11/03/2017

Durante o bombardeio (Conto), de Virgílio Várzea


Durante o bombardeio

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

---


I
 Ao fundo da chácara, à varanda rendilhada e florida de um bonito pavilhão de mármore erguendo-se num verde alto da colina, a Madalena Graça, com o seu perfil de escultura romana, os olhos negros luzindo num clarão de saudade, fitava incessantemente o Mar, muda e muito pálida, na atitude interrogadora, enigmática, de uma Esfinge.

Havia quase um mês que ela não parava, aflita e inquieta, a alma em sobressaltos, numa tristeza constante, porque desde que rebentara a revolta não vira mais o noivo, um moço altivo e nobre que tinha o culto do Dever e da Honra, e que era oficial do Aquidabã.

A última noite em que tinham estado juntos fora idealizadora e branca. No Espaço ermo e profundo radiavam as estrelas, em malhas hieroglíficas, na sua luz viva e trêmula. Do jardim em torno evolavam-se aromas, subindo das moitas de roseiras e cravos, errando sutil e deliciosamente no ar cheio de uma alvura epitalâmica, de um vago suspirar de estrofes cariciosas do Cântico dos Cânticos. Unidos ambos e quase de mãos dadas, num recanto da varanda onde estavam isolados de todos, ela como que surpreendera, a princípio, uma vaga e recôndita preocupação nos seus olhos ternos de marujo. Interrogara-o a respeito. Ele porém lhe dissera calmamente, a sorrir, que não tinha nada. Preocupado, por quê? Que tolice! Se estava tão feliz e só entregue ao pensamento íntimo de ambos — a próxima união, para sempre, dos seus destinos e dos seus corações!... E serenara logo, a ingênua, acreditando tanto nas suas palavras! Venturosa assim, nem percebera sequer a comoção que o sacudia, à despedida, e que ele se esforçava por dissimular, quando a beijou na fronte e nas mãos... E dizer-se que havia ainda tanta gente que afirmava que o coração advinha! Se assim fosse... Mas eram histórias... Infelizmente o coração não advinha, não!...

Na manhã seguinte, a capital despertara sob o pavor da revolução. A esquadra toda estava ao largo, flutuava em linha de ataque para os lados da Armação. No Aquidabã, o possante couraçado, tremulava o pavilhão do chefe — o contra-almirante Custódio José de Melo. Ao tope dos mastaréus dos demais navios de guerra e dos mercantes de que se apossara a maruja insurreta, palpitava, ao sopro rijo do largo, uma infinidade de bandeirinhas brancas que eram o sinal convencionado da revolta contra o governo do marechal Floriano. Os vasos das esquadras estrangeiras — portuguesa, norte-americana, inglesa, alemã, francesa, italiana — vendo que a luta ia travar-se entre os navios revolucionários e as fortalezas legais da barra e de outros pontos do litoral de Guanabara, tinham deixado campo livre à ação, fundeando para o fundo da baía. Assim, no amplo ancoradouro que fica entre a ilha das Cobras, as de Mocanguê e outras, e a ponta da Armação, Pão de Açúcar e morro do Pico, manobravam as grandes naves rebeldes com algumas torpedeiras, paquetes armados em guerra, rebocadores e lanchas a vapor que cruzavam, de uns locais para outros, em pequenos e rápidos itinerários, levando ou trazendo ordens, a desenharem no ar espirais de fumo alvo e sobre as ondas curvas esteiras de espuma. Em toda a volta do litoral, pelos cais, à retaguarda das extensas linhas de soldados da guarda nacional que os guarneciam para repelir qualquer assalto das torpedeiros e lanchas singrando próximo, o povo aglomerava-se tanto como sobre os outeiros afastados ou abeirados do Mar...

Desde esse dia que começara para ela uma série de desassossegos e apreensões incessantes. E justamente na terrível manhã de alarme e pânico, para toda a cidade, achava-se ele de serviço a bordo do navio-chefe, e não fora rendido, e de certo se vira envolvido na revolução, porque nunca mais lhe aparecera, nem dele tivera notícia. A princípio, ainda esperava vê-lo a cada instante; mas depois, com o decorrer dos dias, capacitara-se de que ele, efetivamente, como quase toda a sua classe, estava metido na guerra civil...

E agora os seus sobressaltos e sustos tornavam-se verdadeira angústia, pois ia travar-se o primeiro bombardeio. Por isso, postada à varanda rendilhada do alto pavilhão de mármore da sua chácara, não cessava de olhar as águas mansas da baía, onde as grandes unidades da esquadra revolucionária, em manobras preparativas, trocavam já os primeiros sinais para o ataque...

II 
Nesse dia, desde o alvorecer que circulava pela capital da República a nova apavoradora de que o almirante Custódio de Melo ia atacar, com a sua esquadra, as fortalezas da barra.

Então o êxodo que entrara de ter lugar logo ao primeiro dia da revolta aumentou consideravelmente, agora louco e tumultuoso, em torrentes de famílias que se despenhavam na direção do interior, para o Estado do Rio ou de Minas Gerais.

O comércio fechara muito cedo, precipitadamente. Nas carroças, bondes, carros, enfim, em toda espécie de veículos de passageiros ou de carga, a população laboriosa e ordeira apinhava-se, num clamor e num pânico, recolhendo desordenadamente às suas casas, ou fugindo para os arrabaldes e subúrbios.

Nas ruas e praças desertas pairava um ar sombrio e sinistro de desolação e de abandono, só cortado, de instante a instante, pelo grosso estrépito das numerosas patrulhas de cavalaria da polícia ou do exército.

E apenas viam-se, pelos outeiros e montes, numa atitude ao mesmo tempo ansiosa e curiosa, algumas famílias da alta sociedade e outras que ainda não haviam podido ou tido tempo de emigrar, enquanto, os homens do povo, que em geral nada têm a perder e nada temem, mantinham-se na mesma posição dos primeiros dias, aglomerados por traz das densas fileiras da guarda nacional, que enegrecia os cais sob as armas faiscantes, dando à metralha um rendez-vous dantesco.

III 
O Aquidabã, de bandeira vermelha ao calcês do mastro grande, os mastaréus de gáveas e joanetes arriados, o pavilhão nacional arvorado à mezena, na sua primitiva armação de fragata, rompia a avançada e já ganhava a altura de Villegagnon, mas numa marcha ronceira, de “carroça”, como se diz no mar dos navios muito lentos que andam pouco ou quase nada. E não andava o grande couraçado senão à razão de uma milha por hora, pois estava com as máquinas e caldeiras estragadas. Tinha entretanto um aspecto soberbo, aterrador, no seu longo e amplo costado todo pintado a negro, com as superestruturas brancas, a grossa e alta chaminé coroada por um curvo penacho de fumo espiralando no ar. De vez em quando, do reduto de proa jorrava um relâmpago escarlate, um vômito de névoa alva que ondulava e se abria entre os mastros, seguido de um ribombo de trovão atroando as vagas. A torre de vante, mais formidável ainda, explodia também a seu turno, abalando céus e terra pelos seus possantes canhões armstrong.

Após o Aquidabã vinha o Trajano, o elegante cruzador de madeira, que é um modelo de construção naval. Manobrava com precisão, oferecendo às vezes, em inusitado arrojo, o costado inteiro às balas, que lhe jogavam continuamente as fortalezas da barra. Mas as suas peças de 70, alvejando-as sempre, não cessavam de lhes arremessar, às muralhas, balas rasas e granadas.

Em terra, os partidários da revolta — que eram a maior parte da cidade— rompiam, de momento a momento, numa grita emocional, misto de entusiasmo e temor, ante a atitude galharda, posto que arriscada, do barco, em meio ao fogo vivo dos fortes.

— Lá vai afundar-se! exclamavam estes. Não é desta que ele escapa! soltavam alguns. Outros diziam: — Mas é um doido aquele Frutuoso Monteiro (primeiro-tenente comandante do Trajano) a expor assim o seu navio! Outros ainda, em maior número e mais confiantes na sorte, afogando o vozear dos demais, berravam: — Qual afundar-se, nem meio afundar-se!... Fogo é assim... O Monteiro é valente, e está cumprindo o seu dever. Ele bem sabe o que faz... Ora ensinar o “Pai nosso” ao vigário... Chetas! Era o que faltava!...

E o Trajano continuava a flutuar e a fazer fogo bravamente, embora já com alguns rombos no casco, os quais os marinheiros iam tapando a bujões de pinho e lona alcatroados.

Em frente a Niterói, junto da Armação, destacava, contra a sombra da costa, o velho couraçado Sete de Setembro, ali abandonado e encalhado, desde o início da luta, por achar-se imprestável. O antigo couraçado de casamata pousava adornado a bombordo e lembrava tristemente um fim trágico de naufrágio... Mais adiante, ao sul de Gragoatá (forte que estava em poder do governo mas que não pudera ser ainda convenientemente artilhado) o Javari — outro velho couraçado — servia apenas de bateria flutuante, atirando, de longe em longe, com os seus grossos canhões de 400, contra os baluartes legais.

O República, um pequeno mas excelente cruzador, então o mais moderno navio da esquadra, chegado havia pouco da Europa com o Tiradentes, nessa ocasião em Montevidéu — evoluía à retaguarda do Aquidabã e na mesma linha do Trajano, a zombar continuamente, como este, do poder das fortalezas da barra. Os seus canhões d'alma longa e grande alcance faziam frequentes disparos. E o seu comandante, um jovem capitão-tenente rio-grandense, de uma bravura e ardor medievais, famoso e muito popular nessa época pela façanha que praticara, meses antes, bombardeando Porto Alegre, contra o governo de Castilhos, a bordo da canhoneira Marajó — tais habilidades de guerra e de náutica desenvolvia com o seu ligeiro navio, enfrentando incólume os pontos mais expostos e perigosos, que dir-se-ia andar em alguma experiência ou exercício de fogo pelas águas de Guanabara.

Então o populacho, que se apinhava nos cais por trás da guarda nacional, tomado de arrebatamento e de júbilo, batia freneticamente as palmas e saudava o denodado marujo em ruidosa aclamação:

— Viva o Lara! Viva o Lara!

Cosida à ponta da Armação, boiava a velha corveta Guanabara, desmastreada e só em casco, porque ia a desarmar quando a insurreição rebentou. Não obstante, como tinha por comandante o célebre sargento Silvino, bravo rapaz que, havia um ano, revoltara a fortaleza de Santa Cruz, e sozinho com a sua guarnição se batera contra as forças de terra do Marechal Floriano; não obstante, essa velha corveta, agora transformada em pontão ou barcaça, fazia certeiro e bem nutrido fogo sobre as posições inimigas.

Entre as ilhas de Mocanguê e a ponta da Areia desenrolava-se um extraordinário conglomerado de cascos e uma seca e extensa floresta de mastros formados pelo Tamandaré, a Marajó, o Madeira, os paquetes armados em guerra Vênus, Marte, Palas, Itaoca, Meteoro, Uranus, Laguna e outros, pertencentes à Frigorífica, ao Lloyd, à Linha Costeira, à Cruzeiro, à Esperança Marítima, à Macaé e Campos, e à Paulista, as grandes e pequenas companhias brasileiras de navegação a vapor. Junto à Boia das Agulhas, numa espécie de curto descampado de águas, sobressaía, quase à parte e solitária dentre as demais naves, como num antigo quadro de batalha naval de outros tempos o arruinado e desprezado arcabouço de teca da Índia da lendária e gloriosa fragata Amazonas, em que o imortal almirante Barroso vencera Riachuelo, na já remota e talvez esquecida campanha do Paraguai. Para o fundo da baía, fora da linha de fogo, viam-se ainda destacar as artísticas mastreações e costados das corvetas lusitanas Mindelo e Afonso d'Albuquerque, do cruzador francês Aréthuse, do cruzador inglês Sirius e das unidades das esquadras americana, italiana e alemã, como o São Francisco, o Dogali, a Arcona. E por trás destes a multidão nacional e internacional dos barcos de vela — cuters, iates, escunas, sumacas, polacas, lúgares, barcas, galeras, flutuando, indistintamente, à distância...

Esse dia sombrio e úmido, despido de alegria e de sol, cheio de escuros turbilhões de nuvens que rolavam e se adensavam pouco a pouco no céu, como para desabarem mais tarde em tormenta, parecia repassado de imensa melancolia.

Mas o bombardeio não cessava, cada vez mais renhido...

IV 
Das duas ruas, denominadas Senador Vergueiro e Marquês de Abrantes, que ligam o Catete a Botafogo, era na segunda que se achava o palacete do Marquês da Graça, um casarão antigo mas solarengo, cercado de varandas de mármore e pousado ao centro de um vasto jardim, no primeiro trato plano do terreno que se desenrolava para os fundos em suaves ondulações de colinas, plantadas de árvores frutíferas e que iam findar, em doces pendores e largo trecho de planície, no arrabalde das Laranjeiras.

Era justamente no mais alto e amplo viso dessas colinas, de onde se dominava o admirável panorama da baía, que se elevava o rendilhado pavilhão de mármore em que estava a Madalena Graça, filha mais nova do Sr. Marquês, acompanhada de todos os seus, de alguns parentes e de famílias amigas que assistiam ao bombardeio. Mas fora, por todos os pontos da colina, sobre os descampados relvosos ou à sombra das velhas e frondosas mangueiras, viam-se gentis e chalradores grupos de senhoras, moças, crianças, homens e rapazes da vizinhança, que para ali haviam afluído desde cedo, a fim de gozarem o terrível mas curioso espetáculo da luta entre a esquadra insurreta e as fortificações do governo.

No momento em que o combate ia mais renhido, estranhos de toda a parte escalavam e transpunham, com desenvoltura e sem repressão, os muros de pedra que guardavam os domínios do Sr. Marquês — um perfeito tipo de antigo fidalgo — e cobriam a colina a toda a rosa-dos-ventos, comentando, numa tumultuosa vozeria de rua, as peripécias, acidentes e aspectos do bombardeio...

Mas a Madalena Graça, ao pavilhão de mármore, no recanto de varanda onde se aninhara, entre as irmãs e amigas, quase não prestava atenção às coisas em volta, cada vez mais pálida e emocionada, o binóculo em punho, a fixar, ora as fortalezas da barra, ora os navios, e sobretudo o Aquidabã, onde estava o noivo.

Então Santa Cruz, São João e a Lage — baluartes governistas — faziam fogo como nunca, tendo as muralhas de granito, em cuja base as ondas marulham dia e noite em largos crivos de espuma, inteiramente envoltas em pastas de fumo alvadio, que a brisa do mar ia levando e espalhando, aos poucos, pelos morros das cercanias. Os seus tiros repetidos buscavam incessantemente os navios rebeldes, particularmente o Aquidabã, o Trajano e o República que as afrontavam mais de perto e mais danos lhes faziam. Entretanto, o pequeno alcance de suas peças antigas e decerto também a inexperiência dos artilheiros, bem como a tática dos vasos de guerra mantendo-se em constante movimento, inutilizavam, por completo, todos os seus projéteis, que, ou não atingiam esses alvos movediços, ou se perdiam, aqui e além, pelas águas. E somente uma moderna peça de 500, que o Marechal Floriano mandara montar à última hora em São João, e que os intrépidos rapazes da Escola Militar haviam pitorescamente apelidado a vovó pelo seu peso e dimensões colossais, guarnecida e manejada por esses mesmos rapazes, lograva fazer, de vez em quando, um ou outro disparo certeiro...

De repente um desses tiros da vovó foi afundar-se bem ao pé do Aquidabã, levantando enorme jorro de espuma.

Todos os que estavam na colina, na maior parte partidários da revolta, estremeceram ao ver aquilo; e os que se haviam sentado ergueram-se logo, gritando, conjuntamente com os outros, num ar de terror:

— Lá bateu no Aquidabã! Lá bateu no Aquidabã!

Ao ouvir tal grito, a Madalena Graça, que vira também o projétil cair junto ao couraçado chefe, ficou subitamente gelada e numa forte emoção, lembrando-se que esse belo navio podia ser de repente posto a pique, carregando para o fundo do mar as centenas de vidas preciosas que tinha no bojo e, entre elas, a do seu noivo querido.

Entretanto, a bala da vovó nem mesmo de recochete pudera tocar o alvo, porque se afundara por estibordo, à distância de alguns metros; distância que, encurtando a perspectiva para os que estavam em terra, dava um engano à visão, parecendo que a bala atingira o Aquidabã. Mas o poderoso couraçado, troando ininterruptamente os canhões, continuava a sustentar galhardamente a sua posição.

Contudo, a Madalena Graça, muito nervosa e quase a chorar, abandonou em seguida o pavilhão e, de braço dado ao pai e cercada das irmãs e amigas, desceu para o palacete. Apenas aí chegou, correu pressurosa ao quarto e, acendendo as velas do seu pequeno oratório, caiu de joelhos diante de uma imagem da Senhora dos Navegantes, a pedir pela vida do noivo e de todos aqueles que, como ele, estavam empenhados no terrível combate...

Entardecia. A colina continuava apinhada de gente. E ao longe, nas águas, o bombardeio parecia acalmar, espaçando os seus tiros.

O céu, apagado e nevoento desde pela manhã, de repente escureceu ainda mais. Um nevoeiro denso, vindo do Atlântico em direção à barra, entrou a invadir tudo, sepultando as fortalezas num sombrio acarvoado. Lufadas agrestes intumesciam o mar, que rebentava e espumava. E um aguaceiro tumultuoso despenhou-se em bátegas...

Na colina da bela chácara do Marquês da Graça a multidão debandou incontinente, os guarda-chuvas ou sombrinhas abertos, em demanda das habitações, próximas ou longínquas: o mesmo sucedia em toda a cidade, na linha dos cais e nas encostas e altos dos outeiros e montes. Pelas ruas e praças, os tramways e veículos de toda a espécie corriam, apinhados, em todas as direções...

O grandioso cenário das águas subitamente mudara. Além, ao norte, na linha extrema do horizonte, a Serra dos Órgãos não se avistava mais. As outras serras menores, que cercam em anfiteatro a baía, afogavam-se numa espessa fusinagem. O mar, a ilha das Cobras, as de Mocanguê, Villegagnon, Niterói, tudo se afundava na neblina...

Cessara de todo o bombardeio.

E o Aquidabã, o Trajano, o República, o Javari, a Guanabara e os outros navios revoltosos, bem assim as demais embarcações em geral, tinham desaparecido também, como soçobrados...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...