Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Todos os dias úteis às dez e meia toma o bonde no Largo de Santa Cecília
encrencando com o motorneiro.
— Quando a gente levanta o
guarda-chuva é para você parar essa joça! Ouviu, sua besta?
Gosta de todos aqueles olhares fixos
nele. Tira o chapéu. Passa a mão pela cabeleira leonina. Enche as bochechas e
dá um sopro comprido. Paga a passagem com dez mil-réis. Exige o troco
imediatamente.
— Não quero saber de conversa, seu
galego. Passe já o troco. E dinheiro limpo, entendeu? Bom.
Retém o condutor com um gesto e
verifica sossegadamente o troco.
— O quê? Retrato de Artur Bernardes?
Deus me livre e guarde! Arranje outra nota.
Levanta-se para dar um jeito na cinta,
chupa o cigarro (Sudan Ovais por causa dos cheques), examina todos os bancos,
vira-que-vira, começa:
— Isto até parece serviço do governo!
Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclui:
— O que vale é que os homens um dia
voltam...
Primeiro sorriso aparentemente
sibilino. Passeio da mão direita na barba escanhoada. Será espinha? Tira o
espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo sorriso mais ou menos
sibilino. Cara de nojo.
Não sei que raio de cheiro tem este
Largo do Arouche, safa!
Vira a aliança no seu-vizinho. Essa
operação deixa-o meditabundo por uns instantes. Finca o olhar de sobrancelhas
unidas no cavalheiro da esquerda. Esperando. O cavalheiro afinal percebe a
insistência. É agora:
— Perdão. O senhor leu a última tabela
do Matadouro? Viu o preço da carne de leitão por exemplo? Cinco ou seis ou não
sei quantos mil-réis o quilo!
Não espera resposta. Não precisa de
resposta Berra no ouvido do velho da direita:
— É como estou lhe contando: o quilo!
Quase despenca do bonde para ver uma
costureirinha na Rua do Arouche. As pernas magras encolhem-se assustadas.
— O cavalheiro queira ter a bondade de
me desculpar. São os malditos solavancos desta geringonça. Um dia cai aos
pedaços.
Dá um tabefe no queixo mas cadê mosca?
Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidarem
muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a ponta da
língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Ritmando a leitura com
a cabeça. Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta de educação é
coisa que a gente percebe logo. Não tem que ver. O do ODOL já leu. Estava
começando o da CASA VENCEDORA. Isto de preço de custo só engana os trouxas.
— Oh estupidez! O senhor já reparou
naquele anúncio ali? Bem em cima da mulher de chapéu verde. CONSERTA-SE
MÁQUINAS DE ESCREVER. ConserTA-SE máquinassss! Fan-tás-tico! Eu não pretendo
por duzentos réis condução e ainda por cima trechos seletos de Camilo ou outro
qualquer autor de peso, é verdade... Mas enfim...
É preciso um fecho erudito e
interessante ao mesmo tempo.
— Mas enfim...
A mão procura inutilmente no ar dando
voltinhas.
— Mas enfim... Seu Serafim...
Fica nisso mesmo. Acerta o cebolão com
o relógio do Largo do Municipal. Esfrega as mãos. O guarda-chuva cai. Ergue-o
sem jeito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os vizinhos:
— Este viaduto é uma fábrica de
constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas!
Silêncio. Mas eloquente. Palito de
fósforo é bom para limpar o ouvido. Descobre-se diante da Igreja de Santo
Antônio.
— Não está vendo, seu animal, que a
mulher; não se sentou ainda? Aprenda a tratar melhor os passageiros! Tenha
educação!
Cumprimenta rasgadamente o Doutor
Indalécio Pilho, subinspetor das bombas de gasolina, que passa no seu Marmon
oficial e não o vê. Depois anota apressadamente o número do automóvel no verso
de uma cautela do Monte de Socorro do Estado.
— O povo que sue para pagar o luxo dos
afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá mamando no Tesouro enquanto o povo
não se levanta e manda vocês todos... nada! Mas isto um dia acaba.
Terceiro sorriso nada sibilino. Passa
para a ponta. Confirma para os escritórios da I.R.F. Matarazzo:
— Ora se acaba!
Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos.
Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola.
Na esquina da Rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão da campainha.
Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem:
— Natanael Robespierre dos Anjos, um
seu criado.
Desce no Largo do Tesouro. Faz a sua
fézinha no CHALET PRESIDENCIAL (centenas invertidas). Atravessa de guarda-chuva
feito espingarda o Largo do Palácio.
E todos os dias úteis às onze horas
menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria dos Negócios de
Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado
(essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por
concurso não falando na carta de um republicano histórico.
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