.

De fato ela pegou carona no anjo de aço e atravessou de noite os cinco mil quilômetros que os separavam em busca do manancial de palavras, agora não tão ricas em saberes, vazias de ilusões, sem nenhuns poderes de persuasão. E retornou aos braços do verdadeiro amante. Mas não havia mudado o encanto mágico que os uniu na primeira noite? Os olhos de Gardênia luziam de verde. Daniel chorou porque seus lábios ainda se compreendiam, mesmo sem palavras. Quando seus corpos de novo se uniram o que estava em jogo não era nada irreal, mas o líquido finíssimo e perfumado do óleo de amêndoa doce.

E de novo escolheram a vila de pescadores, a solidão da noite e o ruído sinfônico das ondas do mar se lascando na areia da praia. Buscaram a poesia dos sons emitidos em surdina, dos gemidos que todos entendem, os violentos e carinhosos arranhões, dos intermináveis beijos que premiam roxos medalhões, os desfalecimentos temerosos, que deixam a nuca doendo a dor profunda.

Daniel esqueceu a dor do braço direito, não gemeu na dormência demorada nem lembrou o peito mais tenso que rolo de aço. Largou o pobre coração comprimido tremendo como britadeira, dominou as trágicas histórias de taquicardias e palpitações, desdenhou dos colapsos fatais, legou para o cinema e TV toda aquela maquinaria cheia de monitores, tubos, unidades hipermodernas de UTI. Com Gardênia a seu lado ele pode prolongar ou salvar a estranha e comovida existência, acomodada e pré-programada para viver apenas cinquenta e sete anos de vida cigana e atribulada.

É neste exato momento que se inicia uma nova estória de amor. Não é a continuação daquela ocorrida na vila de pescadores de Mangue Seco, é a estória de um casal apaixonado que por ninguém jamais será contada. Porque o amor está fora de moda.


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Fonte:
Salomão Rovedo: Sonja Sonrisal. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)

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