
O pequeno a bordo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A tarde
lenta declinava. Esmaecia a luz de amarelo rútilo, pelo céu e sobre as águas.
Nem o doce triângulo de uma vela, nem as alígeras e alegres asas queridas dos
pássaros marinhos, nem a tufada silhueta em crivo de uma ilha risonha ou o
longínquo e saudoso recorte branquejante de uma costa continental se desenhavam
de leve na deserta e desolada amplidão do Atlântico. Era entretanto na altura
dos ermos litorais saarianos da África, mas já ao mar muitas milhas e deixadas
para trás as grandes calmas da Linha. Vagas altas e espaçadas rolavam, umas
após outras, incessantes e sem fim, como imensos zimbórios rugidores de
esmeralda líquida, aqui e além mosqueados de alvas espumas ferventes.
A barca
corria numa cochada bolina. Com todo o pano caçado, apesar da rija corda de
sudoeste berrante, avançava para o sul, às bordadas contínuas, em demanda do
Brasil.
Àquela hora,
em cima no convés e tombadilho do navio — um belo veleiro e forte casco
algaravio de Faro que já andara na carreira da Inglaterra, da Austrália, do
Canadá, do Báltico, do Mediterrâneo e da Itália — toda a pequena tripulação,
dividida em dois ranchos, de seis homens cada um, espairecia satisfeita, de
mistura com a gente de quarto, estirada sobre o castelo abaulado e debruçada às
bordas oscilantes que as vagas lambiam, a gozar as ociosidades e prazeres do
bom tempo que trazia a Gaivota desde
a saída de Lisboa e que, com as magnificências radiosas dessa primeira tarde
tropical no hemisfério do sul, se tornavam irresistíveis mesmo àqueles que
tinham velado toda a noite, sob o largo e alvo velame enfunado, à luz de ouro
das estrelas, tão amigas das almas marujas que, através o sugestivo silêncio
espiritual das noites sem névoa ou borrasca, constantemente as amam e fitam
enternecidas, na saudade e nostalgia do seu povo, da branca igrejinha festiva
em que foram batizados, da sua aldeia natal e dos seus entes queridos.
Isto
passava-se à proa. À ré, sobre a espaçosa tolda muito límpida onde se erguia a
meia laranja radiante de metais recortados e polidos, o homem de governo,
olhando as velas e a bússola que se erguia diante dele numa pequena coluna
cilíndrica de ferro de um metro de altura e coroada por uma caixa dourada
circular, a bitácula, fechada por espesso e largo vidro de cristal —
fazia girar de vez em quando a roda do leme, aproveitando bem a bordada e
mantendo o rumo do navio. O piloto, ao lado, dirigia a navegação, repartindo
todos os seus cuidados e olhares, toda a sua atenção e pensares, não só pelos
recantos gerais do frágil lenho oscilante, como pelo Firmamento e o mar. Um
pouco avante, contra o portaló, a bombordo, meio voltado para a alheta, o
contramestre, com as mãos erguidas à altura dos olhos, assestava o óculo para
além, para os lados nevoentos do horizonte a nordeste, por onde, havia três
dias, se haviam saudosamente sumido as Canárias, com as suas ilhas pitorescas —
Teneriffe, Fortaventura, Lancerote, Ferro, Las Palmas. E o capitão, como
nenhuma novidade surgia e o tempo se mantinha seguro, descera ao camarim do
comando a escriturar o Diário Náutico,
pôr o “ponto” na carta, marcar as coordenadas do navio.
Nesse
instante, o moço da câmara, saindo dentre vante do mastro do traquete, tendo
nas mãos uma gaiola de arame, onde um lindo canário belga trinador saltitava
alegremente, cor de ouro e cor de sol, aproximou-se da amurada para sacudir os
resíduos de alpista que salpicavam as tábuas do fundo e comedouro — quando, num
balanço mais rijo do casco, inopinadamente, a gaiola escapou-se-lhe dos dedos,
rolando logo nas ondas. Rápido, agarrando de um croque, saltou para a mesa das
malaquetas que pautava a borda proa à popa, e foi sobre ela a correr, brandindo
com destreza o pequeno aparelho náutico, para ver se apanhava a gaiola com o
seu querido canário. Já ia quase a transpor o portaló, mas todos os esforços
eram embalde: a gaiola voava na singradura da barca e ameaçava ir a pique.
Então, estabanadamente, e sem mais querer ou poder refletir, como um louco, no
desespero ansioso de ver perder-se para sempre e ali morrer sem socorro o seu pobre passarinho — jogou-se
audazmente aos vagalhões, sem ao
menos tirar o grosso jaquetão que vestia.
Quase ao
mesmo tempo a equipagem de proa, que
seguira a princípio com júbilo a traquinada do pequeno (um perfeito ginasta)
pois se acostumara desde muito a tantas outras que ele de contínuo fazia,
apreensiva e emocionada de repente com aquele inesperado arrojo do rapaz às
vagas, arrojo que lhe parecera antes
uma queda — gritou forte para ré:
— Gente ao
mar! Gente ao mar, sor piloto!
O
contramestre, que era o tio do menino, pousou de chofre o óculo na gaiuta e
precipitadamente apanhando um salva-vidas, que arrebatou ao jardim dos
balaústres, atirou-o impetuosamente ao mar, popa fora. Mas, como estava bom
tempo e o sobrinho nadava como um peixe, pouco se impressionou com aquilo.
Apenas ouviu
o grito da maruja, o piloto, chamando marinheiros a postos, mandou bracear
vergas baixas, fazendo atravessar o navio para uma pronta virada de bordo. A Gaivota, porém, levava um grande
seguimento, na sua cochada bolina, e, quando entrou de vez na virada, já o
pequeno tinha ficado para trás muitas milhas.
Com a
matinada da manobra o capitão surgiu imediatamente no tombadilho, mandando
prestamente safar o escaler dos picadeiros e engatar as talhas dos turcos, para
o arriar no momento oportuno, quando a barca enfrentasse o Pedrito, — tal se
chamava o robusto rapazola da câmara do belo casco algarvio.
Entretanto,
nesta pequena e angustiosa singradura de socorro, o navio passou muito longe do
pequeno, em virtude da violência das águas que o sudoeste duríssimo impelia
para o quadrante oposto, como uma bala, com rapidez incrível. Mas o Pedrito,
possante e intrépido nadador que era, na força ascendente dos seus quatorze
anos sadios, bracejava animadamente ainda contra os gigantescos torvelinhos das
águas e parecia agora, pela distância e o maroiço bravio, um pequenino ponto
negro boiante, que já mal se avistava de bordo e que rolava e fugia para além,
para além, sobre a crista espumante das ondas.
O capitão
mandou atravessar e aproar novamente para ele. E ainda outra vez, com profundo
desânimo para toda a companha, apesar da prontidão das manobras, o navio não
logrou alcançar o Pedrito, que cada vez flutuava mais longe, mais longe...
Já os vivos
dourados flamantes do sol desbotavam pouco a pouco a oeste, enquanto a vasta
faixa oriental do horizonte se encinzava tristemente. Parecia que no alto
Espaço azulado se ia imperceptivelmente esfolhando toda uma doce floração de
lilases e lírios. E o infinito e desolado oceano cambiava também lentamente a
alacridade azul celeste das suas águas num azul ferrete, muito denso, lúgubre e
sinistro.
Agora, a
bordo da Gaivota, uma imensa aflição
e tristeza esmagavam os corações. O desalento era geral. Ninguém tinha mais
esperança de salvar o pobre Pedrito. E o velho contramestre, de pé contra
borda, não cessava um momento de olhar o pequenino ponto negro boiante, onde se
lhe ia agora a própria alma, dilacerada e vencida sob uma angústia sem nome: as
lágrimas saltavam-lhe dos olhos duas
a duas, rolando-lhe após pelo seu venerando rosto septuagenário, que o sol e a
idade haviam conjuntamente queimado e pergaminhado, em meio de incomparáveis
emoções, durante os seus longos, ermos,
trabalhosos e tristes anos de mar...
A aérea
poeira carbonosa do crepúsculo aumentava de instante a instante, com o
desaparecimento derradeiro dos últimos dourados do sol. E assim nada mais foi
possível distinguir sobre as águas, que o sudoeste cada vez mais intensamente
sublevava às rajadas.
Também agora
se tornava impossível, e mesmo vão totalmente, atrasar por mais tempo a derrota
da barca. Acesos os faróis, que lançavam sobre as vagas longos rastos luminosos
— brancos, verdes, escarlates — o belo casco velejante da Gaivota retomou, airosamente, o seu rumo.
E o capitão,
que entrava agora de quarto, vendo de novo a navegação encaminhada, foi
encostar-se à gaiuta, gritando para o homem do leme:
— É aguentar
nessa proa. E andar assim, que é bom andar...
No entanto,
não se viu mais o Pedrito: ele, como o seu querido canário, desaparecera para
sempre, amortalhado, como num sudário alvinitente, nas marulhosas espumas das
vagas.
A noite
cerrara de todo. E a lua, surgindo na linha afastada e nostálgica do horizonte
a leste, começava a desenrolar o transparente cendal da sua luz nevoenta e de
prata pelos páramos silentes do Infinito e sobre a imensa solidão do Mar.
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