10/12/2017

O Sonhador (Conto), de Salomão Rovedo


O Sonhador

De repente estou chorando e Anália se levanta pacientemente e vem até minha cama:

– Seu Carlos, seu Carlos...

– O que é?

– Pesadelo... acorda...

É que choro dormindo. E grito. Ela não sabe que não é pesadelo. São os sonhos que me afligem depois que iniciei o tratamento contra depressão. Na verdade uma pilulazinha cor de rosa de nada. Mas que produz o grande efeito de nos fazer temporariamente feliz.

É impressionante: fiquei desempregado, ganho quase nada, dependente muito dos outros parentes, de alguns amigos, tudo enfim que pudesse anunciar dias negros e promover suicídios, mas algumas palavras de um médico, uns comprimidos, um banho quente e tudo passa a ser secundário. Não importa a circunstância se no fim das contas fico feliz.

Não sonho pesadelos, recebo visitas. As pessoas que frequentam ou frequentaram a minha vida de repente saem de seus lugares e vêm me visitar.

Essa confusão que eles fazem é que não consigo entender. Mortos e vivos se reúnem em torno de mim, enchem a minha sala e se põem a conversar, tantos assuntos quantos forem chamados à tona.

E quando todos partem e me sinto sozinho, a mulher de banco vem me fazer companhia. Na verdade não a vejo, vejo sua sombra abraçada a mim, sinto suas carícias e ouço as palavras que vão me acalmar. Uma vez chegada e a bagunça se torna mais compreensível.

O que mais me surpreende é que começo a ver realizadas coisas que deixei de fazer e outras tantas das quais me arrependo de não tê-las feito. E pior, o sonho – ou pesadelo – como minha filha prefere, não se limita a uma noite só, mas segue em minha reta dias e mais dias, como uma série de televisão.

Antigamente sonhava sonhos que esquecia no primeiro instante. Ficavam na noite. Costumava responder aos que me perguntava que sequer sonhava. Alguns se misturavam com o cotidiano e, até descobrir que tinha sido sonho, permaneciam como coisa real. Sonhava que cavava buracos nos terrenos enlodados, as mãos ficavam pretas sujas da terra molhada, para no fim alcançar algumas moedas antigas, como as que meu pai colecionava.

Outro sonho que se repetia amiúde era o que eu chamava estrada de ferro. Sempre surgia já caminhando por extensos trilhos, pulando de dormente em dormente até chegar numa ponte sobre um rio. Em algum momento um trem se aproximava velozmente, mais outro, mais outro, mesmo que saltasse para a via lateral, lá vinha outro trem numa louca perseguição para me alcançar onde estivesse, até que acabavam as vias laterais e não me restava outra alternativa senão pular no vazio.

Quanto às pessoas é como disse: elas vêm de todas as partes, mesmo de cidades distantes, muitos jamais se encontraram nem jamais se falaram, mas ocupam a sala toda e ficam fumando, conversando, rindo, trocando ideias como velhos conhecidos. Aí que vem na minha cabeça todo o poder que a palavra tem: como encontram assuntos e temas que sustentam a conversa durante horas a fio sem intervalo, conversa que só se interrompe mesmo quando acordo. Se dormisse dias seguidos eles estariam ali, homens, mulheres, velhos, crianças, conversando, conversando.

Uma particularidade é que todo aquele pessoal, que está ligado pelo fato de serem todos meus conhecidos e amigos, se tornam amigos também. Outro detalhe: pessoas entram e saem da reunião como se evaporassem, como se chegassem do nada. De repente o Alberto não está mais ali, agora é Ana que assoma na porta falando alto e, como não bebe nem fuma, põe logo à mão um copo de suco. Por outro lado as crianças passam lépidas, fogem para o quintal e muitas vezes quando voltam reaparecem já adultos, misturando as fases da vida apenas para me confundir mais.

Novamente Anália se levanta minha cama onde me encontra gemendo e soltando urros miúdos como um porco, não sei de quais dores:

– Seu Carlos, seu Carlos...

– O que é Anália?

– Pesadelo, já acordou? Pesadelo...

Desta vez sonhava que assistia ao filme “Sociedade dos poetas mortos” pela enésima vez. Estamos naquela cena do campo de futebol e o professor nos dá bolas para chutar. A cada chute o aluno diz uma frase filosófica para se animar e se aprofundar no pensamento. Assim a frase ficará gravada para sempre. Só que em vez de bolas de futebol o que eu chuto é cabeça de gente que não gosto nadinha. Pode achar incrível, mas são todos homens.

Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!

Pum! Lá vai a cabeça de tio Eduardo.

A única chance de salvação é não esperar salvação alguma.

E pimba! Desta vez é a cabeça de seu Olympio desferindo uma parabólica.

Aonde impera a solidão, a paz é estabelecida.

Mais um grande ppuuummm! Agora é a cabeça de Bernardo que some no espaço.

Quando os poderosos deliram é o povo que sofre.

Outro enorme e sonoro pum!! e a cabeça de Lauro se despedaça em fragmentos invisíveis, vira pó no ar.

Que a salvação do povo seja a Lei Suprema!

Pum! Pum! Pum! Lá se vai um monte de cabeças de políticos que não gosto e gente que não gosta de mim.

Tudo explode no ar como fogos de artifício... mas não me lembro de ter chutado a cabeça de Hitler. Acho que é porque naqueles filmes antigos às vezes ele me parece tão bonzinho, principalmente quando está na presença de Eva, ou de crianças, ou pintando ao ar livre, quando sorri. Sonhos caóticos, como esse, me deixam confuso – como seria de esperar – mas sonho não é para ser entendido. Ou é? Mesmo que consiga deslindar os labirintos dos sonhos, é importante que não me deixe prender por eles. Aí é que ela se mostra importante. Muitas vezes antes da moça de branco chegar já sinto o seu perfume a me rodear. Logo me abraça uma tranquilidade sem fim.

O deserto é fértil. Parece uma frase bíblica e assim que me encontro. No deserto, vestido como um palestino, roupa de algodão fresco sob sol abrasador, cercado de uma multidão. Ouço alguém que fala como um profeta, mais alto que os murmúrios da gente: “O meu Deus pôs no meu coração que...” Escurecem as estrelas do crepúsculo matutino, desce a noite. Ainda não consigo entender o que faço ali, ouvindo: “que ela espere a luz e a luz não venha”.

As pálpebras dos olhos da alva ainda não se levantaram. É noite e me sinto nascendo, surgindo da porta do ventre da minha mãe. Um regaço que me acolherá, seios para mamar, um repouso tranquilo, mas quem esconderá dos meus olhos a visão de todos os sofrimentos até que meu corpo pouse pacificamente e chegue o descanso? A vida é um sopro onde os males jamais cessam de perturbar o repouso dos cansados.

Ó Espreitador dos homens, por que concedes luz ao miserável e vida aos amargurados que esperam a morte e ela não vem? Por que iluminas o homem cujo caminho vindouro é oculto pela natureza? Nós somos de ontem e nada sabemos sobre os nossos dias sobre a terra, nada sabemos sobre as sombras que acompanham nossos passos. A visão que tenho no deserto é a de um campo sem fim. O sol late nas areias e delas sobressai um leve vapor que torna a vista da gente bamboleante. É miragem, gente que passa, árvores, nuvens, ventos. Tecidos alvos, mantos: é ela que vem e passa sua mão levíssima sobre minha fronte e vai...

Entre tais pensamentos e visões noturnas que me visitam sempre que o sono profundo cai, sobrevive o espanto. Tremo. Todos os meus ossos estremecem silenciosamente quando os espíritos passam diante de mim. Os cabelos do meu corpo se arrepiam como espinhos. Fantasmas, almas que não distingo bem a aparência, vultos que se postam diante de meus olhos como uma tremenda interrogação.

Depois vem um silêncio de calmaria e acordo pensando se desta vez me cortaram o fio de vida. Imagino se finalmente derreteu-se em mim a dureza da pedra. Será que afinal os olhos que agora me vêm não me verão mais? Cada vez a noite é mais comprida e a manhã demora ainda mais a surgir. Tenho de lembrar sempre que, tal como a nuvem se desmancha rapidamente, tal como o vento passa amarfanhando as folhas das árvores até se curvar na estatura da terra, aquele que desce à sepultura jamais tornará a subir.

Quase não percebo a voz de Anália. Ela se levanta e vem à minha cama onde me encontra gemendo. Tenta me acordar e não consegue. Sua voz está sonolenta, deve ter tomado aqueles comprimidos para dormir. Parece até desesperada:

– Seu Carlos, ô seu Carlos, por favor...

– Hhhhuuummm?

– Pesadelo, esse danado.

De novo? Antes de saber se estou desperto ela volta para o seu quarto, vencida pelo sono do remédio calmante. Volto ao elevador. Estou chegando a casa e percebo que uma vizinha também se apressa para pegá-lo. Espero. É Carla, filha do meu vizinho que tem uma firma de comércio exterior. Já a conheço, porque me consultou sobre alguns detalhes referentes à exportação.

Está vestindo uma calça cinza e uma blusa branca de cânhamo, aparada por franjas que vão até a cintura. Conversamos um pouco, ela diz que está de mudança do prédio. Vai para outro bairro, distante, provavelmente jamais nos veremos. Quando chegamos no 3º andar é hora dela descer. Hesito se devo falar-lhe, quando o elevador abre as portas. Rapidamente dirijo-lhe a palavra: “Tem um minuto?” Ela diz que sim e fica me ouvindo.

“Há um tempo atrás eu costumava sair cedo a caminho do trabalho. Invariavelmente cruzava com uma garota que passava apressada, ofegante, vinda da academia de ginástica. Habituei-me a esse encontro casual e ficava triste quando ele não se realizava. Ao contrário, quando nossos olhares se cruzavam o dia sorria para mim. Repetia para mim mesmo: Hoje meu dia vai ser bom...”

Disse isso e fechei as duas mãos sobre seus olhos, imitando uma tela de cinema. Ela sorriu, compreendeu quem era a pessoa.

Interessante, disse, quero saber a continuação dessa história...

A continuação é pornográfica!” Disse sorrindo...

Com essa resposta, fechei a porta do elevador para seguir. Sorrimos um para o outro um sorriso cúmplice. Antes da porta do elevador fechar a vi entrando no apartamento. Como estava um lusco fusco de corredor a sua visão me pareceu mais um nuance que uma pessoa viva mesmo. Nunca mais a vi, nem sei se esse encontro ou os demais aconteceram de fato. Quem será aquela mulher que eu cruzava diariamente pela manhã? E quem seria essa pessoa parecida comigo que ansiava aquela mulher?

Como era mesmo o nome dela, da pessoa real que eu confundia com outra? Célia. Sim, era Célia. Talvez tudo se limite ao espaço atemporal dos sonhos, mas a verdade é que o sorriso e o olhar eram os mesmos. O sorriso de Célia era único, o olhar de Célia era singular, como o olhar dos sonhadores.

Para dizer a verdade, todo o seu corpo cabia no olhar, toda a sensualidade de seu corpo marcado pela ginástica da academia esplandecia no olhar.

– Seu Carlos, ô seu Carlos, bom dia, mas por favor, vê se controla esses pesadelos. Sabe que a vizinhança já está reclamando? Eu não aguento mais acordar no meio da noite...

– Ô Anália, dá um tempo, tá? Não sabe que é esse remédio que estou tomando que me traz sonhos que nem quero ter?

– Mas seu Carlos, que sonho nada, é pesadelo mesmo. E que remédio danado é esse que em vez de curar dá é dor de cabeça?

Anália vê tudo simplesmente. Por isso dou uma explicação vaga e encerro o assunto, não sem antes ouvir: “Acho que o senhor tem é de procurar uma mãe de santo”...

Que sei eu também do que acontece na cabeça da gente? Nosso cérebro é um mistério até para quem sabe que o conhece muito bem. Cientistas, médicos, pesquisadores, todos esbarram num labirinto toda vez que tentam avançar no conhecimento da alma: o cérebro é uma alma! Por isso vou suportando os sonhos sem tentar entendê-los...

Estou num pequeno terraço. Um banco, no qual estou sentado, um jardim menor ainda. Não sei se leio um livro, mas é provável que sim. Esse sonho sempre reaparece o mesmo, o mesmíssimo. Uma mulher me abraça por trás. Terna, faz carícias amorosas, sorri, me diz palavras de amor, carinhosas. Mas agimos como se estivéssemos fazendo alguma coisa proibida, com medo de ser surpreendidos. Por isso ela está sempre invisível aos olhos. Ela não é vista, mas a sua sombra aparece no chão, ao lado da minha. Faço-a ver: Olha a tua sombra, vão acabar nos descobrindo. As duas sombras aparecem claramente no chão. Ela ri mais ainda e suas carícias se acentuam.

Eu com medo, ela livre, amando, correndo em volta de mim. Que nada, bobo, ninguém me vê! E como sempre acabamos fazendo amor ali mesmo, num lugar público. As pessoas passam mas não percebem nada. Eu continuo com um medo danado de ser surpreendido. Parece que tenho medo de ser reconhecido por alguém que irá me denunciar à minha mulher, meus filhos, vizinhos. No sonho serei casado? Quem será essa mulher que nos sonhos não reconheço? Só sei que é branca, muito branca, a pele alva cheia de sardas, é magra, leve, bonita, sim. Faz em mim as coisas que mais gosto, tem a liberdade que eu queria ter, vem e me ama como ela quer.

Tenho certeza que estou amando essa mulher, mas quem será? Quem terá sido? É alguma pessoa do passado ou será o futuro? Quando acordo, me sinto também mais feliz. Sem explicações aceito-a como sempre aceitei todos os meus amores. E procuro manter a felicidade até que o mesmo sonho volte, cedo ou tarde.


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Fonte:

Salomão Rovedo: O Sonhador. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)

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