O rei capturado
"Bom, eu disse olhando
o tabuleiro desolado, acho que acabou. "
Tinha terminado de jogar
uma partida de xadrez e o meu rei estava em péssima situação, encalacrado na
armadilha que o meu jovem adversário havia minuciosamente preparado. Após quase
trinta lances, nos quais ele me manteve em permanente defesa e estada de
alerta, o meu rei estava em cheque, não tinha para onde fugir. Quando chega
nessa situação a partida acaba, dizem as regras do bom jogador que ele deve abandonar a partida e cumprimentar o
adversário. Foi o que fiz.
"Parabéns! Parabéns,
foi uma bonita combinação, tramada desde o início da partida, que eu só pude
perceber agora nos últimos lances. Aí, não tinha mais jeito. Foi uma boa
partida."
Estendi a mão, para
cumprimentar meu adversário, mas de repente ele pegou a rainha preta, que
apontava ameaçadora a minha peça de modo indefensável e capturou o meu rei! Só
então apertou a minha mão, sorridente com a vitória, orgulhoso da partida.
"Apesar do que, disse
a ele amavelmente, não precisava sequestrar o meu pobre rei..."
Ele riu. Eu sorri daquela
atitude, certamente tomada devido à juventude do meu adversário, já que no jogo
de xadrez é proibido capturar o rei. Dizem as regras que "o rei é a única
peça que não pode ser capturada". Antes de mais nada, é eticamente
incapturável, se a gente pode dizer assim. Simplesmente porque é insubstituível.
Mas me lembrei que éramos —
eu e meu adversário — iniciantes, aprendizes em partidas de xadrez e afinal
disputávamos uma partida amistosa, em que vale quase tudo. Eu certamente
permaneço eternamente iniciante, mas o garoto promete ser um jogador eficaz,
competente, brigador. Certamente seria um vencedor, iria evoluir mais ainda
agora que tomava aulas com um mestre nacional, campeão de várias categorias.
Será um mestre.
Meu adversário abandonou a
mesa, saiu da sala e eu fiquei olhando o tabuleiro, as peças dispostas na
posição final, martelando a mesa com o rei deposto, pobre, capturado. A minha
cabeça já tinha abandonado a partida e tateava em outra direção. Lembrei-me de
quando aprendi a jogar xadrez. No começo apanhei muitas sovas e quando vencia
alguma era devido à "sorte de iniciante". Nunca tive as ambições
daquele jovem, ser um grande jogador, vencer torneios e campeonatos. O que eu
precisava era fazer algo que substituísse o espaço que perdi, o vácuo que ficou
quando, por força das circunstâncias, abandonei a universidade e a política
estudantil.
Levei para o aprendizado do
xadrez a mesma técnica que usava no estudo. Primeiro aprendi as regras, depois
os movimentos das peças, para absorver o espírito do jogo comecei a ler livros,
colunas de jornais e revistas que tratassem dele, comprei livros que ensinavam
as táticas, defesas e aberturas, reproduzi muitas partidas jogadas por grandes
mestres e só então fui começar a jogar o xadrez relâmpago, que é o que faz todo
iniciante. Como todos os calouros, o jogador de xadrez deve também aprender a
contemporizar, ter paciência, absorver os golpes, as humilhações e crueldades
que os mais experientes cometem contra os iniciantes.
Após algumas surras
memoráveis, vi logo que aquele jogo não era a minha praia. Meu raciocínio não
era tão rápido quanto os adversários, por mais fracos que fossem, os cinco
minutos que me eram concedidos corriam na velocidade da luz, em consequência
acabava a partida com inapelável e catastrófica derrota. Aí então resolvi
procurar jogar torneios em que participassem jogadores de meu próprio nível.
Foi o mais certo, as partidas demoravam mais horas, podia pensar à vontade,
somente assim comecei a realmente gostar de xadrez.
Quando conheci o professor
Moya ele estava com mais de setenta anos, tinha uma aparência tão frágil e
desamparada que ninguém poderia afirmar quanto tempo lhe restava de vida – Deus
me livre, que esta não era a intenção – mas todos comungavam na mesma direção:
era conhecida a gravidade da doença que o acometia. Mas também era conhecido o
fato dele se entregar ao mal sem reações. Por tudo isso qualquer das pessoas
que o cercavam sabia que o professor Moya tinha dava esperança de
sobrevivência. Foi o jogo de xadrez que ocasionou nosso primeiro contato, em
seguida descobrimos outras afinidades e logo depois conversávamos sobre xadrez
postal, publicações, teoria, campeonato mundial. Assim nos tornamos amigos.
A paixão pelo jogo de
xadrez era no professor uma coisa bem visível, mas não sei o que o fez
acreditar ter visto em mim um futuro aficionado, tão devotado quanto ele. Todo
um conjunto de fatos e circunstâncias que nos uniu em princípio, foi o passo
inicial para que descobríssemos muitas coisas em comum. A amizade cresceu e se
esparramou a todos os níveis, inclusive pessoal.
Moya tinha os olhos miúdos,
a pele vermelha e sardenta, uma expressão, como se disse, frágil. Falava
baixinho, tinha educação esmerada, foi finamente educado, se via logo. O
professor era natural da Catalunha (representava os interesses de famosa
editora da sua terra natal) que se transformou num imigrante compulsório quando
não pôde mais retornar à Espanha. Ele veio ao Brasil tratar de assunto
comercial, mas a Guerra Civil tinha acabado na Espanha, o sanguinário Franco (como fazia questão de chamar) venceu e ele
decidiu não voltar mais.
A Europa estava destroçada,
lá vinha também a II Grande Guerra, muitos imigrantes europeus descendentes de
judeus desembarcaram na América Latina, inclusive nomes importantes no xadrez
mundial. O professor Moya tinha um currículo excelente, sem problemas, logo
providenciou a papelada, fez registro nos órgãos brasileiros e espanhóis,
rapidamente conseguiu licença para lecionar. Era solteiro e logo, logo,
encontrou uma alma gêmea, pois não tinha dificuldade em fazer amizade, casaram-se,
mas só tiveram um filho. Essa foi a raiz de um drama que só vim a saber muito
tempo depois e que vou contar para vocês.
Um dia saímos da aula tarde
da noite, ficamos sem ter o que fazer. Ele me convidou para ir até seu
apartamento no Catete. Vivia ele modestamente em imóvel de dois quartos, um dos
quais transformado em biblioteca e escritório, sala, cozinha, essas coisas. A
desarrumação era normal numa pessoa que mora só. Ali falávamos sobre filosofia,
um pouquinho sobre sua vida, encerrando a curta estada com uma partida de
xadrez.
Moya também jogava xadrez
postal e volta e meia mostrava-me partidas em andamento, comentávamos a
posição, as vantagens e desvantagens, linhas a seguir, variantes, essas coisas.
Logo estava me pedindo opinião e dividíamos o risco das análises, posições
furadas, lances difíceis. Afastávamos os papéis, livros largados sobre a mesa,
contas a pagar, nos debruçávamos sobre o tabuleiro completamente entregues à
partida, mirando em todas as direções, esmiuçando tudo. Geralmente chegávamos a
uma conclusão comum, ele anotava o lance e preparava a carta-resposta.
"Não se preocupe com a
desarrumação, disse Moya. Uma vez por semana Márcia, minha secretária, vem aqui
arrumar. Aí eu terei novamente tempo para desarrumar tudo outra vez, completou
sorrindo."
Também ri e entrei no clima
de amena amizade que se anunciava.
Fiquei olhando o tabuleiro
sobre a mesinha de centro, as peças dispostas de modo que pareciam representar
uma das muitas partidas em andamento. O professor Moya conduzia as peças pretas
e não estava nada bem. Fiz esse comentário e ele me respondeu: "Esta
partida estou jogando com um amigo de infância. Um sobrevivente, pintor
catalão, essas gravuras e aquarelas são dele.
Uma beleza! Ademais joga
xadrez muito bem, como vê. Vai ser um jogo longo, demorado, duro, é um grande
conhecedor de teoria. Já prevejo que terei muito o que fazer para sair da
situação difícil. O escore de nosso matche
está 8 x 4. Para ele, claro. Espero pelo menos conseguir a igualdade."
Além das partidas postais,
Moya tinha um sem número de cartas para responder, versavam sobre assuntos
culturais, universitários e políticos, mas ainda achava tempo para escrever
artigos para revistas de xadrez e de filosofia. Logo me dei conta que aquele
quarto, ponteado de fotografias espalhadas sobre os móveis, dividindo as
paredes com gravuras e aquarelas originais, era o seu refúgio. Era um santuário
muito personalizado, um espaço santificado, podia-se dizer, que exigia
respeito. Coloquei-me no patamar de isenção que o local exigia, considerando
que era grande honra que o professor me concedia ao franquear-me acesso ao
mesmo. Por minhas mãos impuras não seria maculado, dei todo o respeito às
regras impositivas: ali não se tocava em nada, nada se movia de lugar, jamais
uma fotografia ouviu de mim perguntas indiscretas.
Ele percebeu a minha
discrição, logo se deu conta que a minha falta de curiosidade era a resposta
silenciosa que o santuário merecia. A partir de então, tudo o que vim a saber
veio espontaneamente dirigido por ele. Era um lugar mais frequentado do que
mesmo o quarto de dormir e dali ele só saía para ir ao banheiro, à cozinha
comer alguma coisa e depois direto para a cama, quando o corpo cansado exigia
pelo menos uma partida de xadrez de sono para se recuperar.
Enfim, nossa amizade
cresceu muito, quase que diariamente nos víamos. Porém, essa constância
terminou, teve fim quando Moya foi obrigado a se mudar para São Paulo para
tratamento da saúde. Fiquei chateado e lamentei que uma amizade tão promissora,
apesar da diferença de idade, fosse interrompida assim. Ele também não mostrou
satisfação, mas apresentava o ar resignado de sempre. Fez-me prometer algumas
cartas, outros tantos telefonemas e deixou-me encarregado de cuidar de suas
coisas, redirecionar a correspondência até que todos os seus amigos soubesse do
seu novo endereço. Praticamente todos os dias eu ia a seu apartamento,
telefonava para São Paulo, conversava um bocado, tentava transmitir algum
otimismo.
Um dia desses recebi um
telefonema da secretária dele, Márcia. Já nos conhecíamos de encontros casuais
no apartamento, quando coincidia com o dia de limpeza, ela tinha conhecimento
da amizade entre mim e o professor. Contou-me que esteve em São Paulo para
cuidar das coisas dele, prestar contas do seu trabalho na manutenção do
apartamento. Trouxe uma carta dele para mim: o professor Moya queria que eu me
inteirasse da situação do velho imóvel, pediu-me para auxiliar Márcia na
limpeza do apartamento (quando eu li esta parte ela riu), pagar contas, verificar
documentos, ficar ou me desfazer dos poucos objetos que tinha ficado por aqui,
já que não tinha nenhuma esperança maior de voltar para o Rio de Janeiro.
Fiquei triste com essa
última decisão e comentei com Márcia. Ela também estava triste e fez-me ver que
o desânimo do professor só havia aumentado com o agravamento da doença. Segundo
suas instruções, dadas pessoalmente à Márcia, todas as coisas que se
relacionassem com o xadrez, mais o que fosse de meu interesse, seriam minhas.
Afora umas três gravuras e aquarelas que me deixou expressamente, o resto,
mobília, geladeira, móveis, louças, tudo o mais seria de propriedade de Márcia.
Como ela não se interessava por "aqueles desenhos esquisitos", na
mesma hora ela os transferiu todos para mim. Só assim posso contar hoje com o
luxo de possuir algumas obras de Miró...
Claro que me ofereci para
tudo o que quisesse e estivesse ao meu alcance fazer, mas Márcia me
tranquilizou, pedindo que deixasse tudo aos cuidados dela. Entendi que o pedido
que Moya fazia a mim era na verdade uma deferência à nossa amizade, a obrigação
era mesmo dela. O velho Moya afinal tinha deixado pouca coisa da sua vida
pessoal naquele apartamento. Cartas velhas de emissários desconhecidos,
planilhas de partidas de xadrez, minutas de artigos por terminar, revistas
velhas escritas em catalão. Mesmo assim, tive o cuidado de destruir pouquíssima
coisa, quase nada. A grande parte da papelada, livros, cartões postais, tudo o
mais, cuidei de arrumar em três caixas de papelão e levar para casa, aonde
faria uma garimpagem mais demorada.
O tempo passou, mantive
contato com o velho Moya, mas havia um detalhe que me incomodava: me dei conta
de que alguma coisa me impedia de mexer naqueles papéis. Parecia-me ser o
guardião de um tesouro, que a minha obrigação era guardá-lo e defendê-lo com a
própria vida, porque a qualquer momento o velho Moya, estando vivo, poderia
chegar, reassumir a morada do Catete, reaver a posse de todos os documentos e
tudo voltaria ao normal. Acredito que todo mundo já teve um sentimento assim,
pois afinal, ele estava vivo, se mantinha presente em espírito. Junto com
aqueles papéis, o velho jogo de xadrez, as planilhas de partidas inacabadas, o
relógio alemão para xadrez relâmpago, sentia a presença eloquente do professor
e isso me impedia de mexer em tudo aquilo.
Márcia continuava fazendo a
ponte Rio — São Paulo. Não se queixava, fazia com prazer. Um dia confessou-me
que o professor praticamente a tirou da rua, quando a mãe dela faleceu. Durante
muitos anos a sua mãe serviu à família do professor como arrumadeira,
cozinheira, fazia de tudo um pouco.
Aceitaram a presença de
Márcia e em pouco tempo ela fazia parte da família. Quando a mãe dela passou
mal do coração, fez todo o tratamento à custa do professor. Operou, colocou
duas pontes de safena, mas pouco tempo depois veio a falecer. Ia fazer oitenta
anos, o corpo cansado não podia resistir tanto.
Márcia se viu na obrigação
de substituir a mãe e ficou tomando conta da casa, do professor que também
enviuvara e agora era um homem só e triste.
Márcia aos poucos ia
contando a razão daquela dedicação. Era mesmo gratidão: "O professor Moya
jamais abandonou a minha mãe, pagou exames, a operação, os melhores médicos e
hospitais, sempre deu o maior apoio. Depois que ela morreu o professor, que
sempre teve um grande coração, me acolheu, pagou meus estudos, tratou-me como
filha. Só assim pude arrumar um bom marido, temos um casal de filhos. Na
verdade não preciso trabalhar. Digo a meu marido: é de meu pai que estou
cuidando. Ele compreende."
No retorno de uma dessas
viagens ela trouxe a notícia: o professor faleceu. Só então senti a liberdade
suficiente para revolver todos os trastes, no bom sentido, que tinha trazido
comigo. E foi mexendo na papelada que encontrei uma carta dirigida a mim, mas
por algum motivo difícil de descobrir, nunca foi enviada. Não era uma carta de
tanta importância, se não fosse um pequeno detalhe, uma referência ao seu
filho, cujo destino ele jamais esclareceu. Ficou esse vácuo, um muro, que eu
nunca tive coragem de ultrapassar e essa fronteira estabelecida naturalmente
entre o que ocorreu e o silêncio permaneceu inviolável até a morte de Moya.
A carta referia-se a um
artigo que mandei para a revista de xadrez postal do nosso clube, um artigo
simples, sem maiores pretensões, mas que deve ter abalado muito as memórias do
professor Moya. Reproduzo o artigo e em seguida a carta. Mais uma vez tive a
ajuda de Márcia para desatar o nó e chegarmos à conclusão final, sem o que
seria impossível. (Ver o artigo – revista Caissa? — ver a carta — arquivo...)
O que aconteceu, enfim, com
o professor Moya, que me veio à lembrança neste momento em que acabava a
partida relâmpago, é que também ele em algum momento da sua existência teve o
rei capturado. A regra, não oficial, mas claríssima diz que "o rei é a
única peça que não pode ser capturada". Simplesmente porque é
insubstituível.
O rei de Moya caiu
exatamente no dia 21 de outubro de 1976, data que só pôde ter provada sua
exatidão porque foi escrita de próprio punho. Num dos livros que ficaram
abandonados na casa da rua do Catete, estava lá, na folha de rosto, escrito à
tinta azul, uma dedicatória cujas letras trêmulas bem mostravam o estado
emotivo daquele momento, que por fim abalou toda a vida do mestre: "À
memória do meu amado filho Eduardo Moya, a quem tudo devo, que era meu orgulho,
minha luz e meu amparo, morto em 21/10/1976 aos 25 anos de idade."
Seguia-se a assinatura quase ilegível, terminada num rabisco, um riachinho de
risco que se perdia no ar...
Questão: pode-se coroar um
peão e convertê-lo em rei? Esse fato, em certas circunstâncias, jamais levará a
partida de xadrez ao mate, o que significa que nunca mais terminará...
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Fonte:
Salomão Rovedo: O Sonhador. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)
Fonte:
Salomão Rovedo: O Sonhador. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)
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