O monstro de rodas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
O Nino apareceu na porta. Teve um
arrepio. Levantou a gola do paletó.
— Ei, Pepino! Escuta só o frio!
Na sala discutiam agora a hora do
enterro. A Aída achava que de tarde ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho
dormindo no colo Dona Mariângela achava também. A fumaça do cachimbo do marido
ia dançar bem em cima do caixão.
— Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora!
Dona Nunzia descabelada enfiava o
lenço na boca.
— Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa
Senhora!
Sentada no chão a mulata oferecia o
copo de água de flor de laranja.
— Leva ela pra dentro!
— Não! Eu não quero! Eu... não...
quero!...
Mas o marido e o irmão a arrancaram da
cadeira e ela foi gritando para o quarto. Enxugaram-se lágrimas de dó.
— Coitada da Dona Nunzia!
A negra de sandália sem meia principiou
a segunda volta do terço.
— Ave Maria, cheia de graça, o Senhor...
Carrocinhas de padeiro derrapavam nos
paralelepípedos da Rua Sousa Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do
Arouche. Garoava na madrugada roxa.
—...da nossa morte. Amém. Padre Nosso
que estais no Céu...
O soldado espiou da porta. Seu
Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo. Dois bocejos. Três. Quatro.
—...de todo o mal. Amém.
A Aída levantou-se e foi espantar as
moscas do rosto do anjinho.
Cinco. Seis.
O violão e a flauta recolhendo de
farra emudeceram respeitosamente na calçada.
Na sala de jantar Pepino bebia cerveja
em companhia do Américo Zamponi (SALÃO
PALESTRA ITÁLIA — Engraxa-se na
perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio (— O
Tibúrcio... — O mulato? — Quem mais há de ser?)
— Quero só ver daqui a pouco a notícia
do Fanfulla. Deve cascar o
almofadinha.
— Xi, Pepino! Você é ainda muito
criança. Tu é ingênuo, rapaz. Não conhece a podridão da nossa imprensa. Que o
quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a Light. Pode matar sem
medo. É ou não é, Seu Zamponi?
Seu Américo Zamponi soltou um
palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão, bebeu, soltou mais outro palavrão,
cuspiu.
— É isso mesmo, Seu Zamponi, é isso
mesmo!
O caixãozinho cor-de-rosa com listas
prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da
vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aída, da
Josefina, da Margarida e da Linda.
— Não precisa ir depressa para as
moças não ficarem escangalhadas.
A Josefina na mão livre sustentava um
ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos
engomados, armados, um branco, um amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu.
O pessoal feminino da reserva
carregava dálias e palmas-de-são-josé. E na calçada os homens caminhavam
descobertos.
O Nino quis fechar com o Pepino uma
aposta de quinhentão.
— A gente vai contando os trouxas que
tiram o chapéu até a gente chegar no Araçá. Mais de cinquenta você ganha.
Menos, eu.
Mas o Pepino não quis. E pegaram uma
discussão sobre qual dos dois era o melhor: Friedenreich ou Feitiço.
— Deixa eu carregar agora, Josefina?
— Puxa, que fiteira! Só porque a gente
está chegando na Avenida Angélica. Que mania de se mostrar, que você tem!
O grilo fez continência. Automóveis
disparavam para o corso com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus
cumprimentavam dos ônibus, dos bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada.
Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já
havia arranjado três votos para as próximas eleições municipais.
— Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro,
mamãe!
Aída voltou com a chave do caixão
presa num lacinho de fita. Encontrou Dona Nunzia sentada na beira da cama
olhando o retrato que a Gazeta publicara.
Sozinha. Chorando.
— Que linda que era ela!
— Não vale a pena pensar mais nisso,
Dona Nunzia...
O pai tinha ido conversar com o
advogado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...