10/12/2017

O rei capturado (Conto), de Salomão Rovedo


O rei capturado

"Bom, eu disse olhando o tabuleiro desolado, acho que acabou. "

Tinha terminado de jogar uma partida de xadrez e o meu rei estava em péssima situação, encalacrado na armadilha que o meu jovem adversário havia minuciosamente preparado. Após quase trinta lances, nos quais ele me manteve em permanente defesa e estada de alerta, o meu rei estava em cheque, não tinha para onde fugir. Quando chega nessa situação a partida acaba, dizem as regras do bom jogador que ele deve abandonar a partida e cumprimentar o adversário. Foi o que fiz.

"Parabéns! Parabéns, foi uma bonita combinação, tramada desde o início da partida, que eu só pude perceber agora nos últimos lances. Aí, não tinha mais jeito. Foi uma boa partida."

Estendi a mão, para cumprimentar meu adversário, mas de repente ele pegou a rainha preta, que apontava ameaçadora a minha peça de modo indefensável e capturou o meu rei! Só então apertou a minha mão, sorridente com a vitória, orgulhoso da partida.

"Apesar do que, disse a ele amavelmente, não precisava sequestrar o meu pobre rei..."

Ele riu. Eu sorri daquela atitude, certamente tomada devido à juventude do meu adversário, já que no jogo de xadrez é proibido capturar o rei. Dizem as regras que "o rei é a única peça que não pode ser capturada". Antes de mais nada, é eticamente incapturável, se a gente pode dizer assim. Simplesmente porque é insubstituível.

Mas me lembrei que éramos — eu e meu adversário — iniciantes, aprendizes em partidas de xadrez e afinal disputávamos uma partida amistosa, em que vale quase tudo. Eu certamente permaneço eternamente iniciante, mas o garoto promete ser um jogador eficaz, competente, brigador. Certamente seria um vencedor, iria evoluir mais ainda agora que tomava aulas com um mestre nacional, campeão de várias categorias. Será um mestre.

Meu adversário abandonou a mesa, saiu da sala e eu fiquei olhando o tabuleiro, as peças dispostas na posição final, martelando a mesa com o rei deposto, pobre, capturado. A minha cabeça já tinha abandonado a partida e tateava em outra direção. Lembrei-me de quando aprendi a jogar xadrez. No começo apanhei muitas sovas e quando vencia alguma era devido à "sorte de iniciante". Nunca tive as ambições daquele jovem, ser um grande jogador, vencer torneios e campeonatos. O que eu precisava era fazer algo que substituísse o espaço que perdi, o vácuo que ficou quando, por força das circunstâncias, abandonei a universidade e a política estudantil.

Levei para o aprendizado do xadrez a mesma técnica que usava no estudo. Primeiro aprendi as regras, depois os movimentos das peças, para absorver o espírito do jogo comecei a ler livros, colunas de jornais e revistas que tratassem dele, comprei livros que ensinavam as táticas, defesas e aberturas, reproduzi muitas partidas jogadas por grandes mestres e só então fui começar a jogar o xadrez relâmpago, que é o que faz todo iniciante. Como todos os calouros, o jogador de xadrez deve também aprender a contemporizar, ter paciência, absorver os golpes, as humilhações e crueldades que os mais experientes cometem contra os iniciantes.

Após algumas surras memoráveis, vi logo que aquele jogo não era a minha praia. Meu raciocínio não era tão rápido quanto os adversários, por mais fracos que fossem, os cinco minutos que me eram concedidos corriam na velocidade da luz, em consequência acabava a partida com inapelável e catastrófica derrota. Aí então resolvi procurar jogar torneios em que participassem jogadores de meu próprio nível. Foi o mais certo, as partidas demoravam mais horas, podia pensar à vontade, somente assim comecei a realmente gostar de xadrez.

Quando conheci o professor Moya ele estava com mais de setenta anos, tinha uma aparência tão frágil e desamparada que ninguém poderia afirmar quanto tempo lhe restava de vida – Deus me livre, que esta não era a intenção – mas todos comungavam na mesma direção: era conhecida a gravidade da doença que o acometia. Mas também era conhecido o fato dele se entregar ao mal sem reações. Por tudo isso qualquer das pessoas que o cercavam sabia que o professor Moya tinha dava esperança de sobrevivência. Foi o jogo de xadrez que ocasionou nosso primeiro contato, em seguida descobrimos outras afinidades e logo depois conversávamos sobre xadrez postal, publicações, teoria, campeonato mundial. Assim nos tornamos amigos.

A paixão pelo jogo de xadrez era no professor uma coisa bem visível, mas não sei o que o fez acreditar ter visto em mim um futuro aficionado, tão devotado quanto ele. Todo um conjunto de fatos e circunstâncias que nos uniu em princípio, foi o passo inicial para que descobríssemos muitas coisas em comum. A amizade cresceu e se esparramou a todos os níveis, inclusive pessoal.

Moya tinha os olhos miúdos, a pele vermelha e sardenta, uma expressão, como se disse, frágil. Falava baixinho, tinha educação esmerada, foi finamente educado, se via logo. O professor era natural da Catalunha (representava os interesses de famosa editora da sua terra natal) que se transformou num imigrante compulsório quando não pôde mais retornar à Espanha. Ele veio ao Brasil tratar de assunto comercial, mas a Guerra Civil tinha acabado na Espanha, o sanguinário Franco (como fazia questão de chamar) venceu e ele decidiu não voltar mais.

A Europa estava destroçada, lá vinha também a II Grande Guerra, muitos imigrantes europeus descendentes de judeus desembarcaram na América Latina, inclusive nomes importantes no xadrez mundial. O professor Moya tinha um currículo excelente, sem problemas, logo providenciou a papelada, fez registro nos órgãos brasileiros e espanhóis, rapidamente conseguiu licença para lecionar. Era solteiro e logo, logo, encontrou uma alma gêmea, pois não tinha dificuldade em fazer amizade, casaram-se, mas só tiveram um filho. Essa foi a raiz de um drama que só vim a saber muito tempo depois e que vou contar para vocês.

Um dia saímos da aula tarde da noite, ficamos sem ter o que fazer. Ele me convidou para ir até seu apartamento no Catete. Vivia ele modestamente em imóvel de dois quartos, um dos quais transformado em biblioteca e escritório, sala, cozinha, essas coisas. A desarrumação era normal numa pessoa que mora só. Ali falávamos sobre filosofia, um pouquinho sobre sua vida, encerrando a curta estada com uma partida de xadrez.

Moya também jogava xadrez postal e volta e meia mostrava-me partidas em andamento, comentávamos a posição, as vantagens e desvantagens, linhas a seguir, variantes, essas coisas. Logo estava me pedindo opinião e dividíamos o risco das análises, posições furadas, lances difíceis. Afastávamos os papéis, livros largados sobre a mesa, contas a pagar, nos debruçávamos sobre o tabuleiro completamente entregues à partida, mirando em todas as direções, esmiuçando tudo. Geralmente chegávamos a uma conclusão comum, ele anotava o lance e preparava a carta-resposta.

"Não se preocupe com a desarrumação, disse Moya. Uma vez por semana Márcia, minha secretária, vem aqui arrumar. Aí eu terei novamente tempo para desarrumar tudo outra vez, completou sorrindo."

Também ri e entrei no clima de amena amizade que se anunciava.

Fiquei olhando o tabuleiro sobre a mesinha de centro, as peças dispostas de modo que pareciam representar uma das muitas partidas em andamento. O professor Moya conduzia as peças pretas e não estava nada bem. Fiz esse comentário e ele me respondeu: "Esta partida estou jogando com um amigo de infância. Um sobrevivente, pintor catalão, essas gravuras e aquarelas são dele.
Uma beleza! Ademais joga xadrez muito bem, como vê. Vai ser um jogo longo, demorado, duro, é um grande conhecedor de teoria. Já prevejo que terei muito o que fazer para sair da situação difícil. O escore de nosso matche está 8 x 4. Para ele, claro. Espero pelo menos conseguir a igualdade."

Além das partidas postais, Moya tinha um sem número de cartas para responder, versavam sobre assuntos culturais, universitários e políticos, mas ainda achava tempo para escrever artigos para revistas de xadrez e de filosofia. Logo me dei conta que aquele quarto, ponteado de fotografias espalhadas sobre os móveis, dividindo as paredes com gravuras e aquarelas originais, era o seu refúgio. Era um santuário muito personalizado, um espaço santificado, podia-se dizer, que exigia respeito. Coloquei-me no patamar de isenção que o local exigia, considerando que era grande honra que o professor me concedia ao franquear-me acesso ao mesmo. Por minhas mãos impuras não seria maculado, dei todo o respeito às regras impositivas: ali não se tocava em nada, nada se movia de lugar, jamais uma fotografia ouviu de mim perguntas indiscretas.

Ele percebeu a minha discrição, logo se deu conta que a minha falta de curiosidade era a resposta silenciosa que o santuário merecia. A partir de então, tudo o que vim a saber veio espontaneamente dirigido por ele. Era um lugar mais frequentado do que mesmo o quarto de dormir e dali ele só saía para ir ao banheiro, à cozinha comer alguma coisa e depois direto para a cama, quando o corpo cansado exigia pelo menos uma partida de xadrez de sono para se recuperar.

Enfim, nossa amizade cresceu muito, quase que diariamente nos víamos. Porém, essa constância terminou, teve fim quando Moya foi obrigado a se mudar para São Paulo para tratamento da saúde. Fiquei chateado e lamentei que uma amizade tão promissora, apesar da diferença de idade, fosse interrompida assim. Ele também não mostrou satisfação, mas apresentava o ar resignado de sempre. Fez-me prometer algumas cartas, outros tantos telefonemas e deixou-me encarregado de cuidar de suas coisas, redirecionar a correspondência até que todos os seus amigos soubesse do seu novo endereço. Praticamente todos os dias eu ia a seu apartamento, telefonava para São Paulo, conversava um bocado, tentava transmitir algum otimismo.

Um dia desses recebi um telefonema da secretária dele, Márcia. Já nos conhecíamos de encontros casuais no apartamento, quando coincidia com o dia de limpeza, ela tinha conhecimento da amizade entre mim e o professor. Contou-me que esteve em São Paulo para cuidar das coisas dele, prestar contas do seu trabalho na manutenção do apartamento. Trouxe uma carta dele para mim: o professor Moya queria que eu me inteirasse da situação do velho imóvel, pediu-me para auxiliar Márcia na limpeza do apartamento (quando eu li esta parte ela riu), pagar contas, verificar documentos, ficar ou me desfazer dos poucos objetos que tinha ficado por aqui, já que não tinha nenhuma esperança maior de voltar para o Rio de Janeiro.

Fiquei triste com essa última decisão e comentei com Márcia. Ela também estava triste e fez-me ver que o desânimo do professor só havia aumentado com o agravamento da doença. Segundo suas instruções, dadas pessoalmente à Márcia, todas as coisas que se relacionassem com o xadrez, mais o que fosse de meu interesse, seriam minhas. Afora umas três gravuras e aquarelas que me deixou expressamente, o resto, mobília, geladeira, móveis, louças, tudo o mais seria de propriedade de Márcia. Como ela não se interessava por "aqueles desenhos esquisitos", na mesma hora ela os transferiu todos para mim. Só assim posso contar hoje com o luxo de possuir algumas obras de Miró...

Claro que me ofereci para tudo o que quisesse e estivesse ao meu alcance fazer, mas Márcia me tranquilizou, pedindo que deixasse tudo aos cuidados dela. Entendi que o pedido que Moya fazia a mim era na verdade uma deferência à nossa amizade, a obrigação era mesmo dela. O velho Moya afinal tinha deixado pouca coisa da sua vida pessoal naquele apartamento. Cartas velhas de emissários desconhecidos, planilhas de partidas de xadrez, minutas de artigos por terminar, revistas velhas escritas em catalão. Mesmo assim, tive o cuidado de destruir pouquíssima coisa, quase nada. A grande parte da papelada, livros, cartões postais, tudo o mais, cuidei de arrumar em três caixas de papelão e levar para casa, aonde faria uma garimpagem mais demorada.

O tempo passou, mantive contato com o velho Moya, mas havia um detalhe que me incomodava: me dei conta de que alguma coisa me impedia de mexer naqueles papéis. Parecia-me ser o guardião de um tesouro, que a minha obrigação era guardá-lo e defendê-lo com a própria vida, porque a qualquer momento o velho Moya, estando vivo, poderia chegar, reassumir a morada do Catete, reaver a posse de todos os documentos e tudo voltaria ao normal. Acredito que todo mundo já teve um sentimento assim, pois afinal, ele estava vivo, se mantinha presente em espírito. Junto com aqueles papéis, o velho jogo de xadrez, as planilhas de partidas inacabadas, o relógio alemão para xadrez relâmpago, sentia a presença eloquente do professor e isso me impedia de mexer em tudo aquilo.

Márcia continuava fazendo a ponte Rio — São Paulo. Não se queixava, fazia com prazer. Um dia confessou-me que o professor praticamente a tirou da rua, quando a mãe dela faleceu. Durante muitos anos a sua mãe serviu à família do professor como arrumadeira, cozinheira, fazia de tudo um pouco.

Aceitaram a presença de Márcia e em pouco tempo ela fazia parte da família. Quando a mãe dela passou mal do coração, fez todo o tratamento à custa do professor. Operou, colocou duas pontes de safena, mas pouco tempo depois veio a falecer. Ia fazer oitenta anos, o corpo cansado não podia resistir tanto.

Márcia se viu na obrigação de substituir a mãe e ficou tomando conta da casa, do professor que também enviuvara e agora era um homem só e triste.

Márcia aos poucos ia contando a razão daquela dedicação. Era mesmo gratidão: "O professor Moya jamais abandonou a minha mãe, pagou exames, a operação, os melhores médicos e hospitais, sempre deu o maior apoio. Depois que ela morreu o professor, que sempre teve um grande coração, me acolheu, pagou meus estudos, tratou-me como filha. Só assim pude arrumar um bom marido, temos um casal de filhos. Na verdade não preciso trabalhar. Digo a meu marido: é de meu pai que estou cuidando. Ele compreende."

No retorno de uma dessas viagens ela trouxe a notícia: o professor faleceu. Só então senti a liberdade suficiente para revolver todos os trastes, no bom sentido, que tinha trazido comigo. E foi mexendo na papelada que encontrei uma carta dirigida a mim, mas por algum motivo difícil de descobrir, nunca foi enviada. Não era uma carta de tanta importância, se não fosse um pequeno detalhe, uma referência ao seu filho, cujo destino ele jamais esclareceu. Ficou esse vácuo, um muro, que eu nunca tive coragem de ultrapassar e essa fronteira estabelecida naturalmente entre o que ocorreu e o silêncio permaneceu inviolável até a morte de Moya.

A carta referia-se a um artigo que mandei para a revista de xadrez postal do nosso clube, um artigo simples, sem maiores pretensões, mas que deve ter abalado muito as memórias do professor Moya. Reproduzo o artigo e em seguida a carta. Mais uma vez tive a ajuda de Márcia para desatar o nó e chegarmos à conclusão final, sem o que seria impossível. (Ver o artigo – revista Caissa? — ver a carta — arquivo...)

O que aconteceu, enfim, com o professor Moya, que me veio à lembrança neste momento em que acabava a partida relâmpago, é que também ele em algum momento da sua existência teve o rei capturado. A regra, não oficial, mas claríssima diz que "o rei é a única peça que não pode ser capturada". Simplesmente porque é insubstituível.

O rei de Moya caiu exatamente no dia 21 de outubro de 1976, data que só pôde ter provada sua exatidão porque foi escrita de próprio punho. Num dos livros que ficaram abandonados na casa da rua do Catete, estava lá, na folha de rosto, escrito à tinta azul, uma dedicatória cujas letras trêmulas bem mostravam o estado emotivo daquele momento, que por fim abalou toda a vida do mestre: "À memória do meu amado filho Eduardo Moya, a quem tudo devo, que era meu orgulho, minha luz e meu amparo, morto em 21/10/1976 aos 25 anos de idade." Seguia-se a assinatura quase ilegível, terminada num rabisco, um riachinho de risco que se perdia no ar...

Questão: pode-se coroar um peão e convertê-lo em rei? Esse fato, em certas circunstâncias, jamais levará a partida de xadrez ao mate, o que significa que nunca mais terminará...


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Fonte:

Salomão Rovedo: O Sonhador. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)

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