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10/26/2017

Primeira queda (Conto), de Valdomiro Silveira


Primeira queda

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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As sapucaias do mato virgem, quando um vento mais forte as agita, deixam cair ao relvedo da selva os frutos mais maduros. E tumultuam junto às raízes da árvore, alvoroçadas pelas cumbuquinhas que caem, as cutias gulosas e as pacas desconfiadas.

É nesse tempo que os caçadores preparam as cevas, de estaleiro ou de choça, armam os mundéus enganadores, e do escuro das árvores mais ramalhudas, ao cerrar da tarde, fazem traição ao macuco, arremedando-lhe os pios tristes e intervalados. A caçada é sempre farta: mas é doído que muita vez, ao troar da espingarda, que repercute pelas cavernas e grotas em acentos demorados e trêmulos, algum choro de sauá que se fez órfão atravesse as frondes, vingue a lomba do espigão, desça à várzea, morra espaçada e tremidamente.

Há caboclo que leva a dona do seu coração e essas festas de mortandade. E por isso quase sempre, ao calor sufocante do meio-dia, voam para o alto das montanhas bandos barulhentos de cantigas de amor, que o vento propaga e enternecidamente faz alongar pelas baixadas.

De vez em quando o rio que passa mais próximo trapeja mais forte, ao arrufar-se nos velhos troncos meio imergidos na água: estão no banho os caçadores. Não é raro então que tresmalhe do grupo um ou outro deles e se vá refrigerar dos calores dessa hora, ao longe, nos frescos braços da gentil cabocla que não duvidou perder-se nalguma picada cheia de labirintos. O rio ronca às vezes, o beija-flor murmura com as asas ao redor do caeté desabrochado, a parasita de espinho debruça-se do seio da árvore onde fez morada, olha e admira-se: mas nada contam depois...

As histórias dessas fugas e escapadas − alegres, tristes, festivas, trágicas − vão-se fazendo complicadas e transformando em lendas, mais tarde, pelos arraiais. Uma das que os moços caipiras sabem, nas fazendas do norte, é a da Clorinda, morena corada e matadeira, que tanto era mestra de temperar um jembê como uma viola, e estava sozinha para aporfiar com qualquer cantador dos mais afiados, num desafio.

Todo o mundo queria bem à Clorinda, porque ela falava a todo o mundo com o coração nas mãos e bondade na voz. E a voz era muito branda, como a de quem aprende, nos ermos, a não querer ser mais que a sapuva, cuja copa, sacudida pela aragem, nada mais faz que soluçar abafadamente, ou ir além da jurava, que, escondida nalguma touceira de jatiboca, diz por pios fundos e cavos a tristeza ou a alegria de que está possuída.

Ao primeiro vermelhar da madrugada, à hora inexpressiva em que os jacus estremunhados saltam de galho a galho, enchendo as clareiras do arvoredo com a sombra longa e apavorante dos seus vultos escuros e espectrais, a Clorinda fazia caminho para o ribeirão que corria ao pé do serrote, longe da casa, lavava o rosto vagarosamente, e internava-se nos trilhos e carreadouros. Ia visitar os mundéus e esparrelas, as arapucas e os laço-se-forca; abafava, prudente, o estralejar dos gravetos: e era quase de sempre voltar feita um bando de passarinhos esvoaçantes e com uma fieira de nambus e urus mortos, quando não trazia também, a rasto, alguma paca chateada pela pressão do tronco de arindiuva que sobranceava a armadilha.

Vivia assim, despreocupada e livre, entre aves e entre flores. Não saberia explicar o motivo de se debicarem tão afagantemente os pavões, no esgalho dos ingazeiros, e de uivarem de maneira tão lamentosa os lobos, na meia-treva das noites de luar, quando foge o dia, a natureza se recolhe, e começa a apontar a lua, assustadoramente branca, na cumeada dos morros.

É verdade que a mãe, de quando em quando, lhe contava mal esclarecidos fatos: moças muito lindas e muito respeitadas, que se viram ao desamparo, de uma hora para outra, por conversarem tempo esquecido com fragueiros moços em lures apartados, o que aconteceu tão somente porque ouvissem demais a linguagem falsa e melada dos conquistadores. Mais a miúdo se contavam, na fazenda, as façanhas prodigiosas de Cabral, de Vasco da Gama e Colombo, que o patrão tinha escritos num livro grande –, e a Clorinda não caía em porque se havia de levar a mal a conversa de qualquer moça de preceito com qualquer daqueles homens que tinham, a todo o custo, conquistado a terra e o mar...

Indagava entre si o porque de ser pecaminosa tal conversa.

Não atinava com a razão dos avisos maternos. E horas e horas se perdia às vezes, em pensamentos desencontrados, carregadinhos de dúvidas, que se iam desfazendo numa vaga flutuação de devaneios, como, num recanto de céu, nuvens escuras, que prometem aguaceiros, vão pouco a pouco a trocar-se em rendas alvas.

Mal que os pais que lhe principiaram, de acautelados, a vigiar os passos, a Clorinda sentiu-se deveras constrangida. Surgia-lhe algum de repente, na doce quietez dos retiros. Por isso, não raro, assustava-se ouvindo o mourejar do vento nos ramos bem vestidos; estremecia toda, ao escutar a plangência da suindara, em caindo a noite, em qualquer tapera conhecida, porque naquela voz parecia, acreditado o dito do povo, adivinhar infelicidades que haviam de vir. Como uma obsessão, apoderara-se dela a ideia de que por toda a parte, em vários esconderijos, a estavam espreitando: e vivia, temerosa e seu tanto ou quanto amedrontada, na ânsia constante de quem pecou e precisa de fugir.

Amava, contudo, os pais. Em tornando daquelas carreiras, procurava-os com solicitude, contando-lhes casos engraçados, trazendo novas de uma tararaca que dera um salto de duas ou três braças, de puro aterrorizada, entre um peloteiro e o galho mais caído de certo antonio-alves; de um nambuguaçu que repicava o pio roucamente: e até – coisa espantosa! De um gavião de penacho que se aventurara a arracncar de um mundéu, perto dela, um cateto novo, um leitãozinho, que esperneava ainda, nas vascas da agonia.

Um dia, como disse à mãe que topara um moço caçador chamado Eugênio, para as bandas da grota seca, em pós de um mateiro arrenegado, a mãe, com palavras meio veladas e fortemente persuasivas, aconselhou-lhe que não fosse mais a tais lugares e evitasse encontros perigosos assim. Admirou-se. Afigurava-se-lhe muito natural que os caçadores atravessem os mais cerrados matos e as mais apagadas veredas: quando se lhes some a caça cobiçada, é bem de ver que nada os detêm – valos, moitas de espinho, pedreiras, morros.

Se o Eugênio era caçador, seria de certo como os outros: e tinha ares de tamanha bondade, que não havia arrecear-se dele, senão por muita e dura injustiça. Não mudou de caminho: todos os dias ia visitar duas esperrelas que armara num paraíso, ao pé do ribeirão, morada efetiva dos sabiás-coleiros e unas de melhor estilo daquelas cercanias. Até, no mais íntimo de sua alma, chegava a querer observar se aquele moço teria olhares tão maus e palavras tão feias, quando acaso outra vez se defrontassem, nalgum trilho indeciso, sozinhos, à vista, apenas, de Deus. 

Uma vez, afinal, como novamente o Eugênio lhe aparecesse, no abrir de uma porteira assombreada de canjaranas, ficou perplexa entre o cortejá-lo e o sumir-se mais que depressa nalgum densumbroso ramalhete de árvores. O destino deteve-a, que tem muita força o destino! – e o moço perguntou-lhe do rumo de um caminho perdido. Ora, vendo-a perturbada, perturbou-se também: mas a feiticeira Clorinda cobrou-se logo de espírito e ensinou-lhe todas as estradas de algumas duas léguas em redondo.

Não se movia o caçador, no entanto. A Clorinda, agora, recordava sensatas recomendações e conselhos maternos, que já andavam quase de todo em todo desleixados: não é bom dar trela nunca a jovens caçadores, quando ao perto se não ache algum conhecido: moço e moça não devem caminhar sem outra companhia, nos atalhos extravagantes e nas longas soledades.

No entanto, não se movia. E tendo sido convidada para ver matar uma cutia cevada nas sapucaias maduras, que a força do vento espalhava pelo chão acamado de folhas já murchas, foi coisa de admirar que tão depressa aceitasse o convite. E caminhavam juntos: as duas sombras, na areia branca entremeada de pedregulhos, aumentavam de tamanho, agitavam-se, faziam-se monstruosamente grandes, ao lado uma da outra. Penetraram a mata, num ponto em que havia montões de ramos quebrados, ao bulir ondulante das folhas tocadas, e fazendo um rumor precatado, quase nem um.

Já muito longe, à beira de um solapão hiante e profundo, que da aguada subia para a plena mata, pararam. Dormia a mata. Quedaram não poucas horas à espera da cutia. A cutia não vinha. Os vegetais conservavam-se imóveis. A demora não era já pequena. Nada quebrava o silêncio e a soneira das árvores, que se diria estarem tomadas do êxtase de um rico sonho. Os mesmos passarinhos mais irrequietos – patativa do sertão, bico-pimenta, alcaide, picharro – não davam cópia de si. E o Eugênio e a Clorinda, ansiosos, esperavam...

Mas, a súbitas, pesado rumor se fez ouvir ao longe. O Eugênio prestou atenção, concheou a mão direita atrás da orelha, empalideceu: e observou à companheira que uma grossa nuvem de caçunungas vinha chegando. Caçunungas! Caçunungas! – só de pensar naquele enxame de marimbondos bravios, a Clorinda, tapijara de toda a paragem, disposta e valente, começou, entretanto, a tremer. E o enxame aproximava-se: parecia o trovejar das águas de um alto açude que rompeu represas possantes e agora, no meio da calma embasbacada dos arredores, descia vitoriosamente até o ribeirão de onde o tiraram.

Houve uma tal igualdade de pensamentos, no mesmo elo de medo, que se deitaram lado a lado, unindo-se bem ao chão, precavidos contra a nuvem que passaria a uns dois metros acima, negra e agitada e quase a urrar. O que, porém, não entrava no capítulo, foi o pegarem a beijar-se os dois, quando se avizinhavam os caçunungas, enquanto passavam, depois que se afastaram. Não era da caçada! E a Clorinda, bem no fundo da sua alma singela, entrara a pensar que a mãe a enganara, porque o Eugênio, um caçador como os demais, não tinha, entretanto, ditos ou feitos que espantassem, que a deixassem na tristeza, na vergonha ou na desconsolação de uma descortesia recebida.

Os caçunungas, em bando compacto, desapareceram na escureza das brenhas. Ainda rouquejou, muito tempo, o rumor que faziam, perfeita semelhança do temporal que se alonga. Mas o caçador e a caçadora, numa constante igualdade de pensamentos, detiveram-se à beira do solapão, distraídos, esquecidos, comovidos. Só deram tento da vida, só pensaram em tornar para seus pagos quando se viu o primeiro piscar das estrelas no céu. 

Voltaram. Na estrada alva os dois vultos cresciam fantasticamente, agora sombrios e mais anchos. Os purrutuns apavorados levantavam cansados voos adiante deles. E toda a
mata, em seguida, readormecia muito serenamente.

Quando o Eugênio, na sofralda do espigão, teve de se despedir da moça, a moça chorava: prantos de amor que nasceu na incerteza de uma hora turva! E chorou no dia seguinte: mágoa quase doce de quem principia a aprender o sofrimento no que ele tem mais meigo e mavioso. E chorou nos outros dias: ânsia de quem, não sendo passarinho, ama com ternura e afã de pomba-piranga, e desejo de rasgar um violento voo para onde crê se esconde o companheiro. Depois, saudades.

Mas o tempo tudo apaga. Ela veio a consolar-se: viram-na de novo as capituvas amigas, banharam-lhe outra vez o corpo as águas esquecidiças do ribeirão, que passam e não remontam; apareceu nos catiras, onde, foi coisa não costumada aquilo – por seu amor apareceram crencas e contendas.


Hoje, segundo a unânime afirmação dos moços caipiras, nas fazendas do norte, a Clorinda cai tal e qual as sapucaias do mato virgem...

Rabicho (Conto), de Valdomiro Silveira


Rabicho

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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As guaricangas tremiam, sussurrando soluços, porque um vento bravo passara pelo brejo e tivera o atrevimento de bulir com elas: vendo as palmeirinhas tremer assim e os sacis bater as asas cheias de riscas, fazendo tal e qual como quem está presa de susto ou dor, a gente – se fosse crendeira – diria que a tristeza andava passeando aquela tarde pelo país do rio verdinho.

Na verdade, isso não podia continuar. A madrugada rasgara-se acompanhada de ventania: o sol apareceu, sem que a ventania abrandasse; e agora, com as primeiras fusquinhas do crepúsculo no ocidente, a ventania ainda se tornara mais irada.

Vem a hora de passar o bando dos patos, a hora em que os piris e as taboas palpitam no cimo d’água, saudando-os. A terra inteira pareceu recolher-se para receber no âmago o derradeiro espasmo do sol: assim que ele imergiu no fundo das montanhas, ela agitou-se por instantes numa convulsão demorada, e cobriram-se de vivo sangue as copas dos angicos, até aí virginalmente brancas.

Mais tempo, menos tempo, saía de um rancho sufocado entre dois montes, a um lado do rio verdinho, o Renato da Mantiqueira, montado num cavalo mouro. Arranjara o animal a capricho, levando-o primeiro, raspando-lhe o pelo depois; selara-o com um socado de sorocaba, dos bons, adicionando-lhe peitoral e caçambas de prata que tiniam. Teso e cheio de não-me-toques, ganhou a estrada que dizia para a grama; assobiou a música da araúna, ergueu ao ar o chicote de bonito lavor, desceu-o às ancas do mouro, e seguiu com vontade.

Seu coração batia forte, acompanhando quase o viajeiro da cavalgadura: chegou a pensar umas coisas esquisitas, que eram comparações dos estrupidos das patas com o barulho do coração, perguntando a si mesmo o que seria que andava mais ligeiro – o coração ou cavalo?

Encontrou gente como formiga. Aborreceu-se um nada. Queria-se não visto e só, abrindo e fechando porteiras, namorando a estrela do pastor que não tardaria a entrar no circo imenso do firmamento; queria-se invisível entre os andaaçus marginais da estrada real: amaldiçoou, no íntimo, aquelas pessoas que o observavam com tal insistência, que se diria estarem resolvendo interrogá-lo a cada sombra mais densa de gurrupiazeiro, onde luzia em triunfo a prataria dos bocais do mouro.

Deu-lhe na gana gritar que ia ver a Anica, a dona dos olhos mais perigosos de toda a redondeza, a rapariga que ao andar tanto e tão bem rebolava o corpo, que o corpo dela fazia pensar-se numa colina de geléia deliciosíssima. Ia, pois vê-la: que importava isso aos bocós, agora? Teve desejos de livrar o peito da jeriza que o oprimia. Quis mandar os importunos cavaleiros e viandantes aos quintos dos infernos. Quis dizer muito; mas continuou sem dizer nada, mas continuou a assobiar a música da araúna.

O engraçado foi que no alto de um morrinho, por sinal que um morrinho todo florescido de maravilhas, um nambu mineiro estava piando com delícias. Havia já pedaço, principiara uma série de pios, e não conseguira chegar ao fim, pois um outro lhe volvera pronta resposta, escondido numa touceira de maçambará. O Renato passou e, como recomeçasse a predileta canção, o sonso do nambu tomou voo contra ele, cuidando-o por certo algum rival que requestava a mais que desejada nambu.

O Renato levantou o chicote, varejou-o, empuxando-o contra o chão. E reparando nele, que se estorcia nas vascas da morte, murmurou:

— Se até os passarinhos já têm ciúmes de mim, que dirá certa gente que se morre de amores pela Anica!

Aquela ideia atravessou-lhe o espírito, como um morcego o silêncio de uma igreja. Sobre ela acumularam-se outras, não menos ruins. Sobre estas, outras piores. De modo que o rapaz, de alegre que estava, se pôs a banzar. Lembrou-lhe um fato, o de lhe haverem contado que o pai da moça jurara matá-lo, se o soubesse rondando junto às janelas do terreiro.

Isso já era demais. Virava de zanga em ameaço. Enfurecesse-se o velho, tinha lá suas razões. Mas ameaços, não os fizesse, que um peitudo da Mantiqueira não conta com desgraça de jeito nenhum!

Quem pagou tudo, foi o mouro. Vergastadas intercadentes lambiam-lhe com raiva as paletas. Murros – até murros! – adormeceram-lhe as fibras de sob as crinas. Pés nervosos, descalços, correram-lhe as virilhas, por feição que o deixaram mais do que triste. Um animal de estimação, como ele, apanhado à semelhança de burro chucro, já se viu só?

A noite, que era de lua, veio com todo o vagar. Suindaras gemiam perdidas numa lonjura incalculável e um beija-flor sem juízo trinava, apesar de vinda a noite, no ramo cimeiro de uma arvoreta. O Renato sentiu-se tomado de súbita melancolia; puxou as rédeas, parou, dirigiu ao pássaro a mágoa de que percebia inundados os próprios olhos, e ouviu-o cantar. A estrela do pastor já fulgia no céu e ele pensou entre si:

— Pode que o louquinho do beija-flor se esteja finando de paixão pela estrela!

E depois acrescentou: 

— Mas é mesmo um louquinho o tal, que não pode ter certeza de ser correspondido. Eu, que gosto da Anica, sei pelo menos que ela gosta de mim. Gosta muito, mas mesmo muito!

Em seguida, abstraiu-se, com uma penetração estranha de vista para o mistério claro do luar, e murmurou:

— Homem, quem sabe?

Estalaram chicotadas. O mouro disparou num galopão. Por quê? Porque o Renato precisava conhecer o amor que a Anica possuía no coração de moça nova. Apresentara-se uma dúvida: pressa se dava ele em desvendá-la.

Para logo romperam do lago de luar que transbordava pela estrada, ramalhetes de vegetação densa e altaneira. Eram três jatobás que assombreavam a casa da linda Anica, e, achando-se perto deles, o rapaz achou-se perto do peito dela...

Ai! Que julgava já vê-la, num vulto visto à porta da casa! Mas não, não era! Talvez alguma pomba esquecida do ninho, enrufando as penas, pousou ali e contemplava a serenidade do espaço: quem sabe se uma travessa marrequinha, das alvas, estava perlongando aquelas regiões, antes de tornar à quentura do ninho? Não, não era a moça!

Não era, mas então o que seria?

Foi-se aproximando. O vulto deu de crescer, de crescer. Cresceu de tal modo, que, afinal, o Renato reconheceu nele a Anica.

As madressilvas de uma cerca próxima rescendiam; as laranjeiras vestiam-se de noivas e, noivas perfumosas, enchiam o ar de piras emanações: de vez em vez uma viração mais apressada mergulhava nas ramarias, e formava-se-lhes em torno uma atmosfera de inocência e de sonho.

O Renato achou-se envolvido na pureza dessa atmosfera e acreditou-se levado aos sete céus da felicidade.

A prova é que falou, numa voz que se diria de êxtase:

— Anica, está deveras distraída!

Ela respondeu numa voz que era mais branda que um arrulho:

— Tenho motivos para distração.

— Para alegria?

— Antes fosse. Para distração que termina em sofrimento.

— Pois, Anica, uma coisa lhe juro: você empregava com acerto os seus pensamentos, se eles ficassem presos numa ideia.

— Qual ideia, Renato?

— A da nossa dita.

— Aí está um impossível!

— Impossível, se você quer que seja impossível.

— Não, eu não quero.

— Então, você tem estima por mim?

— Não sei.

Às vezes o não sei é dito de tal forma que já é uma afirmativa. O Renato alegrou-se, e teve os olhos úmidos de satisfação. E daí sua voz banhou-se de satisfação também, como os olhos, saindo-lhe trêmula:

— Já vê que nós havemos de ser ditosos.

— Não, atalhou Anica: não, porque papai não admite nem que se toque nesse assunto.

— Que me importa?

— Mas você bem sabe que eu sou de menor idade.

Nesse momento, reboou na calma da noite uma apóstrofe terrível:

— Desgraçado! Saia de lá que, senão, corre perigo!

— É a voz de papai, aventurou Anica: fuja! Fuja!

O Renato, porém, quedou-se-lhe à beira. Tomou-lhe uma das mãos, e bradou com toda a energia:

— Quero muito bem a ela. Ela me quer muito bem. Deixe que nós casemos, é o que lhe pedimos.

— Maldito! – a voz continuou: nunca eu lhe entregaria minha filha!

— Nunca?

— Nunca.

O Renato perguntou à Anica:

— O seu amor é grande?

— É.

— Você faz loucuras que eu fizer?

— Faço.

— Suba à garupa do mouro.

Ela montou. Cingiu-lhe o corpo com os seus braços cor de leite, notou que ele os premia com afeição e creu-se venturosa.

O cavalo partiu num galopão desfeito. Viu-se uma fímbria de nuvem ondulando-lhe sobre a cauda, uma nuvem de cassa ou de cambraia, e um longo chapéu de feltro, de abas largas, a sumir na indecisão do luar. Depois, nada mais do que... Poeira, poeira e mais poeira. 

Jurando falso (Conto), de Valdomiro Silveira


Jurando falso

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Dizer o que era a Nanica, nos tempos em que o José das Perovas pegou de amores com ela, é coisa quase impossível: só mesmo se se lhe visse o retrato é que se convenceria a gente da formosura perigosa que a diaba tinha. Chamavam-lhe Nanica, por ser mesmo garnizé: mas apesar de retaca – isto agora é que é verdade! – qualquer moçona das mais sacudidas não lhe causaria inveja de qualidade alguma.

Pois o José das Perovas apaixonou-se perdidamente pela tal: não havia no quarteirão alma cristã que não soubesse do caso; por sinal que uma nhá Tuda, linguinha levada dos dianhos, contara em segredo a muitas pessoas que o vira pinchar flores de baixo da janela pra riba, na casa em que a dita morava, com o pai quase imbecil por amor dos pifões.

O boato avolumou-se, daí a pouco. Raparigas houve que chegaram a perguntar à Nanica:

— Dizem por aí que você está dando corda ao filho do Manecão: é verdade? É verdade?

— Ora! O que têm vocês com isso? – tornava ela: tratem de sua vida e não se importem com a alheia, é o melhor! Eu nunca lhes perguntei por semelhantes coisas; façam o mesmo: não se intrometam em meus negócios.

Aquelas, contendo a raiva que lhes gritava no peito, nada mais lhe diziam na presença. Mas depois – virgem nossa senhora! – lá iam todos os qualificativos, em procissão, acompanhando o nome da outra: fogueta, namoradeira, sem modos, busca-pé, regateira, xingos deste porte, e de maior, alteavam-se aos ares, perseguindo-lho, quando acertavam de falar a respeito dela. A onda cresceu de modo que um dia a Nanica foi sabedora do que à sua conta rosnavam: olhou em redor de si, viu-se meio abandonada da sorte, aceitou de uma vez as galanterias do que havia tanto tempo a requestava – e um belo dia agarrou mundo.

A barulheira que correu no quarteirão, logo depois, nem se pode contar: parecia querer subir direitinho ao céu, de tão irada que vinha! Se não subiu é porque a voz do povo, em vez de ser de Deus, como alguns falam, é voz do diabo: e a voz do diabo não deve de passar deste inferno, que é a terra. Volvidos dias, porém, quietou o rumor; só o que se ouvia ainda eram conceitos como este:

— Aquilo é sina, coitada!

E por estarem convencidos de que era sina, deveras, aquilo, ninguém mais mordeu em o nome da pobre: no que andaram muito bem, porque afinal de contas águas passadas não fazem rodar moinho.

Um mortal não precisa de viajar grande coisa para achar a felicidade: às vezes (segundo afirma um entendido!), esta sujeita não está mais longe do que a dois passos da gente, e a gente vai procurá-la onde menos a pode encontrar! O José das Perovas não se afastou muito: arranjou seu rancho à beira do turvinho, aí pros lados do espírito santo, e dedicou-se à Nanica. E a Nanica dedicou-se-lhe que dava gosto vê-los.

De madrugada, ia ele ao trabalho, depois de dizer à companheira frases bonitas e maviosas como as do Armando Erse: ela escutava-o com semblante florido de regozijo, e retribuía-lhe os abraços. Entretanto, quando o vulto do José se sumia entre as duas guarucaias que se elevavam à margem da estrada, na garganta da mata, a moça principiava a suspirar, já de saudades. De tarde, ficava a esperá-lo à porta do rancho: e quando ele surgia, então ela dava de correr-lhe ao encontro, alegre que nem uma aleluia. Está-se vendo que vida melhor só no paraíso!

Mas o tempo dos frios chegou, anunciado desde o começo por umas ventanias bravas que acurvavam o lindo arvoredo dos arredores. Morreram as rosas do jardim do rancho. Os céus vestiram-se de cambraia, e a mata de luto. Daí por diante, dia a dia, caiu geada que foi um despotismo, consoante o falar dos caipiras vizinhos. A Nanica sentia-se intanguida: o próprio fogo das fogueiras como que já não esquentava. E como a pousada se erguia à boca de um vale, entre duas montanhas que pouco distavam uma na outra, o rugir do vento afunilado no vale era mais do que triste, doloroso. Ao aparecer o sol (que no dizer daqueles caipiras é o capote dos pobres), os dois amantes saíam a aquecer-se aos raios dele: no terreiro, ficavam separados, como se entre ambos se entendesse um lençol de água gelada. E as horas sucediam-se monótonas.

Uma vez, meado o dia, e na ausência do José, acercou-se do rancho um guapo moço, que teve para com a Nanica a mais requintada cortesia que se pode imaginar. Começou fazendo-lhe um cumprimento rasgado, ao estacar o cavalo pampa; achou-a depois, cativante; perguntou-lhe, depois, se aceitava umas violetas vivas, com o que ela muito se admirou, chegando a inquiri-lo: 

— Adonde o senhor mora ainda há flores que não murcharam?

— Há, respondeu-lhe o guapo moço: não são tão bonitas como a senhora, mas enfim não têm nada murcho.

— E adonde é que o senhor mora, ainda que mal lhe pergunte?

— Pergunta bem. Não é longe, mas também não é perto demais.

A Nanica olhava-o meio de relance; percebeu que ele era um rico rapaz, porque num animal que encapotava a todo instante e, sobre encapotar, marchava com a cara virada de uma banda: os seus arreios luziam; suas caçambas eram de prata; seu bucal, outro tanto; o relho, a mesma coisa! Na garupa do pampa morria derradeira dobra de uma capa de veludo.

Com pouco apareceu o pajem, numa esperta mula ferreira, e o patrão meneou a rédea, para se ir ao caminho. Antes, porém, de o fazer, indagou:

— Se não fosse afoiteza minha, eu desejaria saber o seu nome.

Ao que ela respondeu:

— Nenhuma. Sou Mariana, sua criada, por apelido Nanica.

— Criada de Deus, que lhe dará bom pago.

Despediram-se: e foi só o que conversaram, naquela ocasião.

Não tardou, entretanto, que o guapo moço voltasse ao dito rancho, e à mesma hora. E como a nortada gemia de contínuo ao longo do vale, enregelando-o, a Nanica ansiou a deliciosa quentura de uma boa casa em povoada, e que lhe fora oferecida com alta gentileza: um dia, pois, abriu-se. 

O José das Perovas por um bocadinho não enlouquece. Doeu-lhe aquilo tal e qual um golpe dos mais doídos. O amor que tinha era tão de raiz, que ali se deixou ficar uma temporada, no mesmo ninho, calculando que a Nanica talvez voltasse ainda. Ela, porém, não voltou nunca mais; o José fez-se ao largo afinal: e ao sair daquele retiro, onde os ventos, esbarrando uns nos outros, zuniam lamentosamente, uma porção de lágrimas se lhe foi derivando pelo rosto a fora.

Mas não há quem não saiba que tudo passa na terra. A sua dor, de funda que era, atenuou-se numa como surdina de saudades.

Voltou ao pândego viver de São Domingos. E nos cateretês, de novo, não havia quem pudesse gabar-se de levar as lampas ao José: para sapatear com graça, ele estava apartado; para rasgar o pinho, como ele ninguém.

Quando, contudo, o bulício diminuía nas varandas das festas, quando os parceiros descansavam, o José das Perovas, a um canto qualquer, encolhia-se que nem um bico-de-latão ao cerrar da noite.

Seguido, acontecia que um dos folgazões o interpelava:

— Que diacho é lá isso, José? Você está a modos de jururu.

— Qual nada! Volvia ele ao outro: estou cansado, isso sim.

— Não está, não é: você o que tem é cócegas no coranchim por amor da Nanica.

— Juro que não é! Juro! Juro!

Assim lhe corria a vida, até o momento de se encostar aos travesseiros. Nesse momento, ao rezar, ele pedia a Deus perdão de haver jurado falso, e rogava-lhe: 

— Senhor Deus de misericórdia! Já que esta paixa não me sai de dentro, ao menos fazei que a Nanica volte! Eu já não posso mais comigo, Senhor Deus de misericórdia!

Fosse pelo que fosse, um dia ela voltou!

O José das Perovas por um bocadinho não enlouquece. Arrodeava a ingrata arrependida, meigo nas mãos, na voz e nos olhos. E como a Nanica desse de chorar, de pura comoção, ele enxugava-lhe as lágrimas, carinhosíssimamente. Ficou tão possuído de alegria que chegou a resolver:

— Hoje havemos de dançar um baile às direitas, pois não havemos, meu amor?

— Seja tudo como você quiser – gorgeou ela.

Mandou-se chamar o Romão, sanfoneiro endemoninhado que assistia pertinho, combinou-se tudo, e o baile principiou quando a noite principiou.

Lá pelas tantas horas, ouviu-se um tropel de cavalos na rua, que veio morrer mesmo à porta do pagode. O José das Perovas apareceu a receber quem quer que era, ao que lhe perguntaram do lado de fora:

— Não está aqui uma moça conhecida por Nanica?

— Está. Para quê? – interrogou o José.

— Porque eu e mais o camarada viemos buscá-la.

— Então entrem, entrem.

Logo que eles entraram, o José das Perovas tomou dum refle que tinha, em cujo manejo era mestre, e ordenou:

— Agora vosmecês hão de mas é dançar conosco.

E não houve outro jeito. O guapo moço, xavi que nem um gambá torrado, teve que fazer pé de alferes a noite inteira, e seu pajem também.

Assim que arraiou o dia, o José das Perovas falou-lhes:

— Podem-se ir agora, vão-se e não se lembrem mais de aprontar outra!

Eles não se lembraram até hoje: e o José e a Nanica vivem felizes e juntinhos, tal e qual um par de vevuías.

Se no meio de uma prosa alguém acerta de recordar o nome deles, há uma pessoa que se não esquece de dizer:

— Vejam só que força não tem o primeiro rabicho!

Mutirão (Conto), de Valdomiro Silveira


Mutirão

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Tovaca das grandes já cantou na mata-virgem, surucuá do peito amarelo já deu seus garganteados lá para as bandas do morro, e o sol está sai-não-sai. Faz um tempo de encantar. Nhô João da Grota, que é quem mais madruga por estes cafundós, já andou corre-correndo a invernada, para tocar as vacas pro curral, e está de volta, com o nariz vermelho por causa do frio; dendem, sua mulherzinha, pequetita e franzina, mas engraçada que em uma maravilha das mais miúdas, aprontou o chá de congonha e ficou esperando-o.

Assim que ele apontou, dendem botou a bandeja de chá com broinhas de fubá mimoso em riba da mesa; e enquanto o bule ainda está abafado, para ficar bom às direitas, ela vai arranjar um picuá com virado de galinha, porque nhô João da Grota convocou mutirão para uma derrubada. Ele chegou, entrou, sentou-se junto à mesa, e pegou a tratar de adquirir sustância para serviço até a hora do almoço; e nem bem acabou de bater a última broinha e engolir a derradeira xícara de chá, foi, renteando com a cerca, olhar se as vacas estavam comendo as espigas de milho do costume; depois, voltou, garrou o picuá e a ferramenta, e abalou para o espigão da derrubada.

Agora o sol já mostrou um ar de sua graça; uns fiinhos de luz riscaram as montanhas. A passarinhada gorgeia que é um Deus nos acuda. Os piripixios, revoando dois a dois por cima dos carurus amadurados, não têm mais propósito e pintam a manta; têm sabiás os arvoredos, que a gente chega a perder a conta deles; tirivas grasnam poderosamente; saíras pulam, bicando as frutas. Um tucano dos grandes, num voo vagaroso e cheio de importância, acaba de passar pelo meio da passarinhada, sentou um galho de juvévé; olhou de roda, e como está fomento, desceu a uma fruteira.

Nhô João da Grota ouvia tudo e nada via; baixava o olhar ao chão e ruminava projetos e mais projetos; a madeira que estava jurada de cair, daria um tanto; a lenha, outro tanto quase; e depois, quando estivesse tudo escampo, havia de plantar uns dez mil pés de café; quando o café pegasse a dar, − então, Jesus! − não haveria mãos a medir. Já tão longe deste mundo, que não percebeu a meia risada que os parceiros do mutirão soltaram, ao vê-lo passando arcado e banzando de tal jeito no sossego do caminho. Afastara-se bastante de casa, fronteava uma capaúva grandalhona, quando ouviu a voz do Maneco Furquim, que isto dizia:

— Nhô João! Ó nhô João! Espere a gente! Já se acha tão rico e soberbo que nem vê os pobrinhos?

Ficou enleado e sem ter coisa que servisse de resposta. Voltou-se para os lados de onde rompera a voz, e qual não foi o seu espanto, ao notar que a companheirada vinha ali, tendo-o por certo visto passar! E ele não a vira! Até gaguejou. Foi-se repondo, entretanto, pouco a pouco, a ponto de caçoar com os caboclos, atirando-lhes pilhérias cheias de afeto. A um chamava araponga, porque o via com a cabeça branca, branca; a segundo, que ladeava este, graúna, por ter pelo contrário o coco preto, preto; a outro, paca das mais guasqueiras, por andar ainda àquela hora, meia do dia, meia da noite. E as gargalhadas espalhavam-se no seio quieto da mata por onde seguiam.

O frio estava tinindo! Cada qual trazia seu ponche, seu xale-manta, sua japona, seu pala; e como de prevenção cada qual trouxera também os pés bem enfiados em sapatos ou tamancos, o rumor que levantavam, andando e gargalhando, parecia o de uma tropa de potros que estivesse a correr e relinchar por uma invernada – sem comparar uma coisa com a outra! O Chiquinho Gázeo, que dava mostras de ser o mais friento de todos, até batia a fila de dentes de cima com a de baixo, semelhando um sujeito amaleitado; o Rufino, magricela por amor de uma asma que nunca o largava, ia dizendo suas frases com a voz meio encoberta pela pieira; os demais nada diziam.

Apareceu o valo que marcava o princípio das terras de nhô João. Beirando-o desde a cerca de varas, chegava-se a uma aguada que as taiovas escondiam pela metade; era aí que devia de começar a forte lida. Chegados, pois, nhô João pôs à vista de todos uma bojuda garrafa de caninha, daquelas que fazem a gente vidrar os olhos, de tão gostosa; e, um por um, deram sua boquinha no gargalo. Afiaram as foices, só por luxo, porque elas vinham finas de véspera, experimentaram os machados, e o capitão do bando berrou:

— Um! Dois! Três!

À terceira palavra, a foiçaria desceu direito. Aquilo é que era zé-povinho cumba pro serviço! Tudo batia num só compasso, e firme até ali. Podia-se ouvir facilmente, numas cem braças em redor, o pausado resfolegar de todos os peitos; e o matinho baixo, então, mais se baixava, como por encanto, acumulando-se em pequenos feixes que erguiam ao ar a brancura igual das hásteas cortadas. Daí a nada, também, já estava tudo raso. Chegou-se ao matão feio. O garrafão de caninha andou outra vez de déu em déu. Sumiram-se as foices e os machados apareceram. E a forte lida continuou na mesma toada que dantes; com a diferença que agora, numas quinhentas braças em redondo, se poderiam ouvir as crebras machadadas. Alguns passarinhos protestavam, gritando, contra aquela invasão; mas ninguém dava fé, sequer, de tamanha e tão tola arrelia.

A espaços, vibravam dentre o barulho pedidos como este:

— Mané Guarirova, canta uma moda!

— Uma moda bem terna, Mané Guarirova! 

— Bem chorosa!

— Bem tremida!

O Mané Guarirova, fazendo-se surdo, prosseguia no trabalho, com afã. Quem o visse tão absorvido na lavra, mostrando-se mourejador como poucos, não seria capaz de adivinhar que ali se achava o cabra mais entusiasmado dos cateretês. Por isso mesmo lhe rogavam que cantasse. Os que rogavam não perderam seu tempo; a voz bonita daquele danado alteou-se regaladamente, com intervalos curtos regulados ao lascar das madeiras. A primeira moda foi assim:

“Tico-tico lari no quilão,
‘tá batendo c’o bico no chão,
andorinha fazendo verão,

por isso é que eu sempre digo:
querer bem não é bom, não,
ai!
querer bem não é bom, não!”

— Essa não serve, Guarirova! − lhe disseram, logo que terminou a trova.

— Por quê? – inquiriu ele.

— Porque é moda do norte, e aqui não há ninguém de lá.

— Então boto outra.

E de fato cantou por esta forma:

“Vai serrar pau de pinho
e também de canela,
pra fazer cinco portas,
vinte e cinco janelas;

pra matar a saudade,
que eu não posso mais co’ela:
puxa a serra, Mariana!
puxa a serra, Mariana!”

— Essa também é do norte, não serve! Foi o que lhe observaram.

— Pois do norte sou eu – rotorquiu ele; e sirvo muito!

— Olhem só a prosa!

— Pois se vocês bem sabem!

— Está bom. Cante uma modinha.

— Como coisa que sou agora algum sabiá. É cantar e mais cantar! Quem tem boca...

— Vai a Roma.

−... Não manda soprar, que ainda é melhor e mais importante.

Entrementes o sol fora subindo, subindo; já seus raios caíam direitinho sobre os troncos das perovas, de alto a baixo, o que vale dizer que podia ser meio-dia. A caboclada suava à grande: o próprio guarirova, destemido como raros, já tinha a testa orvalhada e a camisa de meia pingando. Nhô João da Grota convidou tudo para o almoço, o que foi uma ideia esplêndida, pois ninguém mais bateu machado nos arvoredos. Agruparam-se os parceiros à roda dos caldeirões enormes, que

fumegavam cheirosamente, e era de ver o jeito aforçurado de cada qual. Levantavam-se afirmações deste teor, a todo instante:

— Arre! Que já não posso mais!

— A fome é negra e maligna, nhô João da Grota!

— Estou com o rato no paiol, nhô João!

— Nhô João, quase morro de fraqueza!

Houve tempo e lugar para todas as coisas. Queixas não apareceram; muito pelo contrário, quando nhô João trouxe nova carregação de pinga, da tal que fazia vidrar os olhos vários corações agradecidos não se puderam conter:

— Mas você é um anjo, nhô João!

— Nhô João, você é um demônio tentador!

E outros e outros ditos, ao fim dos quais veio o café com mistura. Biscoitos, brevidades, bolos de arroz, o que de melhor se imagina para sobremesa de almoço, nada faltou naquele. Ao erguerem-se todos, cheios e fartos, não foram poucos os que sentiram bambas as pernas. O que logo passou, afinal, porque, por amor do serviço, ninguém quis quebrar as munhecas às direitas. E todos andaram, cantando:

“Quando eu for para a cadeia
levarei meu garrafão,
fão, fão;
não quero que ninguém me prenda,
oléré!
debaixo de seu pilão.”

A faina continuou como dantes. Guarucaias, vamirins, tapiás, caneleiras, corações, canjaranas, iam caindo uma a uma todas as árvores do espigão. Apenas uma tira, nada mais, restava para derrubar; e quando foi três horas, se tanto! – o alto do morro surgiu, embranquecido dos troncos que patenteavam lascas recentíssimas. Nada mais! Nada mais! – e a parceirada, juntando a ferramenta, reuniu-se a repousar, entre dois canchins grossos. O sol tremia no céu, quente e bravo; mas ali no meio das ramarias ainda verdes, havia uma frescura de encantar.

O Maneco Furquim, pegando do garrafão, cantou:

“Viva o cravo, viva a rosa,
viva a flor de maravilha,
viva o nosso João da Grota
e toda a sua família!”

A parceirada acompanhou, firme na toada. Depois, como estava tudo feito, cada qual tratou de abalar para seus pagos: o grupo desceu do morro, alegre que nem um bando de araguarís em fruteira, e nhô João da Grota vinha mais alegre do que todos.

Ao chegar à casa, sozinho, que os companheiros se tinham espalhado para diferentes rumos, falou à dendem, que labutava risonha e corada como uma aurora:

— Agora, sim, podemos esperar nossos filhos sem susto; o nosso futuro lá está, naquele espigão.

E aproximando-se dela, ainda mais, falou-lhe ao ouvido:

— Não precisamos agora de estar fugindo das luas!

À hora da prisão (Conto), de Valdomiro Silveira


À hora da prisão

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Sempre foi uma atroada, a mulher do Silvano. Bonita, isso então era até ali, mas até ali também ia a falta de juízo e parava. Nunca se viu coisa semelhante nos arredores! Moravam no capim, e a Brígida – foi o nome que lhe deram à pia do batismo – vivia entre os dentes de meio mundo: não havia quase quem não tivesse qualquer coisa a dizer de mal da mesma. As mulheres tinham-lhe uma jeriza danada, e falavam de raiva ou ciúmes; os homens falavam por falar; e saíam horrores a respeito dela.

Antes de se fechar o trato do casamento, avisaram ao Silvano que não caísse desse cavalo; raparigas formosas não faltam, agora o que não é muito fácil é o encontrarem-se formosas que o mesmo tempo sejam honestas e trabalhadeiras. Ora ninguém ousaria clamar contra a honra da Brígida, que andava guardada às sete chaves dos cuidados da mãe: mas, enfim, que diabo? − uma criatura que, quando vai ao arraial, está só voltando a cara pra trás e reparando em quanto moço vê, não pode ter muito pano na carapuça, e deste modo procedia ela.

O Silvano parece que não deu fé: se desse fé, teria antes pedido a Deus um bom morrer! A uns e outros retorquiu que a Brígida, por morar num fundo de roça, ficava curiosa, em chegando ao povoado, e pegava a atentar em todos os desconhecidos – moços e velhos, bem-compostos e feios. E também ela não lhe jurara amor ainda, e por consequência podia olhar a quem mais lhe aprouvesse. Teimou, bateu pé, e casou-se.

Não lhe tardaram os desgostos. A mulher, falando com certos sujeitinhos meio pelintras da redondeza, mudava completamente de tom; a voz tornava-se-lhe mais vagarosa, o olhar mais quebrado, o gesto mais cheio de fogo; tinha algumas conversas pouco permitidas à gente séria, uns risos escancarados, um andar bambo e provocador. Aparecendo-lhe um folgazão dos de fama, em casa, aceitava logo convite para cantarem modas, e ali em presença do Silvano ferravam direito na toada; mas afinal aquilo tudo tinha jeito de não ter segundas intenções, porque era tão inocente, e o Silvano ia aguentando.

Saiu um dia para São Pedro do Turvo, e nesse dia voltou, vindo encontrar em casa o Ernesto Carreiro, que corria como antigo namorado da Brígida. A prova que estavam tendo nada mostrava de ruim; porém não gostou de ver o Ernesto em casa, sabendo às claras, que ele durante muito tempo arrodeara a moça, com pouca resolução e coragem de pedi-la em casamento: não gostou, mas nada tugiu, fez cara alegre para o Ernesto e para a Brígida e tudo assim ficou.

Chegara-se ao fim de dezembro. Apesar de umas chuvas que de quando em quando caíam, o Silvano continuou no serviço de cinco alqueires de roça que empreitara: afastava-se do rancho à ruiva do amanhecer e voltava à ruiva do sol posto, porque era um mouro para o trabalho. Um dia, como de novo achasse de prática a mulher e o Ernesto, e logo que este se foi, falou à Brígida, com toda a brandura e amor, que evitasse tais visitas quando ele estivesse fora. Não duvidava de sua querida mulherzinha (e afagava-a), mas enfim ela não desconhecia que o Ernesto a namorara no passado, e havia muita língua má no mundo que seria capaz de inventar baixezas e dizê-las à conta dela.

Aquilo foi um tempo quente! A Brígida fitou nele uns olhos queimantes de fúria; não fosse tirá-la à mãe, se desconfiava dela! Conhecia ao Carreiro desde pequenina, pois era muito mais criança que ele, tinha muita liberdade, mas cada qual sabia do seu lugar. O Silvano, ao vê-la iracunda assim (que ela então se tornava mais tentadora do que nunca), nada mais fez do que beijá-la, abraçá-la, cobri-la de festinhas, prometendo-lhe que não lhe tocaria, de futuro, em tais amofinações. Ela ameigou o semblante, chorou seu pouco, e ele também não deixou de sentir os olhos um tanto aguados.

A noite do Natal rompeu linda que dava para encantar. São Pedro é longe, por isso quase ninguém assistiu à missa do galo; mas o Zequinha Floriano fez uma reza, e depois da reza havia de haver um fandango. Houve o fandango – dos que são capazes de deixar um soalho partido! – e o Silvano e a mulher estiveram rentinhos. Nem bem escureceu, já o povo principiou a aparecer; até hoje muitos se recordam da quantidade de violas que se via naquela função, e ficam admirados.

O Ernesto era triste para rasgar o pinho, cuera de verdade! Em se lembrando alguém dalgum divertimento, ouvia logo a recomendação:

— Não vá faltar o Ernesto Carreiro!

E não faltava em pagode nenhum, o dianho, não faltava. Todos o queriam para animar as reuniões; mutirão em que ele não estivesse, perdia metade do valor, e a moçada fugia de tal mutirão, de modo que o serviço perigava. Agrados e carinhos, todos os faziam ao malvado, e ele ia só serenando no bairro do capim, lisonjeado com tanta contemplação. Foi, pois, à reza do Zequinha Floriano, depois de haver tomado uma cabriúva, para limpar a garganta, e ninguém teve coragem de cantar antes dele; também, que voz macia nosso senhor lhe dera, que voz!

A Brígida, logo que o viu de lenço de setineta no pescoço, flor no chapéu novo, lacinho de fita de nobreza na viola, não sossegou mais. Olhava um minuto ao marido e meia hora ao Ernesto; quando este agarrou a cantar, ela sentiu-se amolentada da cabeça até os pés e pegou a apanhar laranja, até no sapateado; o Silvano, que era seu parceiro no fandango, pediu-lhe que reparasse na dança e não errasse daquele feitio. E muito embora forcejasse por ter paciência, o coitado estava com uns apertos no coração, que lhe doíam demais; houve um instante, quando estavam dando a volta, em que rogou à mulher, pelo amor de Deus, que não o atormentasse e fugisse de chocar tanto o folgazão. Ela deu no corpo um galeio de enfado, e continuou no mesmo sistema.

O Silvano estava de peito cortado: fazer-lhe a Brígida tamanha ingratidão, à vista do pavaréu, foi coisa que o deixou louco de tristeza e de zanga; apesar de ser um rapaz assentado, e não ter por costume virar, aproximou-se da dona da casa, logo que a primeira moda se acabou, e pediu uma queimada. Bebeu quase um martelo, duma vezada só; daí a pouco rugiam-lhe os ouvidos, as pálpebras tornavam-se-lhe preguiçosas e um enorme desejo de vozear alto como que o engasgava; ao em vez, porém, de fazer alarido e praguejar, sentou-se a um canto da sala, contemplativo, e pôs-se a pitar um cigarro que não tinha fim.

Nessa ocasião, o Bertoldo, também cantador afamado, empunhou a viola e disse:

— Companheirada, vamos tirar outra irara!

Todos se foram juntando, e as de saia eram as mais influídas. A Brígida, convidada pelo Ernesto Carreiro e sem consultar ao marido, ficou à frente do antigo namorado, como uma das primeiras. O Bertoldo gargarejou uma das modas pândegas e chulas que sabia, e o palmeio parece que começou num frenesi de loucura. O Silvano, então, pinchou ao largo o cigarro de macaia que não se acendia, e perfilou o tronco; o olhar queimava-lhe; as mãos tremiam-lhe; a sala como que se esvaziara, ficando apenas, para ele, a mulher e o maldito Carreiro... 

Depois, quando os viu falar assim de certo jeito, um à orelha do outro, no meio mesmo da dança não pôde conter-se mais: levantou-se que nem uma fera, puxou da cinta a garrucha fulminante, aproximou-se do rival e desfechou-lhe um tiro à queima-roupa. O tiro varou o queixo do Ernesto Carreiro, que foi caindo ao soalho, numa lagoa vermelha. O Silvano atirou a garrucha para o canto em que estivera, e pôs-se a remirar a Brígida, como se nada tivesse acontecido; e vendo-a branca tal e qual a cal da parede, as lágrimas deram de lhe correr pela cara abaixo, aos pares. Um silêncio terrível se fizera.

O Zequinha Floriano, rompendo da cozinha, intimou-lhe:

— Está preso à ordem do subdelegado!

Cercaram-no quase todos os caboclos, amarraram-no, magoaram-lhe as carnes: e ele, apatetado e lerdo, parecia não compreender o que lhe estavam aprontando. Assim, porém, que o mandaram sair, para ser conduzido à cadeia de São Pedro, uma dor cruciante como que lhe tomou a garganta inteira. Soluçou que nem um perdido, que nem um louco, e ao ver a mulher, que de longe o espiava, aterrorizada e pálida ainda, gritou-lhe:

— Você perdoa, Brígida, você perdoa?