10/26/2017

Moça do Fandango (Conto), de Valdomiro Silveira


Moça do Fandango

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Na bocaina do campo, já perto da mata, é que o Armando foi alcançado pela Rosinha. Voltou-se, admirado, e sentiu logo um baque no coração, vendo-a toda demudada de feições, com os olhos a chamejarem e um grande rubor de fúria nas lindas faces cor de rosa.

Não foi preciso dizer-lhe nada. Ela tentou compor os cabelos da testa, que o vento desvairava, como a fúria lhe desvairava a expressão do olhar, e falou-lhe apressada, entre hesitações de gagueira nervosa e repentinos chuviscos de lágrimas:

— Adonde é que você vai p’r este caminho? Nem percisa arresponder, que a reposta eu bem vejo naquela volta, pra arriba dos araticuns! Você assentou, duma vez, de me fazer de chá de canela p’r amór de uma bugra à toa? Já ‘tá cansado de mim, quer-me apinchar pra uma banda?

O Armando entrou a sossegá-la:

— Mas, Rosinha, que maluquice antão é essa? Pois a estrada não é pública? Antão eu não posso trocar um carreiro, só porque sea Fulana ou sea Beltrana assiste naquele chão? Vou pra cidade, vou com pressa, não tenho tempo de ‘tar escolhendo estrada.

— E garra logo a estrada mais comprida? É ansim que você ‘tá com pressa? Pois olhe: não tenha tanta; quem vai devagar é que chega mais cedo.

— Rosinha, eu tenho sido um poço de paciência, não posso mais. Você me traz num langará dos dianhos a troco desta ciumeira desatinada! Agora pega a falar nûa moça que eu nem sei se é gorda ou se é magra, se é bonita ou se é feia. E eu hei de aturar de boca fechada um desespero de vida ansim? Nem que eu não tivesse um pingo de vergonha...

— É, você tem rezão, tem sempre rezão. A coitada de mim que fique encantoada em casa, chorando por seu respeito, passando amarguras velhas, enquanto o meu senhor dão vai viver umas horas arregaladas c’a chavantinha chimbeva!

Houve, no rosto do Armando, uma grande movimentação de impaciência. Como um arapaçu, que andava a trepar ligeiramente pelo tronco rugoso de uma sucupira, garganteasse, de alegre, ao saltar para o entrecruzamento dos galhos, onde ferviam cupins em arranjos de casa, o Armando olhou-o, como se nunca houvesse visto semelhante pássaro. Pacificou-se:

 − Isso não é verdade, meu bem. Você não aprova que eu tenha feito pó na porta da Gabriela. Isso é pura canelage!

A Rosinha passou a manga direita nos olhos alagados de pranto:

— Mas já me tenham dito que você gosta da trigueira, e você pra mim não tem mesmo muito créito, porque olha pra uma e pra outra, volta e meia, como quem quer a china e a descascada, a guarapuava e a Nanica, e redondinha e a espigada...

— E eu é que tenho obrigação de aguentar o que você me quiser dizer, desaforos de todo o porte, xingamentos e malcriações, como se eu fizesse algum crime contra você? Donde foi que você me veio, sea Rosinha: foi do céu ou foi do inferno?

— Foi do inferno... Isso foi!

Ela sentou-se num solais do caminho. Os cajueiros e as pitangas em flor, ficando-lhe sobranceiros, cobriam-na de uma brancura de sonho. E foi quase recostada entre as hastes frágeis, que a Rosinha, toda arquejante e cheia de arrepios pelo corpo formoso e pequenino, começou a soluçar.

O Armando, agora, contemplava-a. Tinha-lhe pena. Se lhe pudesse ter amor! Quando foi embrandecendo a tempestade de choro, ele chegou a preparar-lhe, como quem prepara uma cama leve e cheirosa, frases de carícia e de mimo. Mas a Rosinha ergueu o rosto.

— Eu era ruim, não era, Armando? Eu ‘tava na desgraceira? Mas antão não fiquei boa? Se eu já fui diabo e agora sou santo, você não devera de me dizer uma palavra tão doída, que me corta ansim o meu coiração! Eu não era mesmo boa, mas tive amor por você, salvei-me dos meus pecados, caindo nos seus braços e querendo ser tudo que é direito no mundo, só porque lhe quero bem!

Ainda lhe vinham soluços. Venceu-os, porém:

— Você não tem medo de Deus, Armando? Não acha que é falta de piadade largar à toa ûa mulher que se arrependeu de seus passados como quem se arrepende da morte? Olhe, Armando: não vá p’r esse caminho, de caridade, que isso me faz um desespero no fundo da minh’alma!

— Ora isso vou: pois eu hei de agora trocer meu rumo por causa de uma libuzia sem pé nem cabeça? Vou.

— Vá, pois vá! Você bem sabe o que faz...

Ele pôs-se a caminho, a toda a pressa. Não tornou para vê-la. Não quis ouvi-la mais. O cheiro vivo das gabirobas atordoava-o, fazia-lhe uma quase vertigem o zumbir desordenado das mamangavas e dos inchus errantes.

(−... Vá, que você nunca mais não me há de fazer outra, marvado!)

E um monótono grasnar de caracarás, perseguidos pela passarinhada miúda, pouco a pouco o afastava de toda a lembrança destas coisas, para desejos novos, para alegrias novas, para esperanças novas.

Quando chegou, entretanto, ao fim da grande reta onde a estrada se partia, voltou-se. A Rosinha sumira-se. Ao longe, bem ao longe, em toda a extensão percorrida, para trás donde a deixara, ninguém. Nem a poeira, que anuncia ou trai uma vinda ou uma retirada, pairava no ar...

Torou então a moita de capoeiras. Apenas um leve rasto acusava a passagem da moça. Seguindo-o, internou-se algumas braças na frescura da mata. Viu-a logo de longe, ajoelhada. Chegou-se-lhe diante: viu que pedia de um laço de cipó-cambira trançado à pressa, e toda se arroxeava no começo do estrangulamento. Cortou-o de repente: e o corpo, entregue a si mesmo, caiu entre as folhas tenras de uma samambainha nova.

O Armando, a agitá-la, a sacudi-la revocando-a à vida, murmurava ansiado:

— Ah! Senhor Deus do céu! Que ûa mulher ansim é um perigo! Inda quando a gente quer bem...

Lá se foi ela, um dia, muito triste, a cavalo e com dois camaradas e com animais adestros, muito bem tratada, e cheia de esperança porque ia esperá-lo em outra terra, onde não morasse a Gabriela, nem outra igual que lhe fizesse sombra e lho tirasse.

Ia desaparecendo na dobrada do morro, e o Armando falou pra quem o quis ouvir: 

— Não é mesmo? O que é que a gente há de fazer, senão mandar s’embora pra ûa mulher do fandango?

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