10/12/2017

O mundo é pequeno (Conto), de Salomão Rovedo


O mundo é pequeno

“O meu nome é Amor, sou o deus Amor, desconhecido dos mortais, que ao enigma preferem o peso da verdade, proibido, por minha mãe, de casar com uma mulher, mesmo a mais bela e singela.”

Maria de Santa Cruz — Alma, A Noiva.


5ª FEIRA (A SALA SILENCIOSA)

Você deveria era escrever sobre nós.

Ela soltou essa frase em tom de crítica, quase gritando, condenando minha mania de escrever a respeito de tudo e todos menos sobre ela ou sobre nós, como ela enfatizou. Agora, relembrando aquele momento em que ela estava bem no meio da sala com a toalha enrolada no corpo molhado do banho, chorando por me ver mais uma vez arrumar a mala para partir, as lágrimas se misturando à água, a frase me veio à memória para não mais deixar. Não foi um detalhe de amor, a palavra característica, um gesto humano, não, foi aquela frase que até hoje permanece dentro de mim, uma segunda alma me martelando, enchendo o saco. Todo o quadro formado por aquele instante ficou arraigado na minha cabeça como velhas fotografias grudadas nos álbuns de cartolina. Não vejo jeito de esquecer a cena que tomou forma de palco, teatro, sem saber se aquilo era a vida real ou cinema, mera ilusão, vulto.

6ª FEIRA (O PASSADO CRESCE)

Sabe aquela história que todo escritor conta quando dá entrevista?

Escritor tem a mania de dizer que está sempre expulsando demônios de dentro dele. Parece jogador de futebol, atleta, lutador de boxe, donos do lugar-comum.
Aliás, pensando bem, não é só do escritor que detém o direito autoral dessa expressão não. Todo artista que se preza um dia confessa que a sua arte se resume em expulsar demônios. Pois bem senhores artistas, acho que vocês afinal têm razão. Tenho de confessar que a maldita fala dela me persegue como um demônio, por isso aqui estou tentando juntar tudo possível de ser contado para ver se o espírito dela me larga em paz. Livrar-me da história como o organismo se livra do amargor bilioso que acomete os excessos de bebedeira, vomitar, vomitar tudo.

SÁBADO (REORGANIZAÇÕES)

Sou nascido após a II Guerra Mundial e até os anos 1960 a vida foi uma adolescência sem fim. Provinciana mas ligada com o resto do mundo. Sentindo pulsar a cultura e a política, desde Getúlio Vargas – cuja morte soube na escola primária – até atravessar as eleições e as renúncias dos últimos presidentes escolhidos antes da quartelada de abril de 1964. Ouvi os últimos pronunciamentos da Rádio Nacional e a loucura que era fingir uma resistência besta diante de tanques do exército no palco do teatro montado pelo governador Carlos Lacerda. Gente que brincava de política e de golpe de estado, mas brincava com a nossa vida, não com a deles, que estava socialmente garantida por várias gerações. Hoje que tudo passou se vê que nenhum deles seria absolvido num Tribunal da História. E muitos mereciam el paredôn com que a Revolução Cubana justiçou seus inimigos...

2ª FEIRA (A VIDA NÃO PÁRA)

A travessia foi um sobreviver entre a loucura e resistência. E a partir daí, perdida a ingenuidade que fazia rir tanto do bigode de Carlitos quanto do de Hitler, a dureza de ser um brasileiro comum começou a pesar sobre os ombros... Vi na TV o homem caminhar na lua, vi a revolução de Fidel Castro tocar o pé na bunda de Fulgêncio Batista, vi Che Guevara ser assassinado na Bolívia, vi John Kennedy ser fuzilado no Texas e depois seu irmão Bobby seguir pelo mesmo caminho, vi Martin Luther King ser assassinado no palanque, vi Nelson Mandela sair da prisão e ser eleito Presidente da África do Sul. Os mortos e os fracos foram caindo pelo caminho no trem da existência.

Levá-los ao cemitério, sabê-los mortos – o filme.

3ª FEIRA (AO SOM DE BILLIE HOLLYDAY)

São os romances, peças e novelas de TV que frequentam o inconsciente sem autorização nenhuma, heróis como Dom Quixote, Orlando, Macunaíma, um Forrest Gump desses qualquer que vê a vida passar diante de si e mentalmente participa de todos os acontecimentos. Guerrilhas, revoluções, fome e fartura, em fulgurações indistintas de sonho e realidade, ficção e mentira, verdade e ilusão. Truque de magia que nem as partículas microssísmicas do gene nem nenhum exame de DNA pode explicar. Fazer parte dessa aventura toda é que dá força à vida.

4ª FEIRA (DIANTE DA TV)

Vi testes nucleares cada vez mais loucos, as bombas cada vez mais poderosas, arsenais capazes de destruir esta terrinha várias vezes, hippies protestando e tentando armar a vida psicodélica, ouvi o Festival de Woodstock, vi cair o muro de Berlim, vi Jânio Quadros de porre, vi construírem Brasília, ouvi Elis Regina cantar, vi os festivais da canção, a Jovem Guarda e a Guarda Vermelha, a Bossa Nova, a Tropicália, carreguei o corpo do estudante André Luiz, tomei pileques na última Lapa, li J.G. de Araújo Jorge, Jorge Amado, Gabriel Garcia Marques e O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcellos, amei muitas mulheres, escrevi versos.

4ª FEIRA (NOTICIÁRIO)

Alguns resistiram, entre eles Teddy Kennedy e eu (só para citar duas figuras díspares), na luta insana pela sobrevivência, para não sermos mortos vivemos enchendo diariamente a cara: ele do bom e velho Bourbon e eu das cachacinhas que me trazem de Minas Gerais, ele comendo churrasco de chuleta (steak bond) e as mulheres de Hollywood e eu comendo torresmo e as mulheres do Rio de Janeiro, ele rico herdeiro e eu pobre, pobre, pobre de marré, marré, marré, mercê...

5ª FEIRA (APÓS O DIA LONGO)

Não pensem que as coisas aconteceram numa ordem muito diferente do que foi narrado. Tudo foi assim mesmo caótico como caótico é ainda o mundo dirigido pelos loucos que nos governam e se vitaminam com guerras e matança, genocídio e suicídio, o Vietnã, a África, as invasões norte-americanas no Haiti, São Domingo, Panamá e outras republiquetas, as guerrilhas no Araguaia, os índios massacrados e por último o ano 2000 com as comemorações dos 500 anos do desembarque das tropas portuguesas em nosso litoral – o dia D de Lisboa. Começo a olhar esse passado trepado numa torre como livre atirador que não atira em ninguém, tendo como arma a máquina fotográfica, o cérebro, o corpo um tanto macerado, a próstata semeando caranguejos, o velho coração rateando como um motor usado, muito usado, queimando óleo 30 por causa das emoções, a última das quais deixei enrolada numa toalha de banho, no meio da sala, inexplicavelmente chorando porque tenho de partir.

6ª FEIRA (TOMANDO UM CHOPE)

Você deveria era escrever sobre nós. Como última praga, feitiço ou despacho de macumba, me jogou a frase que me persegue e vive como um demônio engasgado dentro de mim, um vômito que não quer sair, bílis de dia de ressaca, de muita bebedeira. A frase dita um dia em tom de crítica, condenava minha mania de escrever. Como num velho filme ficou também me perseguindo a imagem dela no meio da sala com a toalha de banho enrolada no corpo e uma touca estilo africano feita para secar os cabelos como as mulheres costumam usar. Mas por que as lágrimas? O que será que ela viu entremeando os trinta anos de idade que nos separam? O que ela sente por mim que vivo chegando e saindo como cigano de acampamento? Logo eu que nunca desarrumei a mala, nunca botei a roupa no cabide, nunca comprei travesseiro? O que ela viu que o espelho não mostra além dos cabelos brancos e escassos, da barriga proeminente provocada pelo excesso de consumo de cerveja, o jeito descuidado e puído das roupas e essa mania idiota de escrever ouvindo Beethoven ou Schubert, Art Tatum ou Lucienne Boyer, Elis Regina ou Billie Holiday, para sacralizar mais ainda o oceano de letra que nos cerca? Não carecia rogar essa praga, não, porque ler e escrever sobre todas essas coisas já é castigo bastante para qualquer mortal.

SÁBADO (SEM REVOLTA)

Quando cheguei ao Rio de janeiro era um moleque disposto a revolucionar o mundo, acabar com as injustiças, resolver todos os problemas do país. Assim foi e frequentei o tempo nebuloso dos protestos contra o imperialismo ianque, os banqueiros internacionais, incendiando as sedes metafísicas de trustes internos e externos. Mas esse fogo que arde em todos os espíritos jovens iria mesmo apagar-se no primeiro dia em que uma espada enferrujada do batalhão de Polícia Montada – ridículo no nome, mas violento na espécie – se abateu sobre minhas costas deixando o lanho de um canal disforme como os que aparecem nas fotografias da superfície de Marte, que tenho de carregar até hoje não sem certo orgulho. Desde então resolvi que truste nacional e internacional são irmãos, que o capitalista brasileiro não difere em canalhice dos outros, que o banqueiro é tão escroto aqui quanto na Suíça.

Que afinal é quase impossível diferenciar as atuações criminosas das legais desde que a máfia da Sicília, os bicheiros de Madureira, los hermanos de Santa Comba, os reis da cocaína, os membros das câmaras de deputados, vereadores e o Congresso Nacional se igualaram entre si como sócios da empresa multinacional e fantasma que ninguém vê, mas que existe em cada canto sentado num banquinho ou nas poltronas do Congresso Nacional.

DOMINGO (PÉ DE CACHIMBO)

Foi num Domingo igual a este quando descobri maravilhado que poderia mesmo gastar todas as minhas energias nos braços das mulheres, nos copos de chope escuro, nas linhas e entrelinhas dos escritos poéticos e jornalísticos, na fumaça azul do charuto, no tabuleiro de xadrez, percorrer ruas suburbanas e sonhos igualitários sem compromisso algum, irresponsavelmente irresponsável. Ser campesino de meu próprio destino. Pode? Na verdade foi como relembrar os tempos de coroinha, as liturgias, os passos religiosos da Semana Santa na cidadezinha onde fui criado. Os lampadários das minhas utopias foram sendo apagados um a um pelos acontecimentos do dia a dia, o altar mergulhado na penumbra, o aroma almiscarado do incenso no ar, decorar santificadamente o auto de Natal, presépio como ribalta, cenário de bonecos, pano de folhas verdes de murta.

2ª FEIRA (O DIA MARROM)

Aos quinze anos de idade já sabia tocar órgão, acompanhar e ensaiar o coral, declamar toda a liturgia da missa em latim. E a Semana Santa era o auge, a suprema realização de todas elas. Cristo na cruz apareceu para mim pleno, grandioso, humano, muito mais próximo da nossa realidade e algumas vezes mais guerrilheiro que Mao Tse Tung e Che Guevara juntos. Foi o momento em que o Evangelho, o Diário de Sierra Maestra e o Livro Vermelho começaram a ser levados a sério fundidos mentalmente num só volume, expurgadas as sandices que todos os humanos escrevem nos tempos de alucinação – desde Moisés até hoje. Imaginei como pensavam errados aqueles sonhadores que largaram tudo, o estudo, a família, os amigos, a atividade política e, sem saber que o futuro estava em suas mãos, pegaram em armas e foram para o Araguaia brincar de guerrilheiros.

3ª FEIRA (NA EXPOSIÇÃO DE PICASSO)

Comecei a pensar o tanto de mal que Che Guevara fez por nossa geração mandando-a ao sacrifício das armas quando poderia estar caminhando para a direção nacional do país nas décadas vindouras vencendo a guerrilha não pela força, mas inteligência. Era tempo que o destino havia nos reservado para tomar as rédeas do país das mãos de Cabral – o invasor – e não sabíamos disso, simplesmente não sabíamos. Da mesma maneira – lembrei – nos tempos remotos a.C. os rapazes largavam as cidades e a vida de pastor, comerciante ou escriba, para aventurar-se nos desertos em pregações mais revolucionárias que religiosas.

4ª FEIRA (RECITAL DE FRANCISCO MIGNONE)

E assim atravessei todos os dias dos anos 1960/1970, muito antes de imaginar que ela fosse aparecer na minha vida de forma avassaladora. Quer dizer, não foi bem assim: estou fazendo romance. Na verdade a coisa começou de mansinho, mas foi crescendo de forma violenta até atingir um volume de erupção forte para depois ir arrefecendo. Mas ninguém conseguiu se impor nem impor um ritmo de vida a respeito do qual cada um tinha suas próprias formas de elaborar. Foi como um porre que se toma para celebrar a vida. Eu ali tomei um porre de muitos meses, celebrando a vida, celebrando meus amigos vivos, celebrando os amigos que se foram, mas principalmente porque esse vulcão só mostrava que estávamos vivos.

5ª FEIRA (MEMÓRIA OU LOUCURA?)

Não, não dá para escrever sobre essas coisas. Simplesmente não dá.

Não aqui neste feriado cheio de sol, agora que estou sentado diante no mar na praia da Barra da Tijuca vendo as águas descaradamente verdes que chegam a ofuscar a vista, sentado numa cadeira dentro da areia com uma lata de cerveja bem gelada e disposto a viver a vida com a intensidade de quem já atravessou a primeira metade das emoções no terreno que lhe era destinado e sobreviveu à travessia do campo minado aonde era feita a sua guerra particular. É uma dessas horas que simplesmente não dá para fazer nada senão fitar o horizonte com olhos de pescador e jogar o pensamento na curva das ondas desesperadamente verdes. Não posso fazer nada meu amigo, é a vida.

6ª FEIRA (NO AEROPORTO...)

Porque essa reflexão impede de chegar até àquela noite e naquele lugar distante ao norte onde a temperatura anual fica sempre entre 30º e 35º acomodada pela brisa fresca que assopra de noite. Eu estava sozinho num bar trocando ideias com o dono da casa, sobre assuntos que só acometem quem está mesmo só e não tem o que fazer na noite, tentando recuperar as mazelas de um tempo que passou, coisa besta já se vê. Alguns novos amigos me descobriram ali e resolveram me arrastar para uma colônia de pesca a título de visitar outros amigos deles, claro. Fui para encontrar gente que queria mesmo era ficar sozinha, mas a solidão é danada quando se vive numa cidade nem tão grande que se possa sumir de vez nem tão pequena que se possa ficar sossegado a noite tomando cerveja num bar e conversando fiado com o dono do bar. Sempre alguém surge do nada para perturbar esse silêncio.

DOMINGO (NA MISSA)

Escuta, para se escrever sobre alguma coisa ou sobre pessoas precisa saber quem são, como são, o que são. Não podemos obrigar alguém que lê a saber das coisas que se passam internamente na cabeça do escritor. Escrever é traduzir pensamentos. Vamos organizar essa bagunça? Muito bem. Personagens: Eusa – tem 30 anos, morena, cabelos curtos, fuma, bebe, escreve, vive uma vida agitada pulando de braço em abraço, mas diz que sempre teve relacionamentos estáveis; Luzia, amiga e da mesma idade de

Eusa, casada com Artur vive um casamento típico, feliz entre brigas constantes, algumas violentas de parte a parte, tipo aquele casal que sempre briga mas nunca se separa; Artur, casado com Luzia, de família medianamente bem sucedida, mas cujo brilho se dirigiu mais para os irmãos, tem algumas dificuldades de sobreviver e agora é vendedor de produtos químicos, uma das muitas profissões que já frequentou; Marcão e Noela, Mário e Isolda, Alfredo e Márcia, grupo de casais semi-casados, namorados e afins que me tirou do bar como justificativa tentando alegrar minha visita à terra deles...

DOMINGO (MAIS TARDE)

Saindo daquele bar fomos – a turma formada de Marcão e Noela, Mário e Isolda, Alfredo e Márcia – ao encontro de Luzia e Artur e de lá seguimos todos para Manguezal, a colônia de pesca que referi atrás. Lá encontramos Eusa sozinha, querendo descansar não sei de quê mesmo sabendo que morava nessa cidade nem tão grande que se possa sumir de vez nem tão pequena que se possa ficar sossegado. Ainda mais tendo amigos que se comprazem em fazer tudo para tirar a fossa da cabeça de quem já não anda bem. Em resumo, Eusa estava era cheia de problemas de ordem sentimental. Separada recém procurou se esconder num lugar ermo isolando-se em leituras e músicas, esperando que o destino trouxesse a solução. Mas o que chegou, como se viu, foi um grupo de amigos barulhentos, com o carro cheio de bebida, carne, cigarro, música alta, para completar tudo com um churrasco de peixe e retirar todas as nuvens que pairavam sobre a cabeça dela. E eu.

5ª FEIRA (ESPAÇANDO OS DIAS)

Entre bebidas e músicas, gritarias e danças, apresentações e conversas, fomos fazendo uma amizade como quem tem algo para dizer ou complementar ao outro. Na madrugada ela me convidou para ver a pesca na praia, arrastão, cantoria de pescadores puxando a rede direto, suados, cheios de cachaça, para suportar o frio da água. Ou para nada disso... Quem sabe? Só que recusei. Por quê? Ela perguntou. Porque chegando lá naquele lugar escuro e romântico vou te agarrar, disse com ar de sátiro... Ela riu e perguntou: – Fazer mais o quê? – Te carregar no colo, te deitar no solo e te fazer mulher respondi em tom de piada repetindo a música popular. Ela se engasgou de tanto rir. Estávamos íntimos, mas na verdade não fomos. Só que faltou água em casa e foram os homens convocados para o trabalho. Eusa sabia onde era a fonte e foi com a gente, enquanto outros carregavam água ela resolveu tomar banho. Chamou-me: Vou banhar, algum problema?Por mim nenhum, respondi sem entender bem. Ela tirou toda a roupa e nuazinha se dirigiu para a fonte. Aí então entendi tudo mas fiquei na minha: armadilha! Chamou-me outra vez: Vem jogar água em mim. Fui. Tomou banho com sabonete e tudo, enxugou-se, vestiu-se. – Bom, agora é minha vez. Eu falei e tomei banho nu mas ela não veio jogar água em mim não.

6ª FEIRA (LEMBRANDO DELA)

Não dá, não dá mesmo para escrever assim, sob pressão. Nem quando estou no subúrbio na janela do apartamento de frente para os montes da Serra de Jacarepaguá vendo as nuvens da massa polar friorenta que vem do sul se enroscar com a mata que resta lá para cima depois das favelas trazendo um vento gelado e esquisito, constante, umedecendo um ou outro espaço verde remanescente da mata atlântica que se escoa entre as pedras, alimentando as veias de água que flui dos olhos d’água do topo, não simplesmente não dá.

Enfim, tenta-se. A festa foi animada e seguiu até madrugada alta. O dia daqui a pouco raiava e resolvi não dormir. Todos se arrumaram num canto em sofás, cadeiras, colchonetes, os casais em camas e redes – e todos dormiram sem se preocupar com os objetos largados de lado. O rádio continuou tocando música pela madrugada adentro embalando o sonho dos corpos cansados. Eusa mantinha um aparelho de som qualquer sempre ligado, música tocando sem preconceitos, mesmo quando não tinha ninguém em casa e isso me marcou: a música sempre fez parte da vida dela.

2ª FEIRA (UÍSQUE E CHARUTO)

No outro dia de manhã a praia ainda estava deserta, um ou outro pescador arriscando-se nas águas espumantes tentava arrancar algum sustento do mar exaurido. Arriscamos, eu e Eusinha (como comecei a chamá-la quando estávamos nus por causa de seus peitos pequenos), uma caminhada pela areia e entre o manguezal conversando muito sobre nós mesmos tentando descobrir afinidades. Os pés de mangue secos formavam figuras e animais mitológicos que saíam de nossa imaginação e nos seguiam curiosos para ver aonde aquilo tudo ia chegar. A maré descia e deixava nos desvãos da praia muitas piscinas feitas com a água cristalina que não retornava ao oceano. Eusa gostava de tomar banho nessas piscinas naturais e ficamos muito tempo sentados aproveitando a água cálida, nus naturalmente, trocando beijos e carinhos mas não passamos disso, apesar dos momentos quentes que se apossam de nós quando iniciamos uma nova relação amorosa sob o signo da paixão.

2ª FEIRA (AINDA SÓ)

Quando voltamos a casa estava deserta. Era segunda-feira, todos se tinham dado rumo, cada um a seus afazeres cotidianos. Estávamos sós e sem compromissos que não fossem os de férias, portanto não nos preocupamos com nada. A casa estava à nossa disposição e assim procuramos – sempre com o rádio ligado numa música, arrumar a bagunça da noite anterior e dar feição de habitabilidade na casa de praia... Depois fomos até a vila de pescadores, circulamos entre as casas de gente conhecida dela, fomos ao pequeno comércio da região providenciar água potável e algum alimento para comer.

3ª FEIRA (DEPOIS DA MEIA-NOITE)

Mais tarde lá para o meio-dia, hora em que estávamos fazendo um lanche (desjejum e almoço conjugados), chegaram Artur e Luzia. Serviram-se do nosso almoço e ficamos conversando até a hora de voltar para o centro, onde tinham afazeres. Luzia fazia faculdade de letras, estudava dança (o que justifica o conhecimento que tinha sobre dança do ventre). Cresceu tanto na dança e ficou tão conhecida que nas horas vagas montou uma escola. Gostava mais de dança do que de letras, era apaixonada. Troquei muitas ideias com ela do pouco que sabia e, bum! achamos nosso elo de afinidade. Não deixei de notar nela as olheiras e o rosto um pouco cansado. Pouco tempo depois ela já estava me contando os desmandos da vida de casal. Que fazer? Ouvir e falar alguma palavra, não de consolo, mas buscar transmitir uma visão mais adulta e impessoal desse universo. Brigas e ciúmes, eis de que são feitos os relacionamentos amorosos na terra, entre as paredes do quarto.

4ª FEIRA (COM RAIVA)

Depois não dei limite a minha censura e quantas vezes tive oportunidade todas às vezes critiquei esse pequeno mundo que se constrói a nossa volta para colher os frutos mais amargos do relacionamento que deveria ser uma existência amorosa. O que significou tê-la conhecido? A essa pergunta bem que gostaria de ter resposta, mas é impossível. Numa primeira noite conhecer alguém de maneira tão simples e depois levar essa amizade para o lado do amor não compromissado, isto é, como quem já sabe que vai acabar amanhã de manhã, espírito preparado, isto é uma coisa. As coisas porém levam tempo para acontecer e você, que estava esperando o desfecho para qualquer momento vê que tudo é muito lento, que as reações passam a ser outras, isto é outra coisa. Mas ter conhecido Eusinha foi o outro lado ignorado da convivência, como se verá...

5ª FEIRA (NO MÉDICO)

Espera aí. De repente você vê que já está ultrapassando os limites do tolerável, que tudo não era para acontecer assim, que deveria estar terminado, mas não, a estrada fica longa, o sentimento se complica, o relacionamento fica cada vez mais complexo, não, não era isso que você esperava de maneira nenhuma. Nem mesmo sei como Eusa – que afinal me parecia concordar com a face momentânea do nosso caso – não sei como mesmo ela se deixou ludibriar por algum sentimento.

5ª FEIRA (AINDA SOB PRESSÃO ALTA)

Até hoje desconheço a razão de tudo ter caminhado para um terreno desconhecido e ter-se tornado um fato descontrolado, isto é, porque Eusa sabia ser fria e levar as coisas bem rasteiras de modo a não afetar a alma da pessoa. Ou não? Ficou complicado, ficou complicado. Não era assim para acontecer, não era assim, não. E até hoje desconheço a razão de tudo ter descambado para o terreno pantanoso da paixão. Contado assim ninguém acredita, mas foi surpresa atrás de surpresa.

SÁBADO (OUVINDO BACH)

Quando eu comecei a escutar música clássica foi a mesma coisa. Eu tinha certo desinteresse quando ouvia Robert Schumann mas não sabia o porquê. Não me entrava, simplesmente não me habituava àquelas ameaças sonoras já se aproximando dos tons mais modernos. Talvez fosse porque comecei ouvindo o lado orquestral. Em particular aquela sinfonia que popularmente chamam de Renana (título que acho horrível), ela me soava como gritos histéricos devido à sua tonalidade alta. Enfim, revolvi um pouco minha cabeça e decidi saber o porquê dessa aversão. De princípio decidi que era por causa da tonalidade agressiva e vertical de suas composições. Mas – pensei – também Johannes Brahms é muito vertical e dele só desgosto apenas do excessivo tom maior das músicas orquestrais – bem diferente das composições para câmara e sonatas. Então por que não pensar um outro Schumann, colocá-lo na época em que ele viveu, analisá-lo junto com as pessoas de quem se cercou, todos os que admiravam seu trabalho e daí focar uma nova paisagem?

SÁBADO (OUVINDO VILLA— LOBOS)

Havia algo errado, mas tudo se dissipou quando ouvi as obras pianísticas de Schumann, as Fantasias, os Estudos Sinfônicos, as Variações.

Depois que ouvi esse outro lado descobri o Schumann mais próximo de Franz
Liszt, seguidores, alunos dedicados diletos de Franz Schubert – apesar de quê ele ainda se destaca como uma peça diferente dos demais. Agora minhas censuras com os compositores clássicos ficam bem mais restritas, porque sei que há o compositor sinfônico e o de câmara. E se você não gosta de um, bem se dane, corra para o outro lado... Entendi qual a importância que tem a obra de câmara e piano solo, sua intimidade e dor, apesar de tratar-se de algo meramente pessoal.

DOMINGO (SEM MISSA)

Disse que ela foi mais ou menos assim e foi. É como aquele romance que se começa ler, mas jamais se termina porque em alguma página algo nos detém inexoravelmente. Já me aconteceu muito disso e um desses marcos desgraçados é o romance Ulisses, de James Joyce. Aquele livro tem algo que me tira do sério, me deixa irritado e com a pressão alta... E não é por falta de determinação, porque já me obriguei a ler muita porcaria por defeito de querer saber. Mas por que com Eusa era assim? Por que com Brahms e Schumann era assim? Foi como uma música que comecei a ouvir mas sempre interrompia em determinado momento. Como um Ulisses, cujas páginas a ler sempre são em número definitivamente maior do que aquelas já lidas? Voltei para o Rio de Janeiro. Mas ou menos quatro meses depois já estava desesperado para voltar. Eusa me carregava de telefonemas, cartas, insinuações, coisas que eu a princípio não ousei interpretar – e confesso que até hoje toda e qualquer interpretação racional do que aconteceu falha com a realidade.

3ª FEIRA (LONGE, MAS PERTO)

De forma que a paisagem em frente do mar já começava a fazer parte das imagens que me vinham à cabeça como algo já comum em minha vida. Sentava numa mesa de bar, pedia uma cerveja ou vinho e começava a ler um livro. Era ali um estranho para todos menos para ela. Representávamos um drama, uma comédia, uma peça teatral. Para quem chegava – o restaurante dela era um local público – eu era apenas mais um consumidor. Um dia chegou um rapaz que a tratou com muito mais intimidade que qualquer outro. Apenas evitou o beijo na boca devido à minha presença, mas entrou na casa dando a impressão de quem era íntimo demais. Até a saída ficou muito próximo, sorrindo, dando abraços – eram amantes. Com uma explicação que não pedi Eusa me disse que aquele era o namorado da juventude de quem me havia falado. Não tirei os olhos do livro, mas a paisagem das ondas se deitando nas areias bem longe ficou mais turva. Esse foi o sinal de que os sentimentos a partir de agora seguiriam, sem remédio, o caminho inexorável da paixão, com todas as nuanças irracionais.

4ª FEIRA (CHATEADO COM O SILÊNCIO)

Vale mesmo a pena falar disso? Depois desse teatro cheio de ardor, ciúme e doloroso como cena de cinema francês, achei bom procurar Artur e me inteirar mais das pessoas, para saber mesmo quem é esse estranho grupo que estava prestes a fazer amizade. Quem é Eusa? Quem é esse estranho namorado de juventude que vive onipresente e tem sempre lugar cativo para beijá-la na boca? Quem são os homens que aparecem e desaparecem misteriosamente na cama de Eusa? Não conseguir falar com Artur mas encontrei Luzia saindo da aula de dança. Foi bom porque desde o primeiro instante simpatizamos de cara e estabelecemos uma cumplicidade assim: eu porque estava fazendo novos amigos e ela porque se sentia na obrigação de preservar a todo custo a felicidade da amiga. Sabia me cortejar com palavras de estímulo no meu novo relacionamento com Eusa, dizia que nunca a vira tão feliz e agora sim ela encontraria o equilíbrio que tanto buscava, estava precisando de um homem como eu, dizendo coisas assim que conseguiam me dobrar e me fazer entender o quanto eu era importante para ela.

5ª FEIRA (THE DAY AFTER)

Essa conversa toda porém desabou quando falei na pessoa que encontrei com Eusa. Ah, a minha amiga. Mas ela fez isso? Disse sinceramente, já chateada, quase chorando. Mas não é possível. É ela não tem jeito mesmo. Que será que deu nela? Na verdade quem não entendeu nada fui eu. Luzia dizia coisas como se estivesse falando sozinha, fazia gestos e expressões, dramas, tudo aquilo só servia para complicar mais toda a minha cabeça. No final das contas a Eusa foi desenhada mais como vítima do que outra coisa. Não desanima, meu amigo – era o que Luzia me dizia. Não pensa que isso vai diminuir o amor que ela encontrou em ti. Deixa-me recolocar a cabeça dela no lugar. Alguma coisa ela colocou na conversa que Eusa passou a ser uma vítima de uma série de maltrato, espancamento, crise, tortura mental. E eu havia sido colocado no âmago do fogo como se fosse um salvador, uma tábua de socorro para todos aqueles desastres. Não, não era assim. Sentamos num bar à beira da lagoa e fomos beber uma cerveja, comer alguma coisa. Enfim clareei a minha mente e pude constatar que estava começando um relacionamento pelo fim partindo do desastre, do furacão, das ondas selvagens, para uma calmaria que não apontava sequer no horizonte.

6ª FEIRA (CHOPE NO CENTRO)

Mas não podia desdenhar da sinceridade de Luzia – que tinha também seus desastres com Artur, ataques chegando às raias do nervoso. Essa minha luta contra a gordura – ela disse – é de quê? Você pensa que é de comer exageradamente? Vivo nas academias suando que só um cão, perdendo o peso que recupero logo no dia seguinte depois de uma discussão. Dou aulas de dança que por si já são outra ginástica. Vivo estressada, nervosa, tudo por causa de Artur que não passa de um galinha, um irresponsável, mas tem toda a confiança da minha família. Para eles todos, eu sou a errada. Não, não podia largar de lado essa confiança que Luzia me deu. Aqui, completou, os homens se pensam diferentes, acham que podem dominar a mulher da cabeça aos pés. E usam de violência para isso. A Eusa, coitada, que o diga. Meu amigo, só te peço uma coisa. Não deixe que o namoro que vocês estão começando termine como terminaram todos os outros com ela. Não deixe que a coisa degenere em violência, principalmente não deixe nunca de gostar dela, de ampará-la, de atendê-la quando ela precisar de ti. Assim, fiquei me sentindo com responsabilidades de um salvador não sei de quê. Um dissipador de crises. Um anteparo de porradas físicas e mentais.

6ª FEIRA (OUTRA, A SANTA)

Você deveria era escrever sobre nós. Entenda-se: na verdade eu estou procurando algo assim? Eu deveria estar esquecendo o desastre que ocorreu num lote de acontecimentos que envolviam inevitavelmente festa, bebida e pessoas, homens, mulheres. Nosso roteiro de saída incluía sempre as mesmas pessoas. Fizemos aquele grupo e em pouco tempo reparei nos pequenos dramas que traçava a vida daquela gente. Certo ou errado comecei a me integrar naquilo tudo. Com exceção de Alfredo e Márcia que intercalavam a presença cada um de per si, o grupo era aquele. Descobri que o problema que havia entre Marcão e Noela era o mais chato porque envolvia vícios além da bebida e cigarro. Noela esgoelava-se na magreza desde o acidente que sofreu numa churrasqueira, aquela velha coisa, jogar álcool sobre a brasa, o fogo reverteu sobre o líquido e veio atingir todo o lado direito, da face ao braço e parte da perna. Foi chato e triste. Não ficou desfigurada mas o fato deve ter deixado marca porque vivia reclamando de exclusões que não existiam, enciumava-se à toa e Marcão nada fazia para desestimular, ao contrário, vivia mesmo de galinhagem entre as mulheres e dava no que dava. Enquanto a festinha rolava Noela procurava jeito de se esgueirar com Marcão para um lugar isolado, fumar cigarro de maconha melado com uma pasta que chamavam de merla e era apenas um subproduto da cocaína. Todos os encontros, sem exceção, terminavam numa briga que seria resolvida no dia seguinte, já sem os efeitos dos tóxicos e das bebidas.

2ª FEIRA (VIAJAR DE NOVO)

Mario e Isolda mostravam um amor sem fim, parecendo o casal perfeito. Até certo ponto isso era verdade porque as brigas – na verdade raras – eram geralmente resolvidas na hora entre carinhos e beijos. Porque ele era muito brincalhão não deixava nunca a coisa degenerar nem vingar no terreno pantanoso que medeia à agressão. Mas jamais se metiam nas discussões ou brigas dos outros. Talvez porque conhecessem todo o mecanismo e soubessem de antemão o final, eram neutros até a medula. Por causa disso eu procurava sempre ficar próximo a eles me protegendo da agressividade alheia. Eusa – por sua própria natureza libertária, vivia circulando nos locais, falando com as centenas de conhecidos e conhecidas, fato ao qual me adaptei normalmente. Quando exagerávamos na bebida, aí então a coisa mudava, mudava como se diz de água para vinho.

4ª FEIRA (NO AVIÃO, DE VOLTA)

Eusa não sabia medir as coisas e pensava que a liberdade que havia conquistado (e que eu admirava), poderia acobertar o fato de que ela estava num grupo acompanhada de alguém, com um homem, um parceiro. Largava-se entre todos sem medida. De princípio tentei suportar aquilo, mas a traição veio pelos caminhos da paixão e do ciúme. No entanto evitei todas as maneiras ser grosseiro ou violento. É verdade que teve dias de exceção, noites estranhas que a bebida me pegava mais cedo que de costume. Numa ocasião cheguei a quebrar o vidro do carro de Eusa para retirar meus documentos e cair fora de uma confusão que ela armara. Nessa ocasião também desconfiei que estivessem pondo alguma coisa em minha bebida. Mas não consegui confirmar nada. É claro que aquilo tudo me aborreceu muito pois fui levado – não sei por quais forças – a fazer uma coisa que não era normal, que saía completamente do meu comportamento.

3ª FEIRA (SEMANA VAZIA)

De qualquer modo aprendi a agir passivamente, apenas me retirando do local, sem mais. Pois parece que aí a ofensa foi maior porque depois vinha me agredir condenando minha atitude, que não podia largá-la assim sozinha, etc.

Mantive a calma e continuei com minhas retiradas estratégicas. O que podia fazer além disso? Agora o que não adianta é ficar relacionando esses casos todos que dão volta entre si como uma ciranda – melhor: girândola – soltando fogos de artifício às vezes outras vezes incendiando a paciência e a vida de todos os presentes. Aprendi a me desligar de tudo aquilo e por isso não conto mais – tudo é uma repetição do anterior. Depois achei que aquela gente só sabia viver assim, num ato sinfônico de agressão ou numa valsa de acusações, numa sonata de revolta e ciúme ou num réquiem de amor terminado. Droga, aonde fui me meter!

4ª FEIRA (OSB NO MUNICIPAL)

A que leva tudo isso? Ao muro. À parede. A um beco sem saída. A uma novela cujo fim jamais chega. Um romance que certamente vai levar a uma continuação, que vai ter outra continuação e assim por diante. Nunca poderei dizer chega! e até hoje – ao escrever estas notas – a presença de Eusa tenta me confortar em telefonemas esporádicos, numa atuação incompreensível de reconhecer como se não quisesse enterrar todo o passado num cemitério, jeito de quem quer deixar as coisas mumificadas, semi-vivas. O diabo não esquece os amigos. Quando a gente está num estágio da vida em que é preciso viver aceleradamente, quando o futuro se mostra tão perto que quase esbarra nos nossos narizes, aí então é que estamos do jeito que o capeta gosta. A nossa se desenrolou como uma paisagem panorâmica e focamos a vida naquela fase em que viver é perigoso mas preciso. Foi isso o que realmente aconteceu ou o que alguma magia havia me pespegado na cara como necessidade de viver assim tão loucamente como nos tempos dos hippies, quando esperávamos que a bomba atômica caísse na cabeça a qualquer instante.

5ª FEIRA (GAROENTA, CHUVOSA)

Farelos de biscoitos, pedaços de unha roída, cutículas arrancadas a dente se espalhavam pelo teclado, caíam entre as letras. Seja lá o que for esse nervosismo era por conta de Eusa. Distante dela eu começava a ficar agitado, como que nervoso, por algum motivo desconhecido ficava estressado e até acometido de uma doença completamente inominada, desconhecida para mim, mas que o médico simplesmente caracterizou: síndrome do pânico. Pânico de quê, comecei a me perguntar. Eu que me achava um sujeito até extremadamente calmo estaria com essa doença de rico?

6ª FEIRA (GRIS NA CABEÇA...)

Mas já tinha reparado nas excrescências que começavam a me acometer. Por exemplo, quando o centro da cidade se aproximava, a caminho do escritório, eu começava a ficar mais agitado e assumir alguns tics: coceiras, piscadelas descontroladas, fome exagerada. É assim que a gente vive nos centros das cidades grandes. Agitado para fazer tudo depressa, caminhando rápido, comendo que nem soldado no front, atendendo telefonemas no meio da rua e coisas mais ou menos assim. Só me acalmava mesmo quando sentava numa mesa para tomar um chope, fumar um charuto e ouvir alguma música vendo pessoas passando. Isso realmente me deixava tranquilo, principalmente aquela visão cinematográfica da cidade e dos bairros caminhando à minha frente. Quando se habitua a reparar nos passantes, cada qual vivendo uma viagem particular, a gente tem a impressão de estar numa sala de aula aprendendo a ver as outras pessoas e ser o espelho de todos para conseguir ver a si mesmo.

SÁBADO (DE ERIK SATIE)

Que destino se preparou dentro de mim? Um incidente me chamou de volta ao Rio de Janeiro. Era sempre assim, um vai e vem contínuo que embaraçava aquele conhecimento novo. Ora espontâneo, ora involuntário, o destino me fazia flutuar entre dois mundos. O filho de Taís, uma prima distante, levou um tiro na cabeça ao retornar de uma festa de madrugada. Alguma confusão, briga de adolescentes, coisa assim que se torna sem importância diante do fato. A bala atravessou por detrás da orelha e saiu na testa, sobre o olho, não se sabe absolutamente o que acontecerá. Nem os médicos arriscam um prognóstico. Só esperam que a juventude (tem 18 anos) e a formação atlética sejam mais fortes que a tragédia e o façam sobreviver.

SÁBADO (AINDA E DEBUSSY)

Que carma de meus antepassados carrego? Esse fato transtornou um pouco aquele momento. Afinal diante das expectativas que se apresentaram ninguém poderia fazer mais nada senão rezar, acender velas e torcer para que tudo dê certo. Mas foi demais ficar aturando os pedidos e cobranças de Taís. Toda a família se mobilizou numa reação em cadeia normal para a ocasião. É hora que ninguém nega nada mas o desgaste é irrecuperável. Graças dou à minha filha que em prejuízo a tudo, trabalho, estudo, a vida enfim, se postou diante do garoto com uma fé que atravessa todas as religiões. E só sairá de lá com o desfecho de tudo, seja qual for.

2ª FEIRA (SEMPRE TRISTE)

Uma semana depois foi a vez de o tio Agnelo bater biela. Mas pelo menos este já havia ultrapassado a casa dos oitenta anos, o que era dez mil vezes mais chato para ele. Engraçado que aos idosos não se dá o crédito da vida. Quando chega num hospital, bem, diz-se, esse já viveu muito, teve uma boa vida e agora pode morrer. Ninguém se anima a dizer: ora, com oitenta anos ele bem que poderia viver mais 20 anos tranquilamente e não seria exagero nenhum. Outra coisa chata de quem vive muito é que viver já se torna um saco! Mal fez 80 anos e teve uma isquemia, como se esperasse só a idade para se entregar...

5ª FEIRA (ATROPELOS)

O que acontece? A vida que se leva, leva-se a fazer amizades, conhecimentos, círculo de frequência e para quê? Os dias vão se passando e a gente vê todo esse círculo se desfazendo como um castelo de areia debaixo da água da praia. Não a vida não é justa. Longe de mim, fazer a tio Agnelo o prognóstico de já vai tarde, nunca! Pelo contrário, fui lá e pouco depois tava me queixando dele: – Você não devia ter parado de tomar aquelas cachacinhas, agora o organismo tá fraco, tá pedindo um álcool e nada. Dizia, é claro, sem que as filhas dele ouvissem senão iam me censurar. O coitado, acho que nem ouvia, não podia nem rir com aquela porra daquele tubo enfiado pelo gogó...

Vai Agnelo, vai que a gente se aguenta por aqui, disse comigo mesmo. E saí.

6ª FEIRA (SEM PECADOS)

De onde herdei a bondade que atropelou o futuro? Há alguma correlação nisso? Estava diante do mar mediterrâneo que habita a todos nós.

O mar da terra, dos primórdios da civilização, de onde emanam do profundo as almas e ideais dos antepassados, bárbaros, guerreiros, reis, rainhas, emigrantes e fugitivos, de todas as épocas, de todos os passados. De frente para o perigo, de cara com a paixão. De novo! Ah não, tinha dito a mim mesmo na última paixão: me apaixonar nunca mais! É claro que faltei com a palavra e cá estou eu encalacrado de novo, com mulheres perturbando o meu sono e a existência. Que fazer se todo homem bom é covarde?

SÁBADO (VINHO NA ADEGA)

Ocorreu que o tio Agnelo não morreu. A sugestão médica direcionou para duas opções: uma é que ele fosse internado numa clínica geriátrica onde poderia ser acompanhado, a outra – que ficasse em casa onde também teria atendimento e mais a presença acomodada de familiares. Mas os familiares se resumiram na filha mais velha, já que todos os demais tinham suas preocupações diárias de sobrevivência e certamente não poderiam acrescentar mais essa. Assim, coube a Mariângela o cargo de cuidar do velho e na primeira crise de respiração o que ela soube fazer foi retornar ao hospital e interná-lo numa UTI.

SÁBADO (NA RUA AINDA)

Todos esses acontecimentos interromperam parcialmente a confusão mental, debitada à paixão, que havia me metido com Eusa. Aqui cabe um parêntese para falar de Mariângela. Na manhã que o tio retornou ao hospital, todos nós fomos acordados às cinco horas de uma manhã de junho. Havia sido uma noite fria, vários telefonemas se sucederam, criando uma confusão generalizada por ter-se acordado fora do horário normal. Preparei um café (todos precisam de um café ou outra bebida quente nessas horas) e fiquei na expectativa. Adeliza, a empregada, aproveitou a ocasião para afirmar ter tido uma noite premonitória avisando que alguma coisa anormal iria acontecer. “Eu sabia... Eu já sabia... Acordei à noite com uns vultos circulando pela casa. Nem foi preciso abrir os olhos, já sei que são espíritos que conhecem bem o lugar, caminham dentro da casa sem esbarrar em nada, sem acordar ninguém. Estão apenas anunciando a passagem...” Falou assim de tal maneira naturalmente como se fosse amiga íntima de todos os fantasmas do mundo. A gente simples é assim: não se assusta com coisas que nós normalmente nos arrepiamos ao ver ou conhecer. Devo confessar que uma noite dessas, vendo os tais vultos, me arrepiei de tal maneira que só assim pude compreender como os autores de novelas de terror tornam nossos pelos elétricos, como pele de porco espinho.

2ª FEIRA (UM DIA APÓS OUTRO)

Fiquei à janela esperando o sol aparecer, já o céu estava se azulando apontando para um dia agradável. No verão costumo me antecipar à saída do sol que vejo apontar desde o início lá por detrás de uma favela. No inverno, porém, ele surge mais à esquerda onde construíram um prédio novo de seis andares e dá para ver apenas a luz forte, em réstias, iluminando o quintal. A grama úmida principiava a se aquecer com o sol, uma língua fina de névoa começou a surgir escorrendo entre as poucas casas e árvores. Lembrei-me da empregada: é o hálito da morte, pensei, sem saber se essa imagem era real ou vinha à mente através das superstições, dos romances de Connan Doyle (algo assim como O Cão dos Barskerville), dos filmes de Drácula ou das novelas de terror de Stephen King. Lembrei-me também de uma frase dessas existentes nos Dicionários de Pensamentos, mas de quem? “Não há amor que sobreviva à distância.”

3ª FEIRA (EUSINHA...)

Foi sempre sexo desde a primeira vez que nós fizemos amor, nos amamos também, muito, mas ela me disse que queria ter um filho meu. Depois, quando ela contou que era uma época que estava me amando muito – E tu não acreditaste! (fazia questão de me dizer com ódio) – foi a minha vez de querer fazer parte daquela emoção. Tentei dizer-lhe algo assim: Agora já tens o meu sangue correndo nas tuas veias, é sangue de meu sangue, espírito do meu espírito, pois só assim poderia transmitir que ela tinha algo de mim no ventre, algo que iria amar muito.

4ª FEIRA (SEM SAUDADE)

Tínhamos cometido todos os pecados, erros, divagações. Na verdade era um amor muito, muito irresponsável, muito mesmo, não conseguíamos arrumar nada para o dia seguinte, nem uma programação leve como ir ao cinema ou almoçar num restaurante, coisas assim banais, não, não conseguia produzir nada, era um turbilhão só sem trégua. Então a principal questão que se colocava era essa: se não se consegue anunciar um passo adiante sequer como desejar um filho? Como querer amar alguém que é só lava, fogo e ferro? Como elaborar uma existência se o dia seguinte é o dia do julgamento fatal?

5ª FEIRA (MAIS CHUVOSA)

Entre pioras e melhoras falsas tio Agnelo cumpria o seu carma. Até que um dia se deixou e largou de resistir como quem diz: Ah, esta vida já tá chata aos oitenta anos. E se passou. Penou ainda alguns dias entubado no Hospital Municipal, coisa de médico que luta até o fim mas desligou o aparelho que todos nós temos dentro da alma que faz o corpo sobreviver a tudo. Largou a alma do outro lado da fronteira e o corpo sob a terra. Foi para o cemitério São
João Batista viver ao lado de celebridades famosas e odiosas, amadas e podres, ao lado de pequenas almas que – dizem – fazem seus milagrezinhos de dentro do túmulo. É ver para crer...

5ª FEIRA (AINDA GAROA)

Viver como o vampiro que passa o dia enclausurado num túmulo e só sai quando a noite é lua cheia, esse parecia ser o planejamento que almejávamos – eu e Eusa – para os dias de paixão. Só quando fosse lua cheia e até que alguém nos descobrisse e se determinasse a espetar uma estaca em nossos corações sangrados. Enfim, para Luzia devo a sensação de dever cumprido: nada terminou de modo agressivo, em briga, insulto, coisa assim. Foi tudo muito sereno, se esvaindo, em paz. Como deveria ser a morte. Depois, muito tempo depois, ela disse que sim, que me amava, mas que agora não sabia mais. Não, não sabia de nada, já tinha outras preocupações, outros projetos e foi justamente nessa época que ficou preocupada com uma menstruação que nunca veio, com um teste de gravidez que deu positivo.

6ª FEIRA (CHUVA NO CEMITÉRIO)

A minha visão não sai do corpo desfigurado de Agnelo no caixão. Mas meu pensamento se volta para Eusa. Todos os mortos não morrem bonitos. Alguém dirá: – Parece que está dormindo, não é? Tão tranquilo! Mas estou ligado em Eusa. Porque ela então resolveu ter um filho, apesar de não ser esse aquele filho que ela quis ter quando nos conhecemos. Esse foi outro, noutro lugar, noutro espaço, noutro tempo. Por isso, desse que ela terá, nem posso lhe dizer: – Agora já tens o meu sangue correndo em tuas entranhas, uma alma nova e poderosa circulando em tuas veias. Agora somos sangue e carne. Não, não pude dizer nada nem ela aceitou que eu dissesse que continuava a amá-la. Porque agora ela já não me ama mais. Provavelmente.


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Fonte:

Salomão Rovedo: O Sonhador. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)

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