Nacionalidade
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O barbeiro Tranquillo Zampinetti da
Rua do Gasômetro nº 224-B entre um cabelo e uma barba lia sempre os
comunicados de Guerra do Fanfulla. Muitas
vezes em voz alta até. De
puro entusiasmo. La fulminante investita
dei nostri bravi bersaglieri há ridotto le posizione nemiche in un vero amazzo
di rovine. Nel
campo di battaglia sono restati circa cento e novanta nemici. Dalla nostra
parte abbiamo perduto due cavalli ed è rimasto ferito un bravo soldato, vero
eroe che si à avventurato troppo nella conquista fatta da solo di una batteria
nemica.
Comunicava ao Giacomo engraxate (SALÃO
MUNDIAL) a nova vitória e entoava:
Tripoli
sarà italiana,
sarà italiana a rombo di cannone!
sarà italiana a rombo di cannone!
Nesses dias memoráveis diante dos
fregueses assustados brandia a navalha como uma espada:
— Caramba, come dicono gli spagnuoli!
Mas tinha um desgosto. Desgosto
patriótico e doméstico. Tanto o Lorenzo como o Bruno (Russinho para a saparia
do Brás) não queriam saber de falar italiano. Nem brincando. O Lorenzo era até
irritante.
— Lorenzo! Tua madre ti chiama!
Nada.
— Tua madre ti chiama, ti dico!
Inútil.
— Per l'ultima volta) Lorenzo! Tua
madre ti chiama, hai capito?
Que o quê.
— Stai attento que ti rompo la faccia,
figlio d'un cane sozzaglione, che non sei altro!
— Pode ofender que eu não entendo!
Mamãe! MAMÃE! MAMÃE!
Cada surra que só vendo.
Depois do jantar Tranquillo punha duas
cadeiras na calçada e chamava a mulher. Ficavam gozando a fresca uma porção de
tempo. Tranquillo cachimbando. Dona Emília fazendo meias roxas, verdes,
amarelas. Às vezes o Giacomo vinha também carregando a sua cadeira de palha
grossa.
Raramente abriam a boca. Quase que
para cumprimentar só:
— Buona sera, Crispino.
— Tanti saluti a casa, sora
Clementina.
Mas quando dava na telha do Carlino
Pantaleoni, proprietário da QUITANDA BELLA TOSCANA, de vir também se reunir ao
grupo era uma vez o silêncio. Falava tanto que nem parava na cadeira. Andava de
um lado para outro. Com grandes gestos. E era um desgraçado: citava Dante
Alighieri e Leonardo da Vinci. Só esses. Mas também sem titubear. E vinte vezes
cada dez minutos. Desgraçado.
O assunto já sabe: Itália. Itália e
mais Itália. Porque a Itália isto, porque a Itália aquilo. E a Itália quer, a
Itália faz, a Itália é, a Itália manda.
Giacomo era menos jacobino. Tranquillo
era muito. Ficava quieto porém.
É. Ficava quieto. Mas ia dormir com
aquela ideia na cabeça: voltar para a pátria.
Dona Emília sacudia os ombros.
Um dia o Ferrucio candidato do governo
a terceiro juiz de paz do distrito veio cabalar o voto do Tranquillo. Falou.
Falou. Falou. Tranquillo escanhoando o rosto do político só escutava.
— Siamo intesi?
— No. Non sono elettore.
— Non
è elettore? Ma perchè?
— Perchè sono italiano, mio caro
signore.
— Ma che c'entra la nazionalità, Dio
Santo? Pure io sono italiano e farò il giudice!
— Stà bene, stà bene. Penserò.
E votou com outra caderneta.
Depois gostou. Alistou-se eleitor. E
deu até para cabalar.
A guerra européia encontrou Tranquillo
Zampinetti proprietário de quatro prédios na Rua do Gasômetro, dois na Rua
Piratininga, cabo influente do Partido Republicano Paulista e dileto compadre
do primeiro subdelegado do Brás; o Lorenzo interessado da firma Vanzinello
& Cia. e noivo da filha mais velha do Major Antônio Del Piccolo, membro do
diretório governista do Bom Retiro; o Bruno vice-presidente da Associação
Atlética Pingue— Pongue e primeiranista do Ginásio do Estado.
Tranquillo agitou-se todo. Comprou um
mapa das operações com as respectivas bandeirinhas. Colocou no salão o retrato
da família real. Enfeitou o lustre com papel de seda tricolor.
— Questa volta Guglielmone avrà il
suo!
Lorenzo noivava. Bruno caçoava.
Dona Clementina pouco ligava. Mas no
dia em que o marido resolveu influenciado pelo Carlino subscrever para o
empréstimo de guerra protestou indignada. Tranquillo deu dois gritos
patrióticos. Dona Emília deu três econômicos. Tranquillo cedeu. E mostrou ao
Carlino como explicação a sua caderneta de eleitor.
Aos poucos mesmo foi-se
desinteressando da guerra. E chegou à perfeição de ficar quieto na tarde em que
o Bruno entrou pela casa adentro berrando como um possesso:
Il General Cadorna
scrisse alla Regina:
Si vuol vedere Trieste
t'la mando in cartolina...
scrisse alla Regina:
Si vuol vedere Trieste
t'la mando in cartolina...
E o Bruno só para moer não cantou
outra coisa durante três dias.
Proprietário de mais dois prédios à
Rua Santa Cruz da Figueira Tranquillo Zampinetti fechou o salão (a mão já lhe
tremia um pouquinho) e entrou para sócio comanditário da Perfumaria Santos
Dumont.
Então já dizia em conversa no Centro
Político do Brás:
— Do que a gente bisogna no Brasil, bisogna
mesmo, é d'un buono governo, mais nada!
E o único trabalho que tinha era
fiscalizar todos os dias a construção da capela da família no cemitério do
Araçá.
Quando o Bruno bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Paulo ao sair do salão
nobre no dia da formatura caiu nos seus braços Tranquillo Zampinetti chorou
como uma criança.
No pátio a banda da Força Pública
(gentilmente cedida pelo doutor Secretário da Justiça) terminava o hino
acadêmico. A estudantada gritava para os visitantes:
— Chapéu! Chapéu-péu-péu!
E maxixava sob as arcadas.
Tranquillo empurrou o filho com fraque
e tudo para dentro do automóvel no Largo de São Francisco e mandou tocar a toda
para casa.
Dona Emília estava mexendo na cozinha
quando o filho do Lorenzo gritou no corredor:
— Vovó! Vovó! Venha ver o tio Bruno de
cartola!
Tremeu inteirinha. E veio ao encontro
do filho amparada pelo Lorenzo e pela nora.
— Benedetto pupo mio!
Vendo os cinco chorando abraçados o
filho do Lorenzo abriu também a boca.
O primeiro serviço profissional do
Bruno foi requerer ao Excelentíssimo Senhor Doutor Ministro da Justiça e
Negócios Interiores do Brasil a naturalização de Tranquillo Zampinetti, cidadão
italiano residente em São Paulo.
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