11/26/2017

O soneto (Conto), de Lima Barreto


O soneto
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Sala de família remediada. Retratos pelas paredes e uma vista do Rio, tirada de Santa Teresa. Há três janelas de sacada dando para um pequeno jardim, São Cristóvão, Anastácio Fragoso, noivo de d. Cecília, filha dos donos da casa, acaba de chegar. A sua futura sogra, D. Apa, está furiosa.

D. APA
Mas, então, o senhor ainda tem a coragem de pôr os pés nesta casa?

ANASTÁCIO (admirado)
Não atino com a razão de seu espanto. Julgo que...

D. APA (furiosa)
Então não sabe que endoideceu minha filha, seu biltre?

ANASTÁCIO (delicado)
Minha senhora, por quem é, não diga tal... Era lá possível que eu...

D. APA
Sim, o senhor, com os seus sonetos...

ANASTÁCIO
Como? Como sonetos podem lá enlouquecer alguém?

D. APA
Os seus pelo menos tiveram esse efeito. Diga-me uma coisa: que quer dizer isto: “O teu pálido olhar, espraiado em dois rios verdes, da cor azul dos desesperos áureos”?

ANASTÁCIO (calmo)
Não entende? E fácil...

D. APA (furiosa)
Fácil! Como é que os rios são verdes da cor azul? São azuis ou verdes, afinal?

ANASTÁCIO (esforçando-se por explicar)
São uma coisa e outra. No mesmo tempo que são verdes, são também azuis...

D. APA (indignada)
Mas onde é que se via rio... O senhor é doido e a sua loucura pega... Veja o estado em que pôs minha filha!

(Entra vagamente d. Cecília, e lendo um papel faz alteração ao meio. Olhe para tudo sem ver. Para na sala).

D. CECÍLIA (declamando)
Não entendo... Eu queria dizer isto (lê):
“Deram-lhe prata branca as lágrimas em fios
de pérolas, e, vivendo em campos suaves
Lindas virgens cristãs cantam o Senhor, reclamais
A canção paternal das perdas e seu tempo.”  (Continuando)
“Prata branca as lágrimas em fios de pérolas”...
Que será? Hum... Mas não é... Há de querer dizer alguma coisa...

D. APA (intervindo)
Deixa disso, minha filha. Ninguém pode compreender isso...

D. CECÍLIA (teimosa)
Não é possível... Isso significa alguma coisa... É preciso pensar... Já me tinha dito que inteligência das moças não era para a alta poesia — não é assim, Anastácio?

ANASTÁCIO (gaguejando)
Às... ve... Às vezes.

D. APA (saltando que nem uma víbora)
Cale-se, seu traste.

D. CECÍLIA (lacrimejante)
Que é isso, mamãe. Não maltrate Anastácio. Ele é tão bom... Veja o que ele diz dos meus olhos:

“Os teus olhos, ó musa eucaristial,
deploram Soluços de tristeza ou dão alegres urros
— A desgraça teatral de quantos os namoram.
Resumindo pincel, batuta, lira e
Melancolicamente entristecidos
A pulverização simbólica das...”

D. APA
Mas, minha filha, como é possível você achar isto bom quando ele te chama de animal, dizendo que dás urros?

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