11/04/2017

O pequeno a bordo (Conto), de Virgílio Várzea


O pequeno a bordo
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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A tarde lenta declinava. Esmaecia a luz de amarelo rútilo, pelo céu e sobre as águas. Nem o doce triângulo de uma vela, nem as alígeras e alegres asas queridas dos pássaros marinhos, nem a tufada silhueta em crivo de uma ilha risonha ou o longínquo e saudoso recorte branquejante de uma costa continental se desenhavam de leve na deserta e desolada amplidão do Atlântico. Era entretanto na altura dos ermos litorais saarianos da África, mas já ao mar muitas milhas e deixadas para trás as grandes calmas da Linha. Vagas altas e espaçadas rolavam, umas após outras, incessantes e sem fim, como imensos zimbórios rugidores de esmeralda líquida, aqui e além mosqueados de alvas espumas ferventes.

A barca corria numa cochada bolina. Com todo o pano caçado, apesar da rija corda de sudoeste berrante, avançava para o sul, às bordadas contínuas, em demanda do Brasil.

Àquela hora, em cima no convés e tombadilho do navio — um belo veleiro e forte casco algaravio de Faro que já andara na carreira da Inglaterra, da Austrália, do Canadá, do Báltico, do Mediterrâneo e da Itália — toda a pequena tripulação, dividida em dois ranchos, de seis homens cada um, espairecia satisfeita, de mistura com a gente de quarto, estirada sobre o castelo abaulado e debruçada às bordas oscilantes que as vagas lambiam, a gozar as ociosidades e prazeres do bom tempo que trazia a Gaivota desde a saída de Lisboa e que, com as magnificências radiosas dessa primeira tarde tropical no hemisfério do sul, se tornavam irresistíveis mesmo àqueles que tinham velado toda a noite, sob o largo e alvo velame enfunado, à luz de ouro das estrelas, tão amigas das almas marujas que, através o sugestivo silêncio espiritual das noites sem névoa ou borrasca, constantemente as amam e fitam enternecidas, na saudade e nostalgia do seu povo, da branca igrejinha festiva em que foram batizados, da sua aldeia natal e dos seus entes queridos.

Isto passava-se à proa. À ré, sobre a espaçosa tolda muito límpida onde se erguia a meia laranja radiante de metais recortados e polidos, o homem de governo, olhando as velas e a bússola que se erguia diante dele numa pequena coluna cilíndrica de ferro de um metro de altura e coroada por uma caixa dourada circular, a bitácula, fechada por espesso e largo vidro de cristal — fazia girar de vez em quando a roda do leme, aproveitando bem a bordada e mantendo o rumo do navio. O piloto, ao lado, dirigia a navegação, repartindo todos os seus cuidados e olhares, toda a sua atenção e pensares, não só pelos recantos gerais do frágil lenho oscilante, como pelo Firmamento e o mar. Um pouco avante, contra o portaló, a bombordo, meio voltado para a alheta, o contramestre, com as mãos erguidas à altura dos olhos, assestava o óculo para além, para os lados nevoentos do horizonte a nordeste, por onde, havia três dias, se haviam saudosamente sumido as Canárias, com as suas ilhas pitorescas — Teneriffe, Fortaventura, Lancerote, Ferro, Las Palmas. E o capitão, como nenhuma novidade surgia e o tempo se mantinha seguro, descera ao camarim do comando a escriturar o Diário Náutico, pôr o “ponto” na carta, marcar as coordenadas do navio.

Nesse instante, o moço da câmara, saindo dentre vante do mastro do traquete, tendo nas mãos uma gaiola de arame, onde um lindo canário belga trinador saltitava alegremente, cor de ouro e cor de sol, aproximou-se da amurada para sacudir os resíduos de alpista que salpicavam as tábuas do fundo e comedouro — quando, num balanço mais rijo do casco, inopinadamente, a gaiola escapou-se-lhe dos dedos, rolando logo nas ondas. Rápido, agarrando de um croque, saltou para a mesa das malaquetas que pautava a borda proa à popa, e foi sobre ela a correr, brandindo com destreza o pequeno aparelho náutico, para ver se apanhava a gaiola com o seu querido canário. Já ia quase a transpor o portaló, mas todos os esforços eram embalde: a gaiola voava na singradura da barca e ameaçava ir a pique. Então, estabanadamente, e sem mais querer ou poder refletir, como um louco, no desespero ansioso de ver perder-se para sempre e ali morrer sem socorro o seu pobre passarinho — jogou-se audazmente aos vagalhões, sem ao menos tirar o grosso jaquetão que vestia.

Quase ao mesmo tempo a equipagem de proa, que seguira a princípio com júbilo a traquinada do pequeno (um perfeito ginasta) pois se acostumara desde muito a tantas outras que ele de contínuo fazia, apreensiva e emocionada de repente com aquele inesperado arrojo do rapaz às vagas, arrojo que lhe parecera antes uma queda — gritou forte para ré:

— Gente ao mar! Gente ao mar, sor piloto!

O contramestre, que era o tio do menino, pousou de chofre o óculo na gaiuta e precipitadamente apanhando um salva-vidas, que arrebatou ao jardim dos balaústres, atirou-o impetuosamente ao mar, popa fora. Mas, como estava bom tempo e o sobrinho nadava como um peixe, pouco se impressionou com aquilo.

Apenas ouviu o grito da maruja, o piloto, chamando marinheiros a postos, mandou bracear vergas baixas, fazendo atravessar o navio para uma pronta virada de bordo. A Gaivota, porém, levava um grande seguimento, na sua cochada bolina, e, quando entrou de vez na virada, já o pequeno tinha ficado para trás muitas milhas.

Com a matinada da manobra o capitão surgiu imediatamente no tombadilho, mandando prestamente safar o escaler dos picadeiros e engatar as talhas dos turcos, para o arriar no momento oportuno, quando a barca enfrentasse o Pedrito, — tal se chamava o robusto rapazola da câmara do belo casco algarvio.

Entretanto, nesta pequena e angustiosa singradura de socorro, o navio passou muito longe do pequeno, em virtude da violência das águas que o sudoeste duríssimo impelia para o quadrante oposto, como uma bala, com rapidez incrível. Mas o Pedrito, possante e intrépido nadador que era, na força ascendente dos seus quatorze anos sadios, bracejava animadamente ainda contra os gigantescos torvelinhos das águas e parecia agora, pela distância e o maroiço bravio, um pequenino ponto negro boiante, que já mal se avistava de bordo e que rolava e fugia para além, para além, sobre a crista espumante das ondas.

O capitão mandou atravessar e aproar novamente para ele. E ainda outra vez, com profundo desânimo para toda a companha, apesar da prontidão das manobras, o navio não logrou alcançar o Pedrito, que cada vez flutuava mais longe, mais longe...

Já os vivos dourados flamantes do sol desbotavam pouco a pouco a oeste, enquanto a vasta faixa oriental do horizonte se encinzava tristemente. Parecia que no alto Espaço azulado se ia imperceptivelmente esfolhando toda uma doce floração de lilases e lírios. E o infinito e desolado oceano cambiava também lentamente a alacridade azul celeste das suas águas num azul ferrete, muito denso, lúgubre e sinistro.

Agora, a bordo da Gaivota, uma imensa aflição e tristeza esmagavam os corações. O desalento era geral. Ninguém tinha mais esperança de salvar o pobre Pedrito. E o velho contramestre, de pé contra borda, não cessava um momento de olhar o pequenino ponto negro boiante, onde se lhe ia agora a própria alma, dilacerada e vencida sob uma angústia sem nome: as lágrimas saltavam-lhe dos olhos duas a duas, rolando-lhe após pelo seu venerando rosto septuagenário, que o sol e a idade haviam conjuntamente queimado e pergaminhado, em meio de incomparáveis emoções, durante os seus longos, ermos, trabalhosos e tristes anos de mar...

A aérea poeira carbonosa do crepúsculo aumentava de instante a instante, com o desaparecimento derradeiro dos últimos dourados do sol. E assim nada mais foi possível distinguir sobre as águas, que o sudoeste cada vez mais intensamente sublevava às rajadas.

Também agora se tornava impossível, e mesmo vão totalmente, atrasar por mais tempo a derrota da barca. Acesos os faróis, que lançavam sobre as vagas longos rastos luminosos — brancos, verdes, escarlates — o belo casco velejante da Gaivota retomou, airosamente, o seu rumo.

E o capitão, que entrava agora de quarto, vendo de novo a navegação encaminhada, foi encostar-se à gaiuta, gritando para o homem do leme:

— É aguentar nessa proa. E andar assim, que é bom andar...

No entanto, não se viu mais o Pedrito: ele, como o seu querido canário, desaparecera para sempre, amortalhado, como num sudário alvinitente, nas marulhosas espumas das vagas.

A noite cerrara de todo. E a lua, surgindo na linha afastada e nostálgica do horizonte a leste, começava a desenrolar o transparente cendal da sua luz nevoenta e de prata pelos páramos silentes do Infinito e sobre a imensa solidão do Mar.

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