10/12/2017

O enterro do Elias (Conto), de Salomão Rovedo


O enterro do Elias

Deu-se no enterro de Elias aquilo que se costuma chamar de o imponderável. Apesar de trabalhar durante anos numa fábrica de cimento, em que existiam todos os equipamentos mais modernos, Elias sempre gostou de coisas do interior, costume que trouxe de herança dos pais, pacatos moradores de Penedo, onde nasceram, se criaram, casaram e tiveram este filho único, varão.

Depois de trabalhar quarenta anos na única fábrica da região, Elias se aposentou e foi morar sozinho na casa que os pais deixaram. Casou, é bem verdade, morou no Rio de Janeiro, é verdade, criou três filhas, também verdade, mas quando o casamento chegou naquele ponto em que as associações emperram, juntou os livros, discos, os recortes de jornais, números especiais de revistas, fotografias amarelas e propôs a única coisa sabidamente inútil para os demais: Vou para Penedo, alguém me acompanha?

Deu graças a Deus ter acertado pelo menos uma vez na vida: ninguém topou. Bom, pelo menos vão todos me visitar de vez em quando. Depois de ouvir vários pedidos para reconsiderar, pediu à filha mais velha que o levasse até à rodoviária. Arrumou as malas, beijou as filhas, a mulher e se mandou, com o único testamento: quando eu morrer quero ser enterrado lá no quintal da casa, debaixo do tamarindeiro.

Era conversa as correntes lembranças que Elias tinha daquele quintal, do pé de tamarindo. Não só dos tempos de menino, mas de adolescente e adulto. Ali namorei a sua mãe a primeira vez. E quantas e quantas outras também, pensava a mulher. Fiz muitos refrescos de tamarindo, mamãe fazia doce, mas era fruta também para uma batidinha gostosa, que abriu o apetite e as amizades de muita gente.

Em Penedo Elias arrumou uma empregada, Madalena, que servia também de secretária, empresária e marchant para a nova profissão que tinha escolhido: pintor. Em pouco tempo não a tratava mais como empregada, mas como amiga, confidente, companheira, mas nunca se casaram. Quanto aos parentes que ficaram no Rio de Janeiro, só se tornaram a ver nas visitas esporádicas, nos casamentos, nos enterros, eventos, enfim, que se tornam o único elo a balizar a existência de muitas pessoas.

Um dia Elias morreu (não tenham dúvida que isso há de ocorrer a todos nós). A família recebeu a notícia através de Madalena em pranto. Lá vão todos para Penedo enterrá-lo, apesar de já terem esquecido daquela determinação boba, que exigia ser enterrado sob o pé de tamarindo. Ele deixou até o lugar marcado, disse Madalena. E de fato lá estava enterrada a estaca com a ponta pintada de vermelho indicando-o. Na sala, ao contrário do ateliê de pintura entulhado de telas, havia um só quadro. Era o enorme tamarindeiro, de cujos galhos pendiam centenas de bagas verdes e marrons.

Quando os amigos e parentes chegaram o corpo de Elias tinha já tramitado por toda a penosa burocracia que envolve os cadáveres, ou seja, estava habilitado a ser enterrado. Madalena providenciou para que a cerimônia fosse breve e quanto o padre fazia as encomendas de praxe, a famosa soprano Adelaine Marinetti cantou uma ária triste, despedida de amiga. As filhas não notaram o olhar da esposa, idêntico ao de Madalena, não propriamente de agradecimento à cantora. Mas aceitaram sem outras reações e todos se dirigiram para o quintal onde estava imponente o tamarindeiro, esperando o seu dileto amigo.

Madalena indicou o ponto exato onde os homens deveriam cavar e aguardaram o trabalho fazendo orações, ouvindo algumas palavras de amigos, elogios, vozes de saudade que centenas de amigos queriam pronunciar, tomados de emoção. Era afinal Elias pessoa querida, não só no Rio de Janeiro, onde expunha seus quadros, mas principalmente na pequena Penedo, de onde era natural.

Em certo momento, porém, um dos operários chamou Madalena. De repente surgiu o problema: bem no local onde havia de ser enterrado o corpo, o tamarindeiro esticava sua poderosa e profunda raiz. Deu-se o jeito de cavar em volta da raiz, a única solução e lá se vai mais que os palmos necessários para enterrar o defunto. Muitos já se impacientavam, outros voltaram à casa para descansar, tanto da cerimônia quanto da viagem e todos esperavam retornar para o Rio de janeiro no mesmo dia.

Tudo pronto, o padre aspergiu algumas palavras de encomenda, junto com gotas de água benta. Ramos de flores e pétalas eram lenços de aceno para Elias, cujo caixão finalmente encaminhava-se para a cova. Só que, em lá chegando, mais um problema: não dava para o caixão passar, posto que a raiz teimosa encravasse os tentáculos-varizes no caminho, como se o tamarindeiro não quisesse receber o seu estimado amigo, filho e companheiro. Se cortar essa raiz a árvore certamente morrerá, disse o coveiro.

"Não tem jeito!" Diziam os operários que faziam às vezes de coveiros.

Inventaram todas as posições, puxa daqui, empurra dali, mas caixão não faz curva nem entorta, daí que não passava. A impaciência aumentava entre os presentes, alguns já se despediam, infelizmente não poderiam mais ficar. A tarde caía. Até que surgiu a ideia: corta! Como? Corta, sim, tirando esta pontinha, meio metro apenas, dá para passar e pronto, tá resolvido. Todos concordaram.

Mas, cortar o cadáver? Não idiotas! (o grito Não idiotas! não saiu, mas foi pensado): tira o Elias do caixão por um momento, corta esta parte, coloca o caixão lá dentro e depois vai o finado em seguida, sem problema. Ninguém teve coragem para protestar, todos na verdade queriam livrar-se logo daquele compromisso, exceto Madalena e o padre, que soltou um resmungo condenatório. A cantora lírica já se fora de volta para o Rio de Janeiro, depois de um beijo dramático. Compromissos. Não assistiu ao formidável enterro.

Cortaram o caixão um bom pedaço, na verdade ia quase até à metade, colocaram na cova. Sem a tampa? (Claro idiotas!). Lá embaixo arrumaram as duas partes, nem parecia que tinha sido serrado, pegaram o Elias, finalmente, com os cuidados necessários, mas o padre contrariado nem quis ver.

O corpo de Elias já havia adquirido, como se diz, o estado de rigidez cadavérica e foi difícil acomodar todo 1,80m e 90 kg. Sob a raiz, visto que curva mesmo não haveria de fazer. Chega pra lá, apruma pra cá, entorna o pescoço, dobra os sapatos, enfim, com rezas e arrumações foram depositando o cadáver a jeito, bem debaixo da raiz imensa. Desse jeito, diziam os coveiros, o belo pé de tamarindo jamais perderia o viço.

A plateia naturalmente diminuiu enquanto os coveiros se arranjavam para levar a missão ao fim. Viram mais uma vez o Elias mudado de posição, cabeça para lá, pés para cá, finalmente, poucos e depois ninguém mais viu como meteram o pobre corpo por debaixo da raiz, onde ele se acomodou como se fizesse parte da planta.

Quando jogaram a última pá de terra ninguém mais estava lá para ver.

Exceto Madalena, que ficou como herdeira da casa, dos quadros e do magnífico pé de tamarindo, que sobressaía naquela casa dos arredores de Penedo e está lá até hoje para quem quiser ver.


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Fonte:

Salomão Rovedo: O Sonhador. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)

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