11/04/2017

Pássaros marinhos (Conto), de Virgílio Várzea


Pássaros marinhos

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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— Que linda tarde e que admirável ocaso!

A voz fresca, alegre, clara, argentina que estas palavras soltara, partira de um grande caramanchão envolto em espessos rendilhados de verdura estrelada de flores que ficava a um canto do jardim, bem na linha do alto e vasto gradil da frente, numa bela chácara de Icaraí.

E logo um rapaz alto e moreno, forte e de tênue bigode curto, com uns olhos negros expressivos e um vago ar melancólico, o qual percorria os canteiros um a um atrás de uma flor predileta que não encontrava entretanto, apanhando à pressa uma singular orquídea cor de ouro aberta, como uma pequenina estrela, entre as demais companheiras vulgares, no parapeito musgoso do velho muro lateral, — encaminhou-se, radiante, para o lugar de onde partira.

Entretanto, ao subir a escadinha cimentada e ao transpor a pequena porta, cheia de festões aromais, do caramanchão, estacou de repente, vacilante e enleado diante de sua prima Laura, a adorada do seu coração, que, contra toda a sua expectativa, ali se achava sozinha, desacompanhada da infalível camarada de sempre, a sua irmãzinha Olga, uma graciosa menina de oito anos, inquieta e pipilante como um passarinho, mas que era às vezes ingenuamente maliciosa com a sua finura e ditos infantis. A buliçosa pequena, esquecida por instantes da irmã, andava a brincar agora, com algumas camaradinhas da vizinhança, lá para os fundos da chácara. Laura, porém, vendo o primo meio tímido e embaraçado, disse-lhe risonha e naturalmente:

— Entre, Armando; sem cerimônia. Não se inquiete por me ver aqui sozinha. A Olga não deve tardar. Venha apreciar este magnífico ocaso...

Ele acudiu a sorrir:

— Mas podemos ficar ambos aqui, assim tão afastados de todos e a sós?

E se o titio e a titia falarem?...

— Por que não?

Era o que faltava se os parentes que se estimam já não pudessem mais estar a sós, por instantes ao menos! Depois, o papai e a mamãe estão ali bem perto na varanda. Deixe-se pois de tolices, e venha admirar comigo o esplendor do crepúsculo...

Ele então avançou para a frente do caramanchão e debruçou-se com ela à larga janela rasgando-se entre a densa folhagem enfestada de trepadeiras em flor.

O crepúsculo era, com efeito, suntuoso.

A praia de Icaraí estendia-se, recurva em crescente, desde o Canto do Rio até à praia das Flechas, na sua imensa faixa branca arenosa, recoberta para o alto, à fila das vivendas e chácaras, de rasa vegetação e densos maciços de pitangueiras, salpicadas de frutos rubros. Por toda ela, aqui e além, viam-se pequenos grupos de pessoas, alguns caminhando lentamente, em passeio, para cá, para lá, na batente do mar, enquanto outros pousavam, de pé ou sentados, nos montículos dos cômoros, as fisionomias saturadas do imenso esplendor da tarde estival e voltadas para o gigantesco lençol líquido e azul celeste, em certos pontos chamalotados, da majestosa baía de Guanabara. Crianças traquinavam, em álacres disparadas, ao longo da vagas quebrando-se metricamente em largas barras de espuma, com um grosso marulho reboante e monótono; ou jogavam pedaços de pau ao mar, que grandes cães terra-nova, a latir, numa pacífica jovialidade animal, saltavam a buscar, a nado, em consecutivas viagens. Em frente a alguns chalés, cortando a monotonia geral das construções brasileiras, ingleses, em claros e leves trajos de verão, palravam e cachimbavam preguiçosamente, olhando os ares luminosos e o mar.

Do outro lado da Baía, as montanhas do Distrito Federal e da cidade do Rio de Janeiro, correndo numa extensa, recortada e alta mancha azulada, faziam destacar, na fulgurante barra escarlate do ocaso, os píncaros culminantes da Tijuca, do Corcovado e da Gávea. Um grande steamer transatlântico passava vagarosamente, em demanda dos pórticos ciclópicos da entrada da baía, deixando uma esteira de aljôfares a ondular, popa fora, nas águas. A ilha da Boa Viagem erguia-se, empinada a um lado, em bordado relevo pinturesco, com a sua igrejinha em ruínas destacando tristemente no alto, contra o céu azulado. A Itapuca e um outro minúsculo ilhote granítico evocavam, numa vaga e idealizadora poesia de lenda, os velhos menhirs da Bretanha. Ao longo do Canto do Rio ostentava-se uma multidão colorida de pequenas canoas de pescadores — umas puxadas em terra, em descanso, outras carregadas com as suas escuras redes de tucum para os primeiros lanços da noite. O vento leve do mar refrescava. A tarde, de uma suavidade e transparência ideais, fulgurava deliciosamente, ao poente, pelos brilhos de ouro do ocaso...

Armando e Laura, muito unidos à janela do caramanchão, profundamente enlevados no encanto da paisagem e do céu, entreolhavam-se de vez em quando, trocando palavras de amor em vagas frases murmuradas...

De repente, após um pequeno silêncio, formosa donzela, que tinha agora os seus negros olhos fascinantes voltados para o morro da Conceição, teve este alegre grito alvissareiro para o primo e namorado:

— Olha o primeiro cordão de pássaros marinhos que aí vem! São os biguás que já começam a recolher do fundo da baía, por onde andaram o dia inteiro à pesca, e buscam o seu pouso noturno, lá fora, nas ilhas da barra. Mas como pairam hoje tão alto!...

Efetivamente era o primeiro bando de pássaros marinhos — desses que no verão costumam passar todas as tardes do interior plácido da baía para as costas bravas do mar — que se destacava no céu, por de sobre o morro da Conceição, voando, em demanda do seu pouso de pernoite, direito às ilhas da barra. Plainava muito elevado esse pelotão de asas, mantendo-se quase invariavelmente numa linha horizontal, que só se quebrava quando, para vencer a pressão do vento do mar, se tornava necessário um voo mais esforçado. Mas essa ligeira alteração de linha, que de vez em quando ocorria e apenas durava momentos, jamais se fazia abruptamente, por uma quebra brusca e rude, mas, constantemente, por súbitas e vagas curvas bem dispostas e pelas quais dir-se-ia que naquela falange de pássaros os corpos de cada um se achavam como ligados por delgadíssimo e invisível fio, formando um estranho e aéreo rosário de asas palpitantes.

No entanto, a esse primeiro cordão de aves do mar seguiam-se outros e outros, numerosa e inconstatavelmente — uns voando alto como o primeiro, alguns numa elevação média ao ar, e ainda alguns quase rastejando nas águas azuis da baía. E era admirável ver passar, seguidamente, destacando no céu vesperal, essa infinita sucessão de negras reticências voadoras — pois outra coisa não parecia serem tais enfiadas de pássaros marinhos, cortando a tarde, norte-sul, para os seus ninhos insulares da costa, perenemente embalados pela rouca cantilena das vagas e pelas revoltas espumas do Atlântico...

Laura, então, inefavelmente deliciada com esses graciosos bandos de pássaros, que amava ver deslizarem aos crepúsculos pelos céus estivais, mostrava ao noivo vivamente cada nova fileira que surgia, aviventando e pintalgando de pequeninos pontos, negros moventes o cetim doce do Espaço. E, tomada de um vago arrebatamento de amor, dizia a Armando meigamente:

Olha aquele enorme cordão que ali vem agora (e apontava um que pairava já a meio da bela praia alvacenta, onde os grupos de pessoas se quedavam também, ao instante, a contemplar os bandos de aves marinhas) e aquele... e aquele outro... e ainda aquele... Repara bem como vêm todos unidos, tão felizes e contentes, envoltos no mesmo afeto recíproco, para o sossego e o conforto dos ninhos... Por que nós, seres humanos, não havemos de viver como esses belos pássaros marinhos que, todas as manhãs, invariavelmente, partem juntos e cheios de ardor para a batalha da vida e voltam sempre, pelas tardes, ligados pela mesma afeição, ao remanso dos seus lares, para a paz e para as doçuras da vida?... Um dia, quando for o nosso enlace, havemos de viver como esses pássaros, sempre unidos e com um mesmo ideal na existência, gozando os nossos amores num acorde da alma perfeito, suave, mútuo, sublime...

Ele, fundamente enternecido ante aquelas palavras, murmurou:

— Pois sim, querida, pois sim!...

E, arrebatado, ia para abraçá-la e beijá-la, quando a irrequieta e espertíssima Olga, como um pequenino mas verdadeiro “demônio dos embaraços”, entrou, graciosamente, às risadas, pela porta do caramanchão, seguida de um bando gorjeante de crianças amigas...

Já então, dentro desse torreão de verdura, se fizera uma densa penumbra, porque a barra purpúrea do crepúsculo, se sumira de todo a oeste. As águas azuis da baía enegreciam pouco e pouco, na gradativa e melancólica retirada dos últimos clarões vespertinos. A praia de Icaraí apagava também a sua alvura, à poeira sutil e funerária das ave-marias, que lentamente amortalhava na treva os derradeiros encantos do dia. Nas altas e recortadas montanhas fronteiras do outro lado, os rútilos e fulvos colares da iluminação pública da Capital Federal cortavam as faldas, chapadas e declives com a pontilhada fulguração da sua luz recuada e longínqua. O céu tornava-se de um azul ferrete muito denso, já todo pregueado a leste pelos belmazes de ouro das estrelas. E, apesar do denso esfuminhado do firmamento e das águas, onde tudo era ao instante uma poeirada de cinza, distinguiam-se ainda as negras asas dos últimos pássaros marinhos, passando, unidos em cordão, avançando, voando mais ligeiramente agora, com a noite, e perdendo-se totalmente, por fim, sobre os montes, já escurecidos e tristes, do saco da Jurujaba...

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