11/25/2017

Era preciso... (Conto), de Lima Barreto


Era preciso...
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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O seu medíocre desejo era subir, fosse como fosse; e entendia por isso fazer-se deputado, embora não tivesse uma qualquer ideia política ou social a propor, tornar-se membro desta ou daquela sociedade sábia, embora não tivesse demonstrado qualquer forma de sabedoria.

Fora sempre esse o seu sonho, a sua ânsia, ânsia semelhante à daquele que quer ter fortuna sem ganhá-la no comércio ou na indústria ou mesmo na loteria.

Pensou em distinções marcadas, estabelecidas, carimbadas e fez-se doutor. Há um milhão de doutores de toda a sorte, dentistas, agrimensores, engenheiros, calistas, médicos, advogados e mesmo os da Escola Normal; ele, porém, feito doutor, já se julgou mais alguma coisa, por ter obtido tão corriqueira distinção.

Ainda assim não era bem subir, mas já era qualquer coisa. Precisava mais e tratou de cercar-se de amigos para transformá-los em admiradores.

Quando, por intermédio destes, conseguia outros mais poderosos, abandonava aqueles e explicava assim o abandono:

— Não os posso suportar! São umas bestas! Eu, um sábio! E os novos e os antigos convenciam-se cada vez mais de que o homem era mesmo um portento. Graças à complacência dos alfaiates, viu-se razoavelmente vestido, imaginou-se um Apolo de palmo e meio, e levava a gritar pelas esquinas:

— Eu sou um mármore de Praxíteles! Tenho todas as proporções das estátuas clássicas.

Os amigos ou aqueles que precisavam da sua estulta audácia, para arranjar qualquer coisa, ecoavam:

— O Quitério é mesmo o Apolo de Belvedere! O seu corpo respeita o cânon escultural do v século da Hélade imortal! E o seu espírito... E os ritmos novos!

Mas não falavam na voz, pois os mármores não falam e ele era mesmo de mármore, sem ser esculturado.

Houve, porém, quem julgasse que o rapaz não era nenhum mármore grego do V ou IV século nem tampouco sábio, como afirmavam os seus amigos.

Ele, entretanto, continuava a fazer a sua tapage, a não conceder mérito a ninguém, senão quando se tratava daqueles que tinham influência e poder.

A sua preocupação primordial era saber o que tal ou qual pessoa podia na vida, então o mármore se curvava reverente e submisso; e, se acontecia tratar mal a um cujo valor social não medira bem, logo passava ao extremo oposto sem transição.

Assim, vivendo deste para passar àquele, depois abandonar, se era conveniente, ia subindo, como é de costume dizer-se.

A subida, porém, não lhe pareceu vertiginosa e muito menos segura; e ele tratou de ver de que forma os outros se tinham firmado bem nas posições que adquiriram. Examinou as nossas assembleias e câmaras. X tinha matado a mulher; B armara uma emboscada nas eleições e matara dois; L tinha matado um rival animoso com auxílio de capangas; Z matara a tia; H respondia a júri por ter mandado assassinar um seu competidor eleitoral etc. etc.

“Não há dúvida”, pensou ele, “eu devo matar, para ficar garantido.” Armou-se, e ao primeiro desafeto que encontrou, sem mais aquela, deu-lhe uns tiros que o prostraram sem vida. Hoje, está firme na vida e, de quando em quando, ao lembrar-se do incidente, diz: “Era preciso...”

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