10/12/2017

Sem estar (Conto), de Salomão Rovedo


Sem estar

Quando foram apresentados, riram muito da semelhança dos nomes.

– Prazer Estélio. 

– Prazer Ester. 

E logo se isolaram dos demais e entraram numa conversa animada, duradoura. Algo inexplicável aconteceu, uma carga elétrica, pólos se comunicando via satélite, olhares mútuos e demorados. Estélio, de cara, se encantou com a cor dos olhos de Ester, que variavam do cinza claro ao azul de ágata, transparente como água de piscina. A palidez de heroína de romance de Eça de Queirós, o jeito de falar e deixar no ar uma frase nos lábios entreabertos foi água para matar a sede do admirador. Acrescente-se o riso constante, que se irradiava pelo rosto semeando de alegria todo o corpo e plantando um clima de eterna felicidade – tudo isso contribuiu para deixar Estélio apaixonado de vez.

Ester era dessas que a todo o momento morre de felicidade. Diante de tudo, nas conversas, nos passeios, em meio a um mero comentário, deixava-se levar por um tanto de riso e alegria. Pouco depois do primeiro encontro os dois estavam namorando. E como ambos procuravam companhia, casaram-se em seguida. Foi, sim, um gesto impensado, mas ao mesmo tempo, exigido pela força natural das coisas. O casal caminhava para a madureza da idade, ambos solteiros, de poucos amigos e parentes, tudo isso tornou fácil decidirem. Eram apenas duas pessoas que se procuravam, que tinham um encontro marcado, que fizeram cumprir o destino.

Quando Ester se mudou para o apartamento novo (que os dois decoraram dividindo escolhas e ambientes), além de roupas e objetos de uso pessoal, trouxe apenas uma dúzia de livros de temas que se dividiam em conto, romance, poesia, pensamentos e uma coleção completa de CD com as 33 sonatas de Beethoven, que jamais cansou de ouvir. Raramente comentava as músicas, mas quando o fazia (sozinha ou com o companheiro ao lado), era para expelir a emoção acumulada no peito, desenhando paisagens, intercalando, absorta, as frases dos livros com as frases musicais.

Estélio jamais na tinha se interessado por Beethoven, nunca lhe entrara pelos ouvidos uma só nota de composição clássica, mas se encantava com as observações de Ester, introduzindo-o a esse universo estranho e maravilhoso, que tornava real a paisagem imaginária de imagens, ritmos e sons.

Se for possível chamar a isso de qualidade, diga-se que Estélio jamais fez qualquer questionamento a respeito da vida passada de Ester – e a recíproca era pura verdade. Habituaram-se a reger a convivência mais com gestos e sinais do que com fala, que acabam na vida real se transformando em mote de peça teatral e, por isso mesmo, foge à verdade acabando por complicar qualquer relacionamento a dois.

Ester – e Estélio logo descobriu – tinha particularidades: beijava as sobras de pão antes de jogá-las aos passarinhos, cantava canções de ninar só para si, bem baixinho, mareava os olhos nas cenas mais emocionantes das novelas – entre outros mínimos segredos que ela sabia caracterizar e guardar, quando necessário. Se fosse para fazê-los conhecidos de Estélio, logo criava uma linguagem decifrável para difundi-los. Será que é isso a que se chama felicidade?

Quem visse Ester, de compleição miúda, frágil como uma pétala flutuando, não imaginaria existir nela a vasta sensualidade que Estélio idealizou açodadamente e que depois pôde conferir. No corpo alvíssimo, delicado como uma folha de papel, as pintas de sardas e sinais ilustravam uma paisagem de sonho. Quando queria fazer amor mandava bilhetes e recadinhos feitos de gestos codificados. Primeiro mostrava enfado para tudo e ia banhar-se, sem usar xampu ou sabonete, o jato da ducha de água fria direto, forte, envolvendo-a demoradamente. Antes de se enxugar, passava uma fina camada de óleo de amêndoa e depois esfregava com a toalha o corpo todo, deixando-o levemente rosado.

Na primeira vez que isso ocorreu Estélio ficou, como é normal, absolutamente surpreso. Após arrumar-se e arrumar as coisas para a noite, encontrou o quarto com a luz acesa e Ester deitada na cama, nua, relaxada, lânguida, braços soltos sobre a colcha de cetim. As pernas, pequenas, mas bem formadas, estavam estendidas, soltas, entreabertas. Uma delas pendia lassa para fora do colchão, sem, no entanto tocar o assoalho. A respiração, ansiosa, fazia o peito ondular suavemente. Os lábios moviam-se confessando, mudos e sensuais, milhões de desejos. Os olhos, bem abertos, assumiam uma coloração mais azul, que a noite tornava profundo, mas não demonstravam nem sono, nem enfado algum.

Estélio parou absolutamente estático, demorando-se lhe admirar o corpo. Controlou bem o choque da surpresa, e sabiamente calou. Derreou-se ao lado dela, o corpo apoiado no cotovelo, varejando o olhar de lá para cá, perdendo-se nos detalhes, a garganta seca de espanto, o coração, as veias, o corpo latejando. Ganhou ainda muito tempo a contemplar a amada, os seios não maiores que meia laranja, o umbigo espraiado, as duas gotas de mel que eram os mamilos em tamanho, cor e sabor.

Mas, claro, o que se menos espera acontece, neste caso a surpresa agradável foi ver o sexo de Ester, que era protegido por espessa floresta de pelos negros. O triângulo púbico, rigorosamente delimitado, não deixava os cabelos se espalharem, formando um consistente emaranhado, barreira que Estélio teve de superar quando os seus lábios nervosos, após velejarem as coxas, a virilha, as pernas, o umbigo, finalmente o encontrou para beijá-lo.

Depois de aspirar o perfume de amêndoa que emanava dos pelos trançados Estélio afastou-os com extrema delicadeza para descobrir o sexo de feição miúda, os lábios pequeninos, mais vermelhos do que o rosto de Ester.

Demorou muito ali lambendo, ora beijando-o como beijava a boca, metendo a língua até onde alcançasse, ora levantando o rosto para admirar a beleza da descoberta. E demoraria o tempo todo se Ester não o puxasse, arrancando-o daquele prazer para oferecer-lhe outros mais: os lábios molhados de uma saliva avinagrada, os bicos rijos dos seios, pequenas mordidas, arranhões que sangravam, as lambidas na orelha, no pescoço, na nuca. Antes da exaustão Ester pegou o membro e pôs-se a esfregá-lo vigorosamente nos pelos, na virilha, em todo o sexo, para só então deixá-lo escorrer bem fundo na vagina quente.

Foi assim, dessa maneira bruta que Estélio descobriu o mundo que cercava a sua amada, os gestos que sinalizavam vida, os sinais que o levavam a realizar suas aspirações, as farsas que se traduziam em ventura amorosa, o Atlas de um universo sexual inventado para fazê-los gozar juntos. Essa forma de sexualidade se tornou tão importante que todo o demais na vida comum se perderia, se não fosse realizado com a presença do outro. A lembrança primeira da mulher frágil de compleição delicada, pluma flutuante, que Estélio realizou secretamente, criou um violento contraste com aquela imagem, ardente, poderosa, viva.

Descobriu um dia como sua mulher – não demonstrando religiosidade exacerbada – falava com Deus: de manhã cedo, mal nascia o dia, Ester se dirigia à janela, voltava-se para os primeiros raios de luz, fechava os olhos concentrados e fazia uma serena oração. Quando a noite chegava, antes de recolher-se para dormir, repetia o gesto, os lábios entrechocando-se, silenciosa, calmamente, desta vez de face para o poente. Quando a mulher retornava ao leito, os olhos iluminados transmitiam a Estélio a mesma energia positiva que geralmente fluem desse entretenimento com o Universo. Era como se também ele tivesse conversado com Deus: ela orava por ambos.

Fora desse palco Ester era a mulher tímida que Estélio amou quando conheceu. Na intimidade prevaleceu a mulher nua, de semblante lasso, braços que atracavam navios, as pernas lânguidas bem formadas, o calor do ventre.

Tudo isso determinou o itinerário, o destino de Estélio, de tal maneira que ele sequer se importou com o fato de que Ester não era mais virgem, nem com a voracidade com eu ela encarava o casamento, a vida a dois. Tudo se passava num ritmo alegre e veloz, moderno, aberto, corações emocionados. Ester tomou as rédeas da vida de Estélio para transformá-la num turbilhão.

É como se o destino houvesse escrito no livro da vida que existe o bem e o mau no centro dos furacões. Que era tempo de viver, célere, com vontade, sem adivinhar o futuro, nem descortinar a paisagem da próxima esquina. Um ano depois do casamento Ester descobriu que sofria de leucemia. Todos os esforços de Estélio para salvá-la foram em vão, e os tratamentos quimioterápicos só fizeram detonar aquela beleza um dia magnífica. Os olhos dela adoeceram primeiro, foram perdendo a cor azulada, se fixaram no cinza claro. Chorava só um pouquinho, as lágrimas se confundindo com as olheiras recém adquiridas.

Quando Ester se foi caiu um temporal daqueles, chuva de verão com granizo, ventos fortes e os olhos dela ficaram mais azuis. Toda vez que o tempo mudava, a cor dos olhos acompanhavam o serviço de meteorologia.

Nunca erravam e naquele dia estavam azulzinhos, opacos como uma falsa Turmalina. E assim que Ester foi enterrada com os olhos mais azuis de toda a Terra. Estélio se portava como se não tivesse ocorrido nada. Respondia a todos, resignado, manso, como um carneiro deitado na grama.

Com o passar do tempo, o lugar de Ester à mesa, vazio, se tornou um incômodo. Antes de sentar-se Estélio olhava para a mesa, posta com apenas um prato, fazia um gesto ameaçando reclamar. Mas nunca perguntou à empregada: – Cadê o prato de Ester? Nunca. E mais ainda: após tomar algumas cervejas e fumar meia dúzia de cigarros, se dava conta que Ester não viria mesmo. Aquilo lhe causava um desconforto, que o obrigava a mexer-se de um lado para outro. Ao se barbear conversava com o espelho: – Ester não está mais entre nós...

O bar, a igreja, os lugares onde andava, tudo estava sem forma. Sem desesperar-se Estélio ficou cara a cara com o abismo. A face murchou de repente, um milhão de rugas formou sulcos desalinhados. Não havia separação entre a sombra e as trevas, a claridade e a escuridão, não havia mais de noite nem mais de dia. Como Deus, Estélio teria que recriar um mundo totalmente novo, se ainda tivesse forças. Sobre seus ombros, pendia do firmamento a imagem una e indivisível de Ester, enquanto esteio de um homem só. Quando ela foi deixou a casa sem cumeeira, a rede sem estendedouro, a mesa sem cadeiras.

Para Estélio ainda havia tarde e manhã e nada disso era bom, nada.

Como uma farsa, perguntavam por ela, os outros, aqueles que não se dão conta de lugares desocupados. E assim se fez. De nada precisava para mantimento, a não ser o retorno de Ester – enquanto impossível. Era outro que não carecia dos frutos da árvore do bem e do mal. Do conhecimento, nada cabia em si, nem a sabedoria de Deus. Para fazer justiça bastava-se a si mesmo. E havendo terminado o dia, Estélio desanimou. Não sabia viver de saudade, essa neblina insistente de tudo que havia feito na vida. Ficar, enfim, é chato.

Estélio vive hoje de todas as lembranças íntimas, da felicidade de curtíssima vida, rompida violentamente, e isso o torna mais infeliz do que aqueles que já morreram. Descobrir o véu que cobre a infelicidade naqueles que se foram assim, leves, sem pecado, é importante para que ninguém negue a eles um lugar à mesa dos puros. Estélio se redimia copiando em cadernos as frases retiradas dos livros de pensamentos – dos Salmos às Lamentações de Jó – que julgava referir-se exclusivamente à sua vida. Recordações... Sob as goteiras, nas marquises, esperando a chuva diminuir, crescia escamas nas paredes. Nada mais de dias ensolarados e quentes. Uma lembrança de algum lugar mágico, perdido.

Recordações levam-no diretamente a Ester. Era ela, mais do que ninguém, quem aproveitava os dias, mesmo se o tempo estava encoberto, chuvoso, que para todos não servia de nada. Abraçava-se a Estélio, aconchegada ternamente no ombro e dizia: “Hoje não fazemos nada. Namoramos. Sentamos à beira da praia e olhamos o mar em silêncio”. Era um tipo de oração, que preferia a qualquer outra coisa, uma música, uma frase, um álbum de retratos. Não gostava de escrever, como Estélio, que anotava algumas poucas frases, curtas. Gotas de sabedoria – escreveu no caderno – mas eram frases de pára-choque de caminhão ou de excertos da Bíblia tirados dos folhetos distribuídos nos ônibus, nas ruas.

Alma ou espírito? Por que a imagem de Ester insistia em se disfarçar sob o céu cheio de nuvens cinzentas de chuva? Sozinho no quarto, Estélio retornava àquela posição preferida, derreada, apoiada no cotovelo, o olhar ganhando um mar de imagens e detalhes, a garganta voltava a ficar seca de espanto, o coração se sacudia, as veias pululavam, o corpo inteiro desejando Ester, que via deitada na cama, totalmente nua, relaxada e lânguida, os braços alvos contrastando com a colcha de cetim negro.

Se alguém visse a cena, certamente o chamaria de louco – o quê mais? Dirigia os braços e as mãos para um imaginado corpo, para as pernas pequenas e bem torneado, os pés de dedos roliços, as coxas estendidas, entreabertas, demorando-se em locais que só sua cabeça conhecia. O detalhe primeiro da perna pendida, lassa, para fora da cama, o pé balançando, sem tocar o assoalho, retornava constante num flashback interminável. Tocava levemente, com as pontas dos dedos, os lábios mudos e sensuais, suspiravam milhões de desejos.

Aspirava ao hálito da boca ansiosa e deitava a cabeça no inesquecível peito, deixando-a repousada a ondular suavemente. Relembrava o detalhe dos olhos arregalados de Ester, que a noite tornava mais profundo, assumindo a coloração azul-marinho e jamais demonstravam sono ou enfado. Estélio, absolutamente fora de si, demorava-se na loucura de admirar o corpo inteiro da mulher, os seios em forma de meia laranja, os mamilos – apenas duas gotas de mel – o umbigo espraiado, as coxas, as virilhas, as pernas.

Loucura que só chegava ao final quando, finalmente, arriava a boca sobre o sexo para aspirar o perfume de amêndoa que emanava e, contrito, repetia o gesto de afastar os pelos negros emaranhados, com máxima delicadeza, para descortinar o sexo de feição miúda, os lábios vermelhos, pequeninos, afogueados como o rosto de Ester. Demoraria ali a vida toda, lambendo e beijando-o como outrora beijava a boca da amada, entremetendo língua com língua, demoraria o tempo todo se a presença de Ester – do espírito ou da alma dela – não o puxasse para a realidade, arrancando-o daquele falso prazer.

O choque o transportava de novo para a realidade. E quando as gotas de chuva principiavam a bater na cara de Estélio, como do nada surgiam os olhos muitos azuis de Ester. Não era como no álbum de velhas fotografias, outros amigos e parentes que também enrugaram os vincos da face velozmente. Não era esse tipo de recordação aquilo que ocorria. Era uma presença constante, física, coisa assim de até se esbarrar na rua, por entre as pessoas, no ônibus, nas praças, no metrô.

Uma eternidade sem Ester, uma vida de abstinência sexual, porque nenhuma mulher teria a cor dos olhos dela, o cinza claro, o azul de ágata, transparente como água de piscina. A palidez de princesa romena, o jeito sensual de falar, os lábios entreabertos, o riso constante irradiando todo o ambiente. Nenhuma mais apareceria para ele como as Sereias apareceram para Ulisses, enfeitiçando-o com seu canto, o rosto afogueado na cama, toda nua, intimamente devassa, os braços soltos, as pernas, pequenas, mas bem formadas entreabertas sobre a colcha acetinada. Quem teria aquela respiração ansiosa, que fazia o peito ondular suavemente? Qual mulher moveria os lábios como numa reza, confessando, mudos e sensuais, milhões de desejos? Principalmente, quem confessaria aquela timidez de os olhos arregalados, bem abertos, assumindo a fome de desejo?

Estélio nem pensou que era agosto quando a poeira mordeu seu coração e cobriu de relembranças o olhar enevoado. A presença que o cheiro do perfume mais querido traz, a pele macia da camisola de seda da China, as pétalas negras deitadas sobre o púbis. Espírito ou alma, o fato é que a lembrança calorosa de Ester diminuía o enorme abismo que separa o ontem do hoje. Saudade é bom se ter em vida, como a saudade de Ester, que o vento não elimina, o caminhar sobre as mesmas pegadas ainda bem vívidas, encarnadas, em luz, mesmo quando a chuva de verão é mais forte e se anuncia através dos olhos azuis de Ester.

Assim estava escrito...


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Fonte:

Salomão Rovedo: O Sonhador. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)

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