11/28/2017

O espelho de Matsuyama (Conto), de Wenceslau de Moraes


O espelho de Matsuyama
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Viveu há muito tempo no Japão um feliz casal de gente rústica, modelo de virtudes conjugais; eram eles, os dois, e uma filhinha, o seu encanto. O povo varreu já da memória os nomes dessa gente; não admira, quando se pense que tantos séculos passaram. Indica-se apenas o lugar, Matsuyama, que quer dizer Montanha dos pinheiros, na província de Echigo. Esta ligeira indicação basta para que imaginemos o cenário: serranias, pinheirais, sucedendo-se a serranias, pinheirais; a terra, a rocha, fofas de musgos, de fetos, de erva brava; covões, precipícios, cachoeiras, por onde a água golfa, espuma e rumoreja; pios de corvos e hinos de cigarras; raros caminhos serpeando, calcados pelas sandálias dos que passam; e aqui, e além, alguma humilde cabana de aldeões, de barro e colmo, aonde a vida íntima, após as horas de labuta, desliza em longos repousos sobre a esteira, em simplicidades primitivas, em face da grande paz da cena agreste, e do azul sem fim dos largos horizontes. Numa dessas cabanas vivia o casal a que aludi.
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Ora, aconteceu uma vez que negócios muito graves chamaram o marido à faustuosa cidade, à capital de todo o império. Figure-se o alvoroço e o reboliço na choupana. Em coisas de viagem, a experiência da esposa resumia-se ao trilho que seguira raras vezes, em duas horas de caminho, do seu lar ao lugarejo mais vizinho. Alanceavam-na agora vários sustos, acudiam-lhe ao espírito não sei que perigos e trabalhos, malefícios dos gênios das florestas, mil revezes a que se ia expor o companheiro... Por outro lado, envaidava-se com a ideia de ser ele o primeiro do lugar que ia ver por seus olhos a mansão da corte e do soberano, e contemplar as grandes maravilhas que lá por certo havia. Ela ficava; ela tinha a sua pequerrucha e o cuidado do lar; e, embora mordida de saudades, devia resignar-se aos deveres do seu mister, e aos anseios daquela dura ausência.
E que terna que foi a despedida!... Beijos e abraços não se deram, porque os japoneses não dão nem beijos nem abraços; lágrimas não correram, porque os japoneses nunca choram; mas foram tantas as mesuras e tantos os sorrisos, e tão longa a última palestra, ele prometendo voltar breve, ela prodigalizando mil conselhos, que era mesmo um regalo contemplar casal tão meigo e tão feliz!...
E lá foi o marido.
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Passaram-se semanas e semanas; para encurtar razões, anuncia-se agora o regresso do sujeito. É vê-la então, a cirandeira, ora varrendo, ora lavando, ora arrumando, dispondo a choça em festa para a ditosa hora da chegada. É a pequenita certamente que mais cuidados lhe merece: o kimonozinho de crepe de seda preciosa, a faixa da cintura, a flor para o cabelo, tudo novo, tudo fresco, tudo lindo, se põe de parte, se examina; e os dedos finos da mamã, em curvas adoráveis, saltam, voam, aqui alisam pregas, ali compõem laços, com habilidades únicas, prodigiosas; convém saber que não há mãos mais bonitas e mais destras do que as mãos das japonesas, nem mães mais carinhosas do que estas mamãs do Dai-Nippon. Ela própria, a mamã, também cuida de si, não se furta aos adornos, não por arte talvez, por instinto do sexo; e ei-la enfiando os pés nus em grandes socos novos, de charão negro e luzente, e estreando um kimono catita, azul e branco. E lá vão elas, as duas, certo dia, trilhos fora, tic-tac, tic-tac, ao encontro do homem.
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Ai, que júbilos, ao toparem com ele são e salvo, todo chibante, bamboleando-se no seu passo vagaroso, para mais prolongar tão doce transe!... — “Bons dias, senhor marido! Bons dias, senhor meu pai!” — e os corpos agacham-se em mesuras, e as cabecitas vão quase tocar o chão do campo. E como a pequerrucha bate as palmas, e se lhe acendem os olhitos, quando ele logo ali lhe quer vazar no regaço a caixa de bonecos que comprara, carretas de madeira, raposas de pelúcia, uma viola, minúsculos aparelhos de cozinha e muitas outras maravilhas!... Ele promete entreter dias inteiros, só com a narração do que seus olhos viram: teatros regurgitando de musumés, vestidas como deusas; príncipes em comitivas resplendentes, passeando em liteiras de charão, e o povo prostrado a adorá-los pelas ruas; serenatas nos rios, barcos vogando a transbordarem de mulheres e enfeitados com balões, gemem as cordas das violas e estalejam nos ares foguetes de mil cores; templos gigantes e enormes sinos badalando; palácios cheios de luxo; jardins cheios de flores; e por toda a parte a imensa multidão, de velhos, de rapazes, de meninos, feliz, risonha, pachorrenta; e a imensa indústria dos bazares, charões, ouros, sedas, porcelanas, adornos sem conta nem medida, tudo digno de ir adornar mansões de fadas, no mundo das quimeras!...
O marido passou depois às mãozitas da esposa, trêmulas de emoção, um belo cofre de madeira branca, cuidadosamente fechado, e disse-lhe isto: — “Não me esqueci de ti, como estás vendo; trago-te uma coisa muito linda, que tu decerto não conheces, um espelho, um kagami, como lhe chamam na cidade.” — Ela então, abrindo o cofre, observou a oferta; era um grande disco de metal, com o seu cabo, tendo uma face prateada, com relevos de folhagem de bambu e voos de cegonhas, e a outra face límpida e brilhante como um puro cristal.
É bom saber-se que, sendo a indústria do vidro recentíssima no Japão, só há mui pouco tempo aqui se conheceram os espelhinhos reles da indústria ocidental; nos velhos tempos, os espelhos do país eram metálicos, de preciosa liga e artístico trabalho, objetos caros, excluídos do lar dos aldeões; de sorte que é presumível, dada a simplicidade de alma da pobre gente rústica de então, que as belas ignorassem que eram belas, por nem no espelho da água das ribeiras se mirarem. Mas vamos nós à história, excluindo divagações que pouco interessam.
Dizia o marido à companheira: — “Olha bem para a face brilhante deste espelho e conta-me o que vês.” — Ela era toda olhos, toda surpresas, toda êxtase; e respondeu por fim que via o rosto de uma mulher muito gentil, com um oval de enfeitiçar, comuns olhinhos negros muito doces, com uma rubra boquinha de cobiça. Disse mais que essa mulher não cessava de fitá-la; e se ria, a mulher ria; e se falava, os lábios da mulher acompanhavam-na no gesto; e, para cúmulo de estranheza, vestia um kimono azul e branco, igual ao seu, que ela trazia... O marido sorria-se, já com uns ares de doutor, que da viagem lhe provinham; e foi benevolamente convencendo-a de que essa mulher era ela mesma, e que o espelho, por um mistério que ele não sabia explicar, apenas reproduzia a sua imagem, os seus encantos próprios; lá na cidade, muitas raparigas possuíam espelhos como aquele, e neles se viam e reviam, ora compondo as voltas do cabelo, ora pintando os lábios de escarlate, ora por mero passatempo de se acharem bonitas, as garridas. A esposa ficou então louquinha com o presente; e... diga-se toda a verdade: cheia de orgulho de si mesma, por se ver tão catita, tão fresca, apetecível. Foram semanas e semanas votadas a esse enlevo, a mirar-se, a namorar-se — quem não lhe relevará essa vaidade? — até que finalmente convenceu-se de que um espelho era joia preciosa de mais para servir todos os dias, ali na choça nua, na solidão dos bosques; assim se explica o caso de ter ele ido parar dentro de uma gaveta, esquecido de mistura com as velhas relíquias da família.
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E vão passando os dias, os meses e os anos. A felicidade bafeja constantemente aquele lar. A grande alegria do casal é a filha, que cresce em mimos, tornando-se a verdadeira imagem da mamã, e como ela submissa, e como ela afetuosa, e como ela ativa na labuta. Vaidades de mulher, que tanto prejudicam no futuro as raparigas, não as tinha; e deve aqui prestar-se inteiro aplauso à previdência da mamã, que em lembrança dos seus caprichos de outro tempo, passageiros, nunca à mocinha confiou o espelho, velha joia sem uso, esquecida na gaveta.
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E vão passando os dias, os meses e os anos. Muitos anos. A mãe, uma velhinha com a alvura da neve por cor dos seus cabelos, jaz prostrada na cama, sem forças, moribunda; a filha, junto dela, multiplica-se em cuidados, anima a triste enferma.
A custo, diz a velha: — “Sinto que morro, vai-me fugindo a luz dos olhos. Vou deixar-te, e o nosso velho amigo. É isto que me pesa; cheguei a persuadir-me de que este nosso bem não tinha fim. Por ti, tão só que ficas, receio muito, filha: o mundo é um grande mar, cheio de escolhos e de perigos...” — E deteve-se e pôs-se a meditar por muito tempo, passando pela fronte os dedos descarnados; então, um pensamento lhe acudiu, uma dessas travessuras de velha que só redundam para o bem, e prosseguiu desta maneira: — “Olha, tenho uma ideia: toma este espelho, este objeto milagroso que veio de muito longe; e jura-me que uma vez em cada dia e uma vez em cada noite, o irás ver. Eu te aparecerei então, no mesmo espelho; e assim, na minha companhia, terás mais ânimo na vida, mais força nas angústias, mais tento com as indecisões da juventude e com os males que te rodeiem.” — E a filha jurou isto; e a velha deixou-se morrer serenamente, resignada, sorrindo à paisagem verde, sorrindo ao sol festivo, que investia em faixas de ouro pela casa...
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A musumé cumpriu atentamente o juramento. Por esta forma percorreu a via da existência, tranquila, sempre assistida pela mãe, que nunca cessou de aparecer-lhe, quando, nas mãos piedosas sustinha o espelho milagroso. Não era da moribunda, lívida, prostrada em agonia, desfalecendo pouco a pouco, a doce aparição; era a mamã gentil, de outros tempos, cheia de louçanias e sorrisos. Achava-se com ela num plácido convívio sem reservas, com ela palestrava, a ela confiava os seus segredos, os seus sobressaltos de donzela; e naquela face pura bebia conforto e recompensas.
O velho algumas vezes surpreendeu a filha com o espelho entre as mãos, sorrindo, murmurando singelas confidências. Pareceu-lhe estranho o caso; e ia um belo dia notar-lhe o disparate, quando a moça lhe fez uma pergunta, por onde avaliou a quimera amorosa com que ela ia embalando o pensamento. — “Repare, senhor meu pai: não vê no espelho a minha mãe?...” — O que o velho via claramente, era a imagem da filha, que ali tinha junto de si em carne e osso, — e que carne! e que osso! — palpitante de vida e gentileza... mas julgou mais prudente conservá-la sob o prestígio da ilusão; e, franzindo muito o rosto, de rude pergaminho, sem que se percebesse se ria ou se chorava, ou se ria e chorava ao mesmo tempo, fez coro com ela, assegurando que sim, que via a santa mãe, e tão bela, e tão fresca, como no dia do noivado...

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