Notas biográficas do novo Deputado
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O coronel recusou a sopa.
— Que é isso, Juca? Está doente?
O coronel coçou o queixo. Revirou os
olhos. Quebrou um palito. Deu um estalo com a língua.
— Que é que você tem, homem de Deus?
O coronel não disse nada. Tirou uma
carta do bolso de dentro. Pôs os óculos. Começou a ler:
Excelentíssimo
senhor coronel Juca.
— De quem é?
— Do administrador da Santa Inácia.
— Já sei. Geada?
— Escute. Excelentíssimo senhor coronel Juca. Respeitosas Saudações. Em primeiro
lugar Saúdo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta respeitosamente
comunicar para vossa excelência que o cafezal novo agradeceu bastante as
chuvarada desta semana. E tal e tal e tal. Me acho doente diversos incômodos divido o serviço.
— Coitado.
— Mas não é isso. O major Domingo Netto mandou buscar a vacca... Ó senhor! Não acho...
— Na outra página, Juca.
— Está aqui. Vá escutando. Em último lugar, vos communico que o seu
comprade João Intaliano morreu...
— Meu Deus, não diga?!
—...morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos
recolhi em casa o vosso afilhado e orpham Gennarinho. Pesso para V.E. que me
mande dizer o distino e tal. E agora, mulher?
Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole
de água. Mandou levar a sopa.
— E então?
Dona Nequinha passou a língua nos
lábios. Levantou a tampa da farinheira. Arranjou o virote.
— E então? Que é que eu respondo?
Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou.
E depois:
— Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não
coma o torresmo que faz mal. Amanhã você responde. E deixe-se de
extravagâncias.
Gennarinho desceu na estação da
Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante. De chapéu vermelho.
Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais velho do administrador. E com uma
carta para o Coronel J. Peixoto de Faria.
Tomou o coche Hudson que estava à sua
espera.
Veio desde a estação até a Avenida
Higienópolis com a cabeça para fora do automóvel soltando cusparadas. Apertou o
dedo no portão. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando.
— Tire o chapéu.
Tirou.
— Diga boa noite.
Disse.
— Beije a mão dos padrinhos.
Beijou.
— Limpe o nariz.
Limpou com o chapéu.
— Pronto, Nhãzinha. A telefonista
cortou. Chegou anteontem. Espertinho como ele só. Nem você imagina. Tem nove
anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com dó dele. Pois é. Coitadinho. Imagine.
Pois é. Faz de conta que é um filho. Já estou querendo bem mesmo. Gennarinho. O
quê? É sim. Nome meio esquisito. Também acho. O Juca está que não pode mais de
satisfeito. Ele que sempre desejou ter tanto um filho, não é? Pois então.
Nasceu no Brás. O pai era não sei o quê. Estava na fazenda há cinco anos já.
Bom, Nhãzinha. O Juca está me chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O
mesmo. Até amanhã. Ah! Ah! Ah Imagine! Nesta idade!... Até amanhã, Nhãzinha.
Que é que você queria, Juca?
— Agora é tarde. Você não sabe o que
perdeu.
— O Gennarinho, é?
— Diabinho de menino! Querendo a toda
força levantar a saia da Atsué.
— Mas isso não está direito, Juca. Vou
já e já...
— É. Direito não está mesmo. Mas é
engraçado.
-...dar
uns tapas nele.
— Não faça isso, ora essa! Dar à toa
no menino!
— Não é à toa, Juca.
— Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo
dou, sabe? Eu tenho mais jeito.
Um dia na mesa o coronel implicou:
— Esse negócio de Gennarinho não está
certo. Gennarinho não é nome de gente. Você agora passa a se chamar Januário que é a tradução. Eu já indaguei. Ouviu? Eta
menino impossível! Sente-se já aí direito! Você passa a se chamar Januário.
Ouviu?
— Ouvi.
— Não é assim que se responde. Diga
sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim senhor.
— Ouvi, sim senhor coronel!
Dona Nequinha riu como uma perdida. Da
resposta e da continência.
Uma noite na cama Dona Nequinha
perguntou:
— Juca: você já pensou no futuro do
menino?
O coronel estava dorme não dorme.
Respondeu bocejando:
— Já-á-á!...
— Que é que você resolveu?
O coronel levou um susto.
— O quê? Resolveu o quê?
— O futuro do menino, homem de Deus!
— Ahn!...
— Responda.
O coronel coçou primeiro o pescoço.
— Para falar a verdade, Nequinha,
ainda não resolvi nada.
O suspiro desanimado da consorte foi
um protesto contra tamanha indecisão.
— Mas você não há de querer que ele
cresça um vagabundo, eu espero.
— Pois está visto que não quero.
Aproveitando o silêncio o despertador
bateu mais forte no criado-mudo. Dona Nequinha ajeitou o travesseiro. São José
dentro de sua redoma espiou o voo de dois pernilongos.
— Eu acho que... Apague a luz que está
me incomodando.
— Pronto. Acho o quê?
— Eu acho que a primeira coisa que se
deve fazer é meter o menino num colégio.
— Num colégio de padres.
— É.
— Eu sou católica. Você também é. O
Januário também será.
— Muito bem...
— Você parece que está dizendo isso
assim sem muito entusiasmo...
Era sono.
— Amanhã-ã-ã... ai! ai!... nós vemos
isso direito, Nequinha...
Até o coronel ajudou a aprontar o
Januário. Foi quem pôs ordem na cabelada cor de abóbora. Na terceira tentativa
fez uma risca bem no meio da cabeça.
— Agora só falta a merenda.
Dona Nequinha preparou logo. Pão
francês. Goiabada Pesqueira. Queijo Palmira.
— Diga pro Inácio tirar o automóvel. O
fechado.
A comoção era geral. Dona Nequinha
apertou mais uma vez a gravata azul do Januário. O coronel deu uma escovadela,
pensativo, no gorro. Januário fez uma cara de vítima.
— Vamos indo que está na hora.
Dona Nequinha (o coronel já se achava
no meio da escadaria de mármore carregando a pasta colegial) beijou mais uma
vez a testa do menino. Chuchurreadamente. Maternalmente.
— Vá, meu filhinho. E tenha muito
juízo, sim? Seja muito respeitador. Vá.
Todo compenetrado, de pescoço duro e
passo duro, Januário alcançou o coronel.
A meninada entrava no Ginásio de São
Bento em silêncio e beijava a mão do Senhor Reitor. Depois disparava pelos
corredores jogando os chapéus no ar. As aulas de portas abertas esperavam de
carteiras vazias. O berreiro sufocava o apito dos vigilantes.
— Cumprimente o Senhor Reitor.
D. Estanislau deu umas palmadinhas na
nuca do Januário. Januário tremeu.
— Crescidinho já. Muito bem. Muito
bem. Como se chama?
Januário não respondeu.
— Diga o seu nome para o Senhor
Reitor.
— Januário.
— Ah! Muito bem. Januário. Muito bem.
Januário de quê?
Januário estava louco para ir para o
recreio. Nem ouviu.
— Diga o seu nome todo, menino!
Com os olhos no coronel:
— Januário Peixoto de Faria.
O porteiro apareceu com uma sineta na
mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin-dlin!
O coronel seguiu para o São Paulo
Clube pensando em fazer testamento.
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