10/12/2017

Uma Ilha de Saudade (Conto), de Salomão Rovedo


Uma Ilha de Saudade

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“Viver sem amigos não é viver”.
(Cícero)

Chegamos ao começo do fim, ou ao fim do começo, ou ao começo do começo, sei lá, talvez tenhamos chegado mesmo é ao fim do fim. Que importa a chuva que encharca nossos corpos? Quem se importa com isso, num cemitério ou num santuário?

Há aqueles que pensam que a simpatia se faz entre almas gêmeas. Mas não é sempre assim. Walter e eu, por exemplo, solidificamos nossa amizade com choques de opiniões e da divergência alimentamos a camaradagem, que jamais se perdeu. Nossa irmandade começou mais no confronto de ideias do que nas convergências. Nenhum vício, nem os defeitos, nem mesmo as qualidades nos impediram de ser amigos.

Em muitas coisas batíamos de frente. No futebol, por exemplo, ele torcia pelo Fluminense e eu era fanático pelo Flamengo. Ideologicamente falando éramos anarquistas, à nossa maneira. Socialistas religiosos, caóticos e apolíticos, se é que isso pode existir. Em religião Walter se dizia ateu, mas vivia se cercando de todas as proteções, gnomos, santinhos, rezas, coisas mágicas. Do meu lado, gostaria de ser agnóstico, sem entender claramente o que isso significa. Em política nos dizíamos socialistas. Enfim, inventávamos umas ideologias e religiões a nosso jeito, mas tudo sem fanatismos, nem choques fatais. A verdade é que levávamos a vida numa gozação sem fim, num prazer interminável.

Queiramos ou não, somos cativos das amizades que fazemos. Sempre procurando o ouro, ouro do amor amigo, que flui eterna e infinitamente. Pouca gente sabe o que isso significa. O sentido da amizade, em pleno ano 2000, é bem diferente. Cheira a traição, é ligado a sexo, a confusão social, às convenções, aos preconceitos, tudo errado em torno do sentimento. Poucos entendem a boa relação sentimental, ninguém reconhece que todos os prazeres começam nos sentimentos, que ser amigo não é só multiplicar o que é bom e repartir coisas ruins.

Nós tínhamos orgulho de ter ultrapassado esses limites. Ademais, para completar, não cultivávamos inimigos. Se acaso eles aparecessem, tratávamos logo de transformar a quizila em concórdia – e ao fim saíamos ganhando mais um companheiro fiel, mais uma amizade.

Dizem que se conhecem os amigos é na adversidade, nas tribulações da vida. Para nós isso nunca funcionou: as dificuldades, geralmente de caráter sentimental, coisas de paixão, a gente atropelava, tirava de letra. E defendíamos, mutuamente e com isenção, as confusões domésticas, primeiro com a família, mães, pais, irmãos, depois com as mulheres e filhos. Nas horas mais graves, bancávamos Pilatos.

Em determinadas ocasiões da vida, ser amigo é ficar mudo lado a lado, sem irritar as feridas com consolações falsificadas, sadismo, masoquismo, sentimentalismo e pseudomoralismo.

Um dia encontrei Walter bêbado, sentado no meio-fio, com a velha pistola do pai dele, militar reformado, na mão. Talvez nem tivesse bala, era símbolo, troféu guardado da caserna. Meu amigo estava sob o vulcão da crise. Amor, traição, falsidades, coisas que as mulheres aprontam todo dia, em nome da liberdade sexual e igualdade social. E eu no meio do furacão...

Apenas sentei a seu lado, o deixei derramar e vomitar causas e coisas que haviam levado àquele lastimável estado. Para se vingar de ter sido traído, Walter queria, apenas, incendiar a casa do amante, matar a mulher e cometer suicídio. Devia estar de porre mesmo, para pensar naquelas maluquices que só existem em novelas de TV e nos filmes tipo dramalhão. Dissuadi-o de executar todas aquelas diabólicas vinganças (que no fundo me faziam rir), planejadas ao calor da descoberta da infidelidade, coisa mais banal hoje em dia.

– Rapaz, isso tudo só vai arrumar a vida dos outros. Teu problema mesmo, não resolve. Nós vamos e os problemas ficam. As pessoas que te chateiam ficarão aí, vivinhos da silva e você estará comendo capim pela raiz.

Caminhamos um bocado, fumamos, conversamos, botei meu braço sobre o ombro de Walter – gesto bem recebido – e terminamos rindo da cara do outro, tomando chope num bar que ficava bem em frente ao distrito policial! Tempos depois me vi numa situação parecida (tirando a dramaticidade e a arma porque é coisa que tenho pavor, não sei manusear revólver, espingarda, nada), mas ele não estava aqui para me socorrer. Senti o quanto a presença do amigo significa vida, que duas almas juntas são mais fortes.

Um ditado italiano diz, com razão: “Ovos frescos de uma hora, pão quentinho do mesmo dia, vinho envelhecido mais de ano e amigo no mínimo de trinta anos”. Esse tipo de fidelidade traz alegrias e a certeza de termos causados mais o bem e ter sido o trambolho mais leve possível aos amigos.

A família de Walter me usava sempre que podia, quando a teimosia dele se impunha às necessidades de saúde, da família. Era relaxado da própria vida, tratava a saúde com chás chineses, ginseng, mezinhas e remédios caseiros, homeopáticos, sei lá o que mais. E lá ia eu, bancar o mediador, sabendo que nada demoveria de fazer o que havia se determinado. O máximo que conseguia era encaminhar a coisa de modo a satisfizer ambos os lados. Eu sabia que a teimosia dele era superior a tudo.

Gostávamos dos mesmos vícios, pecados, bebidinhas e comidas envenenadas: mocotós, rabadas e feijoadas. Só que meus vícios me deixaram a tempo e ele, heroicamente, se enterrou com todos.

Sem afeição a vida não tem graça. Sem o amigo do peito, que advinha as coisas, que sabe o que gente tem em mente, amigo leal, que nunca deixa de ser amigo, é ter a existência pela metade.

Amigo é mais irmão do que amigo, companheiro de todas as horas que nunca esquece a gente. Fico triste de saber que existem tantas pessoas que vivem sem conhecer esse outro lado da amizade.

Uma tarde Walter estava na fila da loteria – outra das suas manias – quando de repente passou mal. Ofereceram logo a cadeira, onde ele se sentou respirando lentamente, o peito arfando, a fala ofegante. As pessoas queriam ajudar, mas ele resistia:

– Estou bem, tudo bem. Preciso só descansar um pouco.

Acendeu o cigarro e ficou por ali, esquecido entre as pessoas que faziam fila para tentar a sorte de ser o milionário entre milhões. Mas o que seria um pouco demorou demais, a respiração não normalizou, até que alguém mais ativo teve a ideia de chamar a filha em seu socorro e providenciar logo a ambulância. Saiu dos exames preliminares diretamente para internação em hospital. Ganhou três pontes de safena e a promessa de mais alguns anos de sobrevida. É assim que eles chamam: sobrevida.

Ponte de safena e cesariana se transformaram no comércio mais lucrativo da indústria médica, mas há males que vêm para o bem, pois em nome da sobrevida, que poderia sem curta (Deus livre e guarde, mas eu tinha razão), consegui convencer Walter a viajar comigo. E fomos juntos rever nossa juventude perdida há quarenta anos, na longínqua ilha de nossas lembranças – apropriadamente chamada Ilha da Saudade.

Foi prazer para nós desfrutar a maravilhosa vista aérea que índios e habitantes primevos não tiveram. Do alto a Ilha da Saudade parece pequena, limitada geograficamente. Diferente do que aparece nos mapas, na nossa cabeça era uma grande e vastíssima ilha. Os rios sinuosos serpenteiam entre a mata, para a embocadura, rumo ao mar. Anos depois de termos saído o retrato parece o mesmo: a velha Ilha da Saudade que nos criou e fez crescer aptos a lutar pela vida, em busca de novos rumos. Resvalamos nas ruas, escorregando no lodo das escadarias, como a água da chuva farta pelo meio-fio, lugares que o passado tinha deixado incólume.

Aos poucos reconhecemos os becos, escadarias, casarões, prédios que eram outra coisa, fontes onde matávamos a sede depois das correrias. Buscando o mesmo palco daqueles tempos, descansamos na praça, sob pés de fícus tão velhos, tão velhos, que a idade se perdia. As árvores altas fechavam as copas, sombreavam a praça, dando ao ambiente um tom de entardecer. Centenas de passarinhos, pipiras, bem-te-vis, andorinhas e tico-ticos trinavam e pipilavam com sonoridade ensurdecedora. No lado à esquerda da rua, casas antigas e azulejadas se alinhavam como irmãs.

O som do piano vinha do casarão cor-de-rosa, varava as frestas da janela e ia fazer coro com o canto dos passarinhos. As notas diminuíam de intensidade, quando chegamos na Igreja. Ouvíamos vozes afinadíssimas, acompanhadas de violinos e órgão, do harmonioso coral. Deve ser por isso que os passarinhos, acompanhados por pianos, violinos e corais, cantam com tanta disposição e beleza.

O sol já saía do pino do meio-dia, mas atirava ainda brilho e luz sobre os casarões tombados, pintados e reformados com as características originais. Ao longe o aclive da ladeira aumenta, telhados imitam os arrozais em vastidão, até perder de vista.

Entre os quarteirões, as torres das igrejas e dos conventos, badalavam os sinos de bronze.

Walter reconhecia o telhadeiral, as calhas azulejadas, os ninhos de aves, as ervas que brotavam de sementes levadas por passarinhos, me apontava coisas que só ele via. Ali a lei dos trópicos falava mais alta. De repente, sem aviso nem trovões, nuvens pesadas surgiam deixando o rastro da chuva farta. A água banha os telhados e jorra volumosamente para o chão, descendo as ruas e ladeiras em correnteza. Pelo semblante vi que Walter remordia lembranças, os tempos da pele morena queimada pelo sol, do cabelo liso arrepiado sempre esvoaçando ao vento. O olhar vivo e inquieto, os vincos na boca marcando o sorriso permanente: naquele momento éramos crianças de novo.

As colinas da Ilha da Saudade apontavam longe, no fundo da paisagem, cobertas de casas luxuosas. Aonde a mata silvestre começava hoje tem avenidas, casas populares, bairros novos, shoppings, supermercados, comércio. Os riachos que transbordavam durante o inverno foram aterrados e sobre eles construíram pontes e estradas asfaltadas. As avenidas litorâneas acompanham as praias, a perder de vista, formando um colar em torno da Ilha da Saudade. A mata se tingiu de verde-escuro, uliginosa, a atmosfera bastante úmida. Buscávamos os rios dos tempos de moleque e depois de viajar dez minutos alcançamos o riacho, mas não a nascente.

Fomos acompanhando o regato e a trilha se tornou mais aberta na mata, mas continuava estreita nos pés, o que nos obrigou a largar o carro e andar em fila indiana. Mais para dentro, emburacamos numa trilha de um só pé, Walter na frente e eu seguindo-lhe os passos. Uma orquestra de passarinhos, de sapos, de rãs e de grilos ditava o ritmo. O burburinho do regato descendo pelas pedras era a música que nos empurrava para frente, diminuía o cansaço, dava coragem para prosseguir sem esmorecer.

Mais uns minutos se passaram e foi o tempo que demorou a chegar. A nascente do rio era na verdade uma lagoinha, cerca de cinquenta metros de circunferência irregular. A mata fechava-se, copada, transformando o lugar num santuário escondido do resto da Ilha da Saudade.

O rio nascia entre as árvores e juçarais, as raízes se entrecruzavam sob a água. Walter tirou a camisa e pulou na água e deve ter se sido maravilhoso, estávamos cansados da caminhada e encharcados de suor. Olhou para mim, esperando que eu mergulhasse também. Não decepcionei, tirei a roupa e mergulhei de cuecas mesmo. O frio natural da água me restaurou de toda canseira.

– Vou te mostrar o segredo que tenho desde moleque, disse ele.

Todos nós temos nossos segredos de infância e juventude. Principalmente os de cunho sexual. Mas o que Walter guardava com tanto orgulho era o segredo da natureza. Uma coisa que frequentou nossas andanças pelos matos virgens da Ilha. Hoje se pode rir de tudo isso, mas na época era coisa de amante. Por isso, segui o itinerário de Walter, mergulhando, nadando, evitando raízes e troncos. O local era uma piscina natural, seguro, majestoso, oferecendo banho farto e mergulhos saborosos.

A água estava fria, mas suportável, à profundidade de dois ou três metros via-se claramente o fundo do rio. Walter mostrou, com gestos empolgados, a água surgindo do fundo em grandes borbulhas, formando nuvens de poeira na areia branca. O milagre que poucos já viram na vida: a nascente de água mineral, o orgulhoso segredo de Walter. Fez questão de me mostrar o local exato da fonte. Uma portentosa, veracíssima, maravilhosa nascente, como nunca tinha visto na vida!

Paisagem de cinema, melhor, de cinemascope. Os raios de sol atravessavam a mata, rebolavam nas folhagens em miríades de pérolas brancas. Depois de alguns mergulhos, sentei num tronco para descansar, mas Walter não parou, exibia juventude incansável e insaciável, enchendo o ambiente com vastas gargalhadas. Parecia não querer mais sair daquelas águas, mergulhava e sumia, afundava e reaparecia em lugares inesperados. Brincava.

A tarde caía. A luz do sol entrava em diagonal, inundando tudo com raios sacros. Quando começou a escurecer (sob a pesada copa das árvores escurece rapidamente), Walter finalmente saiu da água, o corpo tiritando de frio, os lábios roxos. As gotinhas de chuva fina atravessavam as palmas para respingar na gente, como se fosse um batismo natural, água benta aspergida pela mão invisível da natureza.

Arrumamos a tralha, exaustos, molhados, água correndo dos cabelos pela camisa e deixamos aquele santuário da natureza em religioso silêncio. Chegamos ao começo do fim, ou ao fim do começo, ou ao começo do começo, sei lá, talvez tenhamos chegado mesmo é ao fim do fim...

Que importa agora nossos corpos molhados? Quem se importa com os cemitérios quando se tem a natureza como abrigo? Há aqueles que pensam que a simpatia se faz entre almas gêmeas. Mas não é sempre assim. Principalmente quando estamos bem próximos do começo do fim, ou ao fim do começo, ou ao começo do começo, sei lá, talvez tenhamos chegado mesmo é ao fim do fim...

Que importa a chuva que encharca nossos corpos e alegra nossas almas?


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Fonte:
Salomão Rovedo: Sonja Sonrisal. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)

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