11/28/2017

Amores… (Conto), de Wenceslau de Moraes


Amores…
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Uma impressão de Macau.
O que faria aquele bando de leprosos, que a polícia da colônia surpreendeu e agarrou? O que faria aquele bando de leprosos, além no meio do rio, sobre um miserável barco, pela noite velha, tenebrosa e fria, ora pairando e deslizando ao grado da corrente, ora remando manso, de margem para margem, em vigia?...
Eles eram uns ossudos filhos das aldeias, dando-nos de longe uma impressão de robustez de músculos, de gente afeita à enxada e à vida de lavoura. Vistos de perto, ressaltava horrivelmente o ferrete de peçonha do seu sangue; eram indescritíveis seres inúteis, abjetos, quase sem mãos, quase sem pés, porque os dedos lhes iam caindo podres aos pedaços; rostos medonhos lavrados pelo mal, sem narizes, com os beiços roídos, com as faces chagadas; ainda mais sinistros pela infâmia estampada nas feições e nos olhares, denunciando perversidades de alma de ínfimo quilate, por certo derivadas da suprema degradação do seu viver. Vestiam farrapos imundos, sem forma definida e sem cor reconhecível; e escondiam as frontes, talvez envergonhadas, sob as abas enormes dos chapéus de rota, em uso nas aldeias.
Pescavam? por aquelas horas da noite e naquele paradeiro, não era admissível esta suposição; nem no mísero barco, onde se amontoavam alguns trapos, se deu fé de anzóis ou de outras artes de pescar.
Mendigavam? menos possível ainda que assim fosse. A tais horas, dormem todos, incluindo os mendigos. O rio dormia, silencioso, lúgubre pelo aspeto das suas águas negras, dos cascos alterosos das grandes lorchas juntas em magotes, desenhando-se vagamente junto às margens os barquitos em cardumes, presos às varas de bambu encravadas no lodo. Apenas de espaço a espaço algum raro tanka atravessava dum lado para outro, chape-chape, remos movidos lentamente pelas mãos das raparigas sonarentas, fartas da lida do dia, — coisa de ir levar ao seu albergue algum retardatário, de volta do jogo ou das orgias. — Não era dos noturnos viageiros, e menos dos pobres tankareiras, que o bando de leprosos lograria um punhado de sapecas, que compensasse o esforço da vigília. Nem a sua miséria, realmente, era tal, que os levasse a tão duros extremos. É certo que o leproso se encontra excluído dos povoados. Em paragens mais rústicas, matam-no à pedrada, se o encontram; em Macau, porém, a brandura dos costumes rejeita em regra esta medida, tenha embora o miserável de viver pelos esteiros, em barcos podres, ou sobre os lodos, escondido das gentes como um bicho peçonhento. No entretanto, o esteiro fornece-lhe peixes vis, e caranguejos, e moluscos, e vermes; os cães vadios encontram de quando em quando, nos despejos, um punhado de arroz cozido, e o leproso também o encontra, como eles. Na altivez da sua pasmosa abjeção, o leproso não vem expor-se ao asco, ao opróbrio; sorri ao mundo com desdém, acoita-se no antro, come imundícies, bebe água podre; e os fados são-lhe bastante complacentes em geral, para matá-los da moléstia antes que arrebentem pela fome...
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Averiguou-se finalmente o que fazia aquele bando de leprosos.
Aqueles ínfimos párias passavam a existência isoladamente, cioso cada qual do seu covil, dos seus farrapos, devorando sem partilha o que o acaso lhe oferecia nos enxurros. Conheciam-se certamente, pela vizinhança dos antros, sobre a mesma vasa que se alastra na margem fronteira à de Macau, e a fatalidade comum estabelecia de direito afinidades, alianças tácitas de tribo, entre eles; mas, como não carecessem uns dos outros para sofrerem, para odiarem a natureza criadora, para jazerem no ninho da trapagem, para morrerem, não se procuravam. Na imaginação imersa em trevas de cada um, rústica, pouco elástica, e cultivada em ascos, em maldições, em misantropias rancorosas, nunca por certo passara a fantasia de vir insinuar-se na turba, partilhar das suas distrações, relancear os festins, percorrer os bazares, invadir os templos e os teatros. Mas na turva e lenta elaboração do pensamento, durante os longos dias, os longos meses, os longos anos de isolamento e de ócio, um desejo se fora pouco a pouco avolumando, definindo, convertido finalmente em tortura, amargurando como uma dor constante e implacável: — era a mulher, o desejo, a tortura da mulher. — Prazeres do mundo não se queriam, nem mesmo se lhes imaginavam os feitiços; era-se superior a essa quimera. Mas, no ambiente acariciador da vida, em presença das árvores frutificando, das flores perfumadas, dos animais requestando-se, os hinos da terra, da criação em galas, do amor dos sexos, vinham também ecoar naqueles cérebros, eletrizar aqueles nervos; a visão da mulher, durante as mornas monotonias sem termo, aparecia como um apetite crescente, como uma fome de carne; e os miseráveis, alucinados pela obcecação de todos os momentos, estremeciam, erguiam-se de súbito do seu leito de trapos, arquejantes, o sangue a escaldar-lhes as frontes, o olhar em fogo...
Então, tacitamente, impôs-se a cada qual a necessidade de fraternizar com o seu vizinho, de agremiar-se em bando. A união faz a força. Procuraram-se, entenderam-se. Medonhos conciliábulos se passaram, a coberto das trevas, pelas noites longas, sobre os lodos. Segredava-se, aventurava-se um plano, discutia-se. Os olhos fuzilavam como raios, a frase rouca golfava dos lábios, eloquente, persuasiva, os membros disformes erguiam-se na sombra em gestos trágicos. E assim se escolheu o barco menos podre, se nomeou a companha, o capitão, se esperou por uma noite mais escura, azada aos seus intentos. Assim tiveram início e prosseguiram os estranhos cruzeiros, à aventura. Ei-los, o bando imundo dos gafados, à capa, pairando ou remando a medo, de manso, de manso, silenciosamente, e perscrutando as trevas. Se ia passando algum tanka, os ouvidos subtis e os olhos experimentados, estudavam, presumiam, adivinhavam. Quando era chegado o bom momento, então, — oh delírio supremo! — num ímpeto de remadas e desejos, o barco voava, dava a abordagem, os milhafres caiam sobre as vítimas indefesas. Hábeis no ataque, com as mãos sem dedos sufocavam os gritos das mulheres, a murros, ou premindo; num relance, pelo faro, distinguiam das velhas as moças, apartavam dos ossos duros a carne fofa e tenra; e com fome de hienas, as bocas pestilentas comiam, devoravam com beijos as pobres raparigas, que em vão se debatiam na luta tremenda duns instantes...
Após, o barco dos leprosos seguia serenamente a atracar à margem chinesa, e eles dispersavam, mudos, quase felizes, indiferentes por momentos ao prurido das chagas; e semanas depois reuniam-se novamente. No tanka, as moças ficavam-se chorando, arrepelando-se de horror, de desespero, de vergonha por sua mofina sorte; e tanto mais mofina, que é assim, por um beijo, segundo a voz do povo, que a lepra se propaga, se multiplica de corpo para corpo.

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