10/25/2017

Um aniversário (Conto), de Marques de Carvalho


Um aniversário
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Seis anos, hoje, que finou-se a mais santa das criaturas, a mais querida e amorável das mães.
Perante a emotividade profundíssima do meu ser, não tem hoje poder as largas pompas majestosas deste romper de dia sereno sobre a paisagem Assoalhada, vibrante de esplendor, fremente de canções de aves silvestres. Ao contrário, tudo me parece melancólico, monótono, quase hostil, porque recebo as impressões externas através dos meus sentimentos e estes concentram-se nas amaríssimas dores excitadas pela inapagável recordação da morte de minha mãe!
***
Há destas originalidades no frágil espírito humano: diz alegres os dias pluviosos, encontra-lhes graça, apraz-se em aspirar umidade na meia-sombra dos nevoeiros, — se algum prazer abala-o jubiloso; entretanto, encara indiferente ou raivoso as glórias da natureza; não tem um olhar para as galas triunfais do espaço azul rutilante, acolchoado de alvas nuvens panejadas harmonicamente; enfastia-se e agasta-se até com a passiva tranquilidade das coisas, com o chilrear dos passarinhos, — quando algum desgosto lateja-lhe no coração encarquilhado ao peso das grandes dores supremas!
***
Estou a recordar-me das fúnebres e tremendas peripécias daquela inolvidável tarde de 21 de abril, há seis anos.
Uma pequenina alcova de matrona, — grave aposento destituído de luxo banal, apenas confortável. Ao lado de um guarda-vestidos, pesado e bom, uma mesa coberta de frascos de medicamentos com etiquetas multicores, borradas de receitas pretensiosamente escritas em termos bárbaros, chocantes de ouvir, indicando venenos medidos aos milésimos, com mistério.
Ao fundo, uma cama austera, toda branca em seus lençóis e colchas, sob os quais desenhava-se um corpo longo, pouco amplo, de que apenas via-se, repousada em grandes travesseiras alvas, uma cabeça de mulher, encaixilhada em bastos cabelos negros, lustrosos, apenas aqui e ali, de longe em longe, irisados de fios brancos que desprendiam o brilho metálico da prata polida.
Os olhos, semi cerrados, fitavam um ponto único da parede fronteira, onde um pequeno raio de sol, atravessando o arco de uma janela da sala, fixava-se insistente, como receoso de desaparecer além, atrás das casas da praça, ou desejoso de não abandonar, no meio-tom confuso de um crepúsculo precoce, aquele quarto mortuário, em que estava para começar uma agonia. O olhar de minha mãe persistia fito no luminoso circulozinho, que acendia de amarelo a brancura da parede nua.
Quem sabe o que vem os moribundos nos seus derradeiros momentos lúcidos? Que visões obsedam-lhes os últimos, instantes, subjugando-lhes o espírito já tão enfraquecido, dominando-os poderosamente? Vêm pela última vez o gozo de alguma ventura oculta, entristecem-se pela próxima separação do encanto da vida ou entrevem já o beatifico descanso interminável que aguarda-os no pó da sepultura?
***
Quase seis horas. Continuavam os olhos presos ao círculo luminoso, que subira mais, aproximando-se do teto, num deslizar de vida que se extingue suave.
Pelo rosto emaciado de minha mãe não corria sombra de sofrimento. As faces cavavam-se levemente, o nariz afilava-se, com a transparência de cera dos entes que vão morrer. Entreabertos, os lábios deixavam passar a respiração com um ofejo ciciante e molesto, brandamente. Dir-se-ia dormitar a enferma, a não serem os olhos, agora um pouco mais abertos do que antes...
Em torno, alguns parentes vigiavam imóveis, com a expressão contristada, transida, que temos ao esperar a morte. À cabeceira, de pé, encostada ao espaldar do leito, minha irmãzinha chorava em silêncio, enxugava as incessantes lágrimas, sufocava os soluços, para não trair-se.
Quem atrever-se-ia a mostrar que sofria, perante aquele resinado sofrimento que tão bem continha-se?
Meu irmão igualmente quedava-se perfilado, os olhos cravados nesse rosto pálido, nessa bendita fronte ebúrnea que a virtude aureolava, nesses doces lábios que pressentíamos frios, frigidíssimos, não obstante o ardente hálito que esfrolava-os, já osculados pela morte!...
Aqueles lábios sonorosos, aqueles lábios cantantes de mãe brasileira, — quem poderia mais galvanizá-los, fazê-los vibrar com o dulcíssimo afeto maternal que era o nosso inefável enlevo na quadra festiva da meninice descuidosa?
Onde iríamos beber os prudentes conselhos que esses puríssimos lábios proferiram, deixaram cair em nossas almas como um desfiar de pérolas raras em taças de cristal?...
Quem seria, dali em diante, a amiga incomparável, a santa companheira da nossa adolescência ardente, a meiga representante desse encanecido vulto, — heroico protótipo da afeição familiar, da honra, da dignidade, de todos os boníssimos sentimentos, — que foi o nosso Pai?...
Oh! desgraçados que éramos! Naquele impassível expirar de tarde equatorial pomposa e abrasadora, íamos perder para sempre, — para sempre! — o nosso mais valioso dote, a vida de nossa Mãe!...
***
Seis horas e poucos minutos, desaparecera do teto, sempre seguido pelos olhos da moribunda, o círculo luminoso, a despedida do sol à vida periclitante. Desmaiara mais, tornara-se apenas uma tênue mancha amarela, breve transformada em sombra quase imperceptível. Depois, esbatendo-se gradualmente, fora suprimida. Desapareceu: começou a agonia na enferma.
É doloroso assistir ao estertor dos moribundos. Terríveis embates sofremos na alma. Primeiro, o egoísmo natural no homem, excitado pela lembrança de ir perder um ente amado; depois, a constatação de que nunca mais poderá gozar-lhe do convívio, ouvir-lhe a fala afetuosa, oscular-lhe a fronte calma, as faces sorridentes com a imensa candura da virtude. Porém onde haverá mais requintado, mais vivo e agudo sofrer, do que na própria sensação que experimentamos da agonia do moribundo amado? Em que série de martírios arquiexcruciantes classificar esse desespero torvo, enlouquecedor, vibrante, que em nós erguem a compreensão das dores a que assistimos e a impotência de não podermos participar delas, tomar para nós a maior porção, atenuá-las um pouco, com o osculo das mãos acariciantes e com a ternura emoliente dos beijos ultraexpressivos dos últimos, dos supremos adeuses?...
Vinham-me ao espírito ideias estonteadoras, que levavam-me à meta da dor. Ver sofrer a santa mulher que deu-me a vida, que tão feliz foi sempre em possuir nos braços enlaçantes os filhos queridos e amoráveis, era uma provação capaz de abalar-me a solidez da razão. E depois, há sempre, à beira do túmulo de um ente que viveu em ligação íntima conosco, uma evocação, rapidíssima porém muito minuciosa, de todo o nosso passado.
E o meu passado... quão unido estava ao daquela moribunda, que em vão buscava, ao vaguear a vista já vidrada pelo aposento, o raio de sol que viera despedi-la da vida, dar-lhe à alma, por um momento, na hora extrema, a claridade imaculável que ela sempre teve na consciência, na honra!
Vi-me criança, buliçoso e festivo, sem um desprazer além do provocado pelas privações dos brinquedos. Vi-me em todas as situações da existência, em todas as fases de uma juventude agitada, em todas as peripécias das nossas viagens, das nossas diversões, dos nossos gozos. Em toda a parte, de qualquer modo que manejasse aquelas cenas retrospectivas, ela aparecia-me sempre como o misericordioso intérprete dos meus votos de felicidade, o meu anjo tutelar, o amparo iniludível da minha inexperiência, o meu aconselhador ajuizado como todas as boas mães.
Quanta saudade, quanta, do meu passado extinto!...
***
Alguém tinha ido à igreja próxima, — a dez passos dali, no lado oposto do largo, — pedir o socorro da religião e um levita acudiu, balbuciando preces indistintas, a ungir quem ia morrer.
A aparição de um sacerdote que traz o extremo sacramento a um enfermo apavora sempre. Ante semelhante visita, eu e meu irmão principiamos de novo a chorar, — nós que pensávamos já ter esgotado as lágrimas, tão abundante fora, desde três dias, o nosso pranto.
Retirando-se o padre, — sempre murmurando orações em latim, — a agonia aumentou. Vizinhos tinham acudido, serviçais e bisbilhoteiros. Causaram-me raiva, quase molesto-os com uma demonstração mais evidente do meu enfado pela sua presença, quando desejara, a sós com os meus, receber o derradeiro alento da querida alma adorável.
Por que há de prender-nos a educação num círculo ígneo, impondo-nos domínio, heroicos fingimentos, até nos mais tremendos instantes da vida?...
Soluços mais rápidos de minha irmã fizeram-me esquecer esta série de reflexões, voltaram-me para o leito onde estertorava já a doce companheira da minha inocência.
Acabei de compreender este redobramento de choro, vendo acercar-se alguém com uma vela acesa, que foi posta entre as mãos afusadas e lívidas da moribunda.
Minha mãe ia morrer! Oh dilacerante, imensa dor trazida por esta convicção!
Lancei-me de chofre a beijar-lhe a fronte camarinhada de suor, os cabelos sedosos, negros como a aflição de minha alma, as faces encovadas, os lábios crispados, álgidos, por entre os quais esgueirava-se um lancinante estertor crescente, que dizia demasiado a aproximação do momento fatal... Alucinado, pensei que a minha vitalidade, a minha florida juventude poderia reanimar, devolver à vida aquele espírito imensamente amado e em vão tentava aquecer-lhe o invólucro com o ardentíssimo, impotente contato dos meus beijos filiais!
Mas, de súbito, houve uma cessação na agonia... Estarreci... Iria minha alma incrédula defrontar um milagre?... Oh! Deus era bom, Deus existia então, além da lenda bíblica!... O rosto de minha mãe serenara, conservando, todavia, uma expressão retraída, grave, como quem escuta a voz interior de uma interessante evocação da existência inteira.
Os cílios palpitaram longos, numa projeção calma de sombra nas faces. Brilharam os olhos, tranquilos de expressão e, vagaroso, subiu o olhar para o sítio onde cravara-se antes o raio de sol extinto agora.
Logo, porém, desceu, a fim de erguer-se ainda, para minha irmã, para meu irmão, para mim... Demorou-se fito em minhas pupilas lacrimantes esse inolvidável olhar, tão sereno como a tranquilidade da sua alma sem mácula, translúcido numa expressão de quem medira o alcance do grande minuto final.
Quem poderá estereotipar o último olhar das mães aos filhos estremecidos?
Atônito, baixei-me a receber o afago desse olhar tão expressivo como um beijo mudo. O milagre providencial ia operar-se, decerto. Eu abençoava já o eterno Benfeitor da humanidade... ingênuo no egoísmo do meu almejo.
Os lábios, no entanto, descerraram-se. E, enquanto os olhos, um nada mais vítreos, vagavam sobre os três rostos dos filhos surpresos, transidos de admiração e esperança, aquela boca lívida moveu-se no balbucio inextrincável de uma frase indistinta que, certo, era uma prece, um conselho bom, uma bênção, um adeus!
E os olhos fecharam-se, no mesmo calmo palpitar dos longos cílios, os lábios contraíram-se à passagem de um suspiro mais longo, — um soluço dolentíssimo, — e a cabeça pendeu à direita, buscando o meu primeiro beijo a um cadáver amado, quente do último esforço para dizer-nos com a vista a intensidade insondável do seu carinhoso afeto!
***
Há seis anos passou o horrendo transe que prostrou-me louco sobre os despojos fúnebres da mais santa e querida das Mães.
Dura sempre a dor de um filho amantíssimo? Creio bem que sim. Investigando a incalculável profundez dos meus pesares, cotejando as impressões de hoje com as do ano passado, com as do outro ano, do outro e do dia em que estalou sobre mim a grande fatalidade, verifico a persistência da mesma dor molesta, íntima, enorme, saudosamente triste, que levanta-me no espírito uma raiva contra a gloriosa expansão desta manhã rutilante e contra o gorjeio sonoro das aves, que estão, agora mesmo, a lembrar-me os doces cantos simples da infância, quando, todo prazer e venturas, meu coração acolhia-se no tépido sacrário de afetos e carícias que era para mim o colo amigo e protetor da mais amorável de todas as mães!
Onde estão os meus deliciosos sorrisos infantis de outrora?...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...