A Grande Sombra
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Le Prince d’Aquitaine à la tour abolie
GÉRARD DE NERVAL
GÉRARD DE NERVAL
CAPÍTULO 1
Dezembro de 1905.
– O Mistério...
Oh! desde
a infância esta obsessão me perturba – o seu encanto me esvai...
No grande
quarto onde eu dormia receava longas horas antes de adormecer, no ondular da luz
indecisa da lamparina de azeite que deixavam sobre o toucador. Temia que as
sombras de súbito transviassem, animando-se – e monstros, monstros de bruma,
corressem sobre mim aos esgares, arrepanhando-me...
Horas
longes, porém, de medo infantil – só vos posso recordar em saudade. É que
então, se sofria, a minha febre era já a cores – voluptuosidade arraiada também.
E assim, quantas horas até, durante o dia, lasso dos brinquedos sempre iguais,
eu ansiava a noite, sinuosamente, para latejar a ela os meus receios
prateados...
As
grandes casas às escuras onde nunca entrara e que, no entanto, bem conhecia de
as percorrer iluminadas – eu, do meu leito, imaginava-as, criava-as agora no silêncio
e na treva, fantásticas: terrificantes e maravilhosas.
Pensava: "!Oh!
a glória de passear nelas por esta solidão, de tactear o que haverá dentro
delas!..." E vinham-me ideias de, sorrateiramente, descalço, para as
criadas não sentirem, erguer-me da minha pequena cama branca de taipais e
partir a visitá-las... Mas era mais forte do que a ânsia o meu pavor...
Escondia a cabeça debaixo dos lençóis, mesmo de verão, até que adormecia
esquecido, fundamente...
– As
grandes casas às escuras...
Ainda
hoje não sei entrar nelas tranquilo... E evito sempre percorrê-las...
De mais a
minha inteligência sabe coisa alguma de espectral existir aí – mágicas
vibrações, indícios nenhuns de sortilégio ondular ao redor...
Mas
receio sempre... E lembram-me fantasmas... triângulos frios... espadas nuas...
listas de fogo doutras cores...
Tremo e
vacilo. Retrocedo...
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A suntuosidade
inigualável do mistério!...
Sim!
Desde criança adivinhei que a única forma de volver rutilante uma vida, e bela,
verdadeiramente bela em ameias a marfim e ouro – seria lograr referi-la ao mistério,
incluí-la nele...
Mas como,
meu Deus, como?...
Procurando,
descendo bem as trevas, acumulando imperialmente enigma sobre enigma. Oh...
debalde, debalde, até hoje, tenho buscado segredos para ungir com eles a minha existência
– imortalizá-la de Sombra... À minha volta é tudo bem certo, mais do que certo,
real sem remédio... Só a minha imaginação vence ainda tremular mistérios – mistérios
porém de fumo; quebrantos a vago, lendários... E a luz sempre sobre mim, a luz
– certeza tosca, material...
Também já
na infância, de resto, era assim em verdade. Só em fantasia me amedrontava, só
com ela ia achar um enlevo delicioso e inquieto nos alçapões, nos subterrâneos
(se me falavam de algum palácio antigo) e nas pontes, nos zimbórios, nos
grandes arcos – bem como já me passavam às vezes, em calafrios, vagas reminiscências
de aquedutos negros, que eu nunca vira, decerto.
Mas havia
sobretudo no prédio da nossa quinta um sótão inexplicável que durante os anos
da minha infância foi para mim o centro de todo um mundo misterioso.
Esse
sótão – ao que uma só vez vagamente entrevira – não tinha sobrado. Era, concluo
hoje, apenas um desvão entre o telhado e o forro da casa – sendo um corpo do edifício
mais alto do que o outro. De longe a longe os criados vinham limpá-lo, creio.
Deixar-me-iam entrar, talvez – mas não o tentei nunca, com medo: e percebo
agora que o meu receio era apenas de o ficar conhecendo realmente, e assim
perder aos meus olhos todo o seu encanto.
Ah! mas
as vezes que eu subia até à sua porta, a escutar... Pelas frestas o vento
entrava redemoinhando; de espaço a espaço o vigamento rangia – e tudo isso se
transtornava na minha imaginação em bater de asas negras, arrastar de
correntes... crepitar de ossos, quem sabe... Certo dia a minha coragem foi até
entreabrir a porta...
Lá
dentro, penumbra densa – entanto, um raio de sol da tarde, coando-se por uma
fresta, iluminava em mágicas palpitações um halo de poeira multicolor...
Assombrado, cego da maravilha, fechei a porta no mesmo instante – fugi...
Comecei
então pensando, às noites, antes de adormecer, largas horas nesse sótão que,
mais do que nunca, se me volvera um mundo bizarro, desconhecido, alucinante. E
criava nele, em verdade criava, toda uma vida... Fantasiava-lhe – sim – os seus
bosques, os seus rios e pontes, as suas montanhas, os seus oceanos, as suas
povoações, os seus habitantes... As florestas, via-as de algodão em rama, policromas,
com lantejoulas, como os brinquedos de Árvore do Natal; seriam de água as
montanhas; os rios de pedras preciosas, e, sobre eles, em arcos de luar,
grandes pontes de estrelas. A humanidade que habitaria o meu país, suscitava-a
de anões disformes, anafados, picarescos, mas de olhos cor de violeta – e
sugeria lá também toda uma fauna de animais estrambóticos, inexprimíveis: pássaros
sem cabeça, coelhos com asas, peixes de juba, borboletas que fossem flores,
nascessem da terra...
O rei
desta nação, não sei porquê, parecia-me, acreditava seguramente, que era uma
grande formiga multicolor – e ratos dourados com asas de prata os fidalgos da
sua corte. Só o povo homúnculos ridículos...
De resto,
todo este mundo da minha imaginação infantil me pululava dentro do sótão num
conjunto misterioso – indistinto, difuso,
entrecruzado, impossível de destrinçar: era mar onde era também cidade; havia palácios
riais ao mesmo tempo florestas. Coisa mais caprichosa: nesse mundo tudo existia
variegado mas, simultaneamente, tudo era cinzento! Sim, eu via as árvores de
algodão em rama, umas brancas, outras roxas ou azuis, escarlates ou cor de
laranja – e os olhos violeta dos anões, os vassalos ratos dourados, el-rei a
grande formiga multicolor – e rios arco-íris de joias; montanhas cristalinas,
aniladas. Entretanto, surgindo-me tudo assim, numa infinidade de tons, eu não
podia deixar de o ver também uniformemente a gris!...
Ah! a
imaginação das crianças... onde achar outra mais bela, mais inquietadora, que
melhor saiba frisar o impossível?... Ela é sem dúvida, pelo menos, a mais apta
a converter pavor, a refugiar vislumbres. Porque nessa época ondulante da vida
é-se apenas fantasia, crédula fantasia. Vem depois o raciocínio, a lucidez, a desconfiança – e tudo se esvai... Só
nos resta a certeza – a desilusão sem remédio...
Eis pelo
que a hora mais além, a hora mais perturbadora da minha vida, a vivi nos oito
anos.
Estávamos
na nossa quinta.
Eu não me
atrevera nunca a passear de noite, sozinho, pelas ruas areadas, orladas de
buxo, tão aprazíveis e campestres, em que de dia, bem afoito, brincava correndo
afogueado. Mas, do grande pátio junto da cozinha, eu olhava-as, em frente de
mim, sonhando descobri-las, noturnamente, numa viagem maravilhosa. Porque, em
verdade, de noite, a minha quinta devia ser mágica... Gnomos a percorreriam às cabriolas,
e elfos; nos grandes tanques, ao luar, se banhariam fadas, e pelos assentos de
azulejo – oh, sem dúvida! – toda uma figuração de príncipes e rainhas
encantadas se assentaria devaneando...
Depois,
que medo não havia de fazer, lá embaixo, sob a nogueira secular, junto do poço
– à borda do qual, talvez, mouras de sortilégio, todas nuas, assomassem...
esquivas...
De olhos
fascinados, sim, eu sonhava tudo isto, de olhos perdidos – mas trêmulo, não
ousando nunca afastar-me alguns passos de ao pé da cozinha, onde havia luz e a
criadagem falaceava... Sonhava ainda investigando sempre a noite, sonolento,
com um livro de estampas esquecido sobre os joelhos... e o meu olhar perdia-se
mais uma vez no laranjal que se adivinhava perto, numa penumbra esbatida, e em
que eu, à força de ilusão, distinguia, conseguia realmente distinguir, os
frutos rutilantes – volvidos agora, de milagre, áureos pomos de encantamento...
Algumas
vezes, com o caseiro, percorrera já, era certo, as ruas da quinta, à noite. Mas
isso, claramente, nada significava: acompanhar-me alguém fazia esvair todo o
quebranto. Só aos meus olhos de criança solitária – demais sabia eu – esse
mundo mágico se revelaria...
Em balde
continuava pois sonhando, numa sofreguidão de me evadir nas trevas – sempre
acorrentado pelo pavor...
Até que
uma noite – não sei como foi – de súbito, decidi-me: fechei os olhos, e, numa
carreira louca, afastei-me...
Abri-os
só depois de assim haver corrido alguns minutos, para ter a certeza de já não
recuar... E largo tempo, numa febre de medo, a ranger de mistério, voguei pela
sombra...
Meu Deus,
é-me impossível dizer toda a beleza, toda a maravilha que vivi então!...
Dava-me asas o próprio terror – matava-me e deliciava-me... Que cenário de
quimeras!...
Na noite,
entre a escuridão, ao longe, os lugares bem conhecidos – os pomares, os vinhedos,
os eirados, os jardins – surgiam apavorantes, noutros contornos... As ruas, ladeavam-nas
os monstros de bruma verde em que o buxo se convertera – monstros aliás
jocosos, bonacheirões, em esgares torcidos de polichinelo... e eram soldados
hirtos, alvejando, os pilares das parreiras: soldados de barretina, alguns,
fumando cachimbos onde fingiam brasas os pirilampos que esvoavam próximo...
Tudo
sombra, sombra vacilante, enfim, ao meu redor, a modificar
sutilmente, constantemente, a paisagem noturna...
Rumorejavam
segredo as árvores – sabbats talvez
de feiticeiras as suas sombras, tão arrepanhado e seco o crepitar agora dos
ramos entre o vento...
(Ah! mas
aquele vento, na noite, através dos canaviais, não o sentia eu como o vento do
dia... Era por força qualquer outro fluido. Parecia-me, no seu estranho sibilar
velado, como que um espectro do vento
– um espectro temível, grasnado, de
ecos mortos...)
Os
tanques refletiam negrume apenas, porque a noite era escura, sem luar nem
estrelas: tanques de alcatrão, dir-se-ia, hediondos – mas a frescura que
ressumavam dissipava este medo: e sobre a água, em verdade, olhando bem, mil
formas de fantasia, indefinidas, talhadas numa névoa translúcida, anilada, quase
invisível, esvoaçavam capricho e mistério...
E eu
corria sempre...
No
jardim, as rosas eram encantamentos mais suaves. Entanto, ao meio, o alecrim do
Norte, copado, circular, volvera-se num bonzo chinês, espapaçado, cruzando os
membros venerandamente... Os lírios, campainhas de torre de marfim...
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...Debruçava-me
agora sobre um poço... Em ruídos úmidos, longas asas negras, desconhecidas,
roçaram-me o rosto... Então o meu pavor foi uma agonia...
Ainda vi
ao longe uma grande forma secreta, fulva talvez, crescer sobre mim...
Depois
não sei o que se passou... Encontrei-me de novo, boquiaberto, sentado no banco
da casa do arco, junto da cozinha, com o mesmo livro de estampas sobre os
joelhos... Lambia-me as mãos, docemente, o meu companheiro preferido — o
canzarrão amarelo do caseiro que eu atrelava aos meus carros...
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Sim! sim!
Até hoje foram estes os maiores instantes que vivi. Nunca logrei, a mais densa ilusão,
embrenhar-me de Sombra, incluir-me em Segredo... Ah! mas, às noites seguintes,
como se encapelaram os meus pavores!... Ruivamente, acordava muita vez
chorando, a debater-me em crises de acerados histerismos...
E foi
então que sonhei pela primeira vez – outra das minhas reminiscências cintilantes.
Com
efeito, uma manhã, ao despertar, bem seguro me lembrei que – não sabia aonde,
mas nessa noite – certa rainha de brocado me tivera ao colo, me abrira os seus
cofres de pedrarias, me desenastrara as suas tranças, longas de ouro, para eu
coar entre elas os meus dedos febris, a refrescá-los...
A
Princesa não pudera existir no meu quarto, mesmo da noite – e eu não saíra do
meu quarto...
Entanto
falara-lhe, vira-a bem... Aonde?Aonde?... Lembravam-me quase as suas feições...
a sua boca de pérolas... seus gestos-flores...
Havia paredes de névoa em torno aos meus olhos...
Por fim,
cheio de vergonha, contei tudo às criadas.
Mas distraidamente,
as criadas só me responderam:
– Ora...
Isso foi um sonho...
Um
sonho...
Todo esse
dia – nunca mais me esqueci – passei-o a reviver o lindo mistério... a rainha
de mágica: e os seus anéis, os seus colares, o brilho roçagante do seu traje,
as suas madeixas desprendidas... amoroso dela, quem sabe – mas, acima de tudo,
orgulhoso de ter sonhado pela primeira vez: de
saber sonhar, pois não podia crer que a todos acontecesse o mesmo, tamanha
glória...
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Depois,
nunca me tornei a enganar... Por isso recordo a minha infância em admiradas
saudades...
Embora
toda a minha Arte se fixe em Mistério, cingidamente – jamais me nimbo de além.
Terei deixado sombra – pode ser – sombra diademada, nos meus livros: sombra de artifício,
porém; sombra imóvel, sombra morta, que me não vibra: que eu crio, mas que não
me envolve; que só projeto de requinte.
E cada
noite, mais saudoso, mais humilde, volvo às recordações infantis – silenciosas:
ao meu passeio noturno, de milagre; ao meu sótão de fantasia... e às largas
horas também que, do meu leito, olhos cerrados, às manhãs de sol, contemplava
na transparência das pálpebras – caleidoscópio de ilusão – os discos, as flechas,
as garras, os laços, as estrelas, os crescentes multicolores que se engastavam
numa penumbra vermelha, cintilando a mosqueá-la em rodopio...
Como toda
essa riqueza vai longe! Como fui grande!... Então receava os campanários das
igrejas, sombriamente... se havia torreões num palácio, só acreditava neles com
princesas nuas, lá dentro, ceando frutas acres... e temia sobre as tapeçarias
espessas... vinham-me calafrios defronte dos reposteiros pesados, de veludos
quentes...
De resto,
ainda hoje não perdi o medo do que pode
haver para lá de um reposteiro – bem como ainda, de longe, me perturbam os
tapetes da Pérsia, os panos de Arrás, os grandes lustres apagados, os espelhos
mortos, nos paços antigos...
Mas tudo
em balde, e tão incerto...
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Oh! que
ânsia leonina de me abismar na Sombra – e vivê-la! vivê-la!...
CAPÍTULO 2
Janeiro 1906.
Grifado
quebranto... Na minha atração de Mistério freme densamente qualquer coisa de
sexual... Se tanto o sonho e o visiono, o ergo em anseio perdido – é numa
sensualidade esguia, dimanante e delgada: em crispado.
Sim; como
as lembranças aquáticas, o fogo e os corpos nus – as sensações de Segredo, ou
reais ou evocadas, arrepiam-me êxtases fluidos, perversos de ouro...
Bem
sei... É que, para mim, tudo quanto me impressiona se volveu sexualizado – e em
sexo apenas o oscilo, o desejo e o sofro... Eis pelo que sempre cataloguei,
excitantemente e a par, os corpos nus, esplêndidos; as cidades tumultuosas de
Europa – os perfumes e os teatros rutilantes, atapetados a roxo – as paisagens
de água, ao luar – os cafés de ruído, os restaurantes de noite, as longas
viagens – o murmúrio contemporâneo das fábricas, das grandes oficinas – a
loucura e as bebidas geladas – certas flores, como as violetas e as camélias –
certos frutos, como o ananás... e os morangos, na sua acidez toda nua, de
caprichos afilados.
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Olho para
trás de mim às horas silenciosas e evoco todos os personagens da minha vida...
os raros corpos de acaso que possuí, por
os desconhecer... e mesmo aquelas pessoas, ignoradas, que só um instante
cruzaram a minha existência...
– Mas não
será a mais bela a recordação destas últimas – e a mais secreta?...
Uma
noite, em Paris, no restaurante, sentou-se, por exemplo, em minha face,
qualquer rapariga que, à sobremesa, me perguntou o nome francês do doce que eu
comia... Falamos alguns minutos, depois. Era russa, de Moscou... E eu dum país
distante, ao ocidente, perdido em aventura...
Despedimo-nos
sem sabermos os nossos nomes...
Não nos
tornamos a ver.
Fosse como fosse, porém, as nossas vidas,
tão longínquas, tão diversas – tinham-se tocado um segundo, vivido juntas um
instante... quem sabe se no cumprimento dum destino insofismável...
Ah! como
ao lembrar-me destas pequeninas coisas, me sinto orgulhoso – porque lhes sei
encontrar a sua significação íntima, perturbadora, velada de sombrio...
E assim
vou suscitando todos os meus abraços, todos os meus encontros fortuitos: todos
aqueles, em suma, com quem um dia, em qualquer cenário, troquei uma palavra –
os próprios transeuntes, é verdade, que apenas me perguntaram por uma rua...
Evoco-os, e sinto beleza – beleza enclavinhada numa ideia sutil de medo a
sacudir-me... Pois quem eram, ah! quem seriam todos esses estranhos que, enfim,
têm desempenhado, têm dialogado a minha vida?...
Meu Deus,
meu Deus, quanta sombra!...
À beira
de que catástrofes terei fugazmente seguido?... se eu terei falado minutos a
grandes criminosos indo para o seu crime essa noite?... a grandes desgraçados,
nas horas culminantes talvez duma existência perdida...
E
ocorrem-me até rostos de criaturas que apenas fitei de longe, vagamente – mas
que, por alguma coisa de sutil, nunca mais olvidei. Assim a mulher fulva da
Ponte de Rialto... e o homem pálido, solitário, uma noite, no Mônico, com o
laço vermelho...
— Crescei,
crescei sobre mim, de miragens... resvalai em teorias fantásticas, todos os
comparsas da minha vida!... Fazei-me tremer, ranger de pavor e sortilégio, até
que num esforço me erga – esbraceje a dissipar-vos!...
Podiam
ser estas, ainda, horas bordadas que eu fremisse...
Mas em
vão... em vão... Não se animam as imagens...
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Entretanto
não soube nunca guardar um segredo...
Com
efeito se algum amigo me conta, lialmente, segredos da sua vida – o meu orgulho
sobe tão alto por conhecer o que os
outros ignoram que logo os divulgo a qualquer: ponho termo ao mistério que
me foi confiado, a demonstrar-me assim, em glória inútil, que sou maior do que ele
visto que o posso desmoronar...
De resto,
enquanto assim procedo, se me sobem ternuras por alguma criaturinha gentil,
franzina e aguda – todo o meu desejo é de emprestar um pouco de enigma a essa
vida banal, pequenina... Eis como, debalde, a quanta pobre rapariga que eu
nunca tive, enviei cartas de fantasia, e flores, telegramas – livros meus, se
era no estrangeiro…
CAPÍTULO 3
Março 1906.
Vibrantemente
o futuro me agita também, pois é dos segredos totais.
Noites sem
fim – inquietantes, zebradas, multiformes – me perco, esvaecido, entressonhando
amanhã episódios da minha vida: as futuras personagens da minha existência...
os heróis futuros das minhas novelas ainda não projetadas...
E
lembro-me que tudo isso existe já – porque
há de existir forçosamente. Por isso me enredo a supô-lo...
Impossível!
Impossível!
Só me
resta esperá-lo...
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Oh! como
eu quisera possuir, de hoje, as
minhas amantes futuras – não suscitadas por fantasia, com formas e rostos imaginários
– apenas a sua ideia: translucidamente, imponderavelmente... talhadas em
desconhecido, por insinuações nebulosas, latejantes de Auréola...
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– Poder,
poder sugar um dia – enfim! – o gosto roxo e macerado do Mistério!...
CAPÍTULO 4
Maio 1906.
– O
movimento... as viagens...
Outra
voluptuosidade de capitoso enigma... Pois sempre me assombrou estar hoje aqui,
na minha terra medíocre, nesta cidade ocidental, ao sul da Europa – e em cinco
dias (poucas horas) poder chegar, no norte, à capital do Império sombrio e
denso da minha nostalgia roçagante...
Depois de
vagabundear incerto algum tempo por outros países, esqueço-me de quem sou, quase
– não mo relembrando nem a atmosfera, nem o cenário... tão pouco as personagens
que me cercam... Duvido se serei eu-próprio – convenço-me de que o não sou...
Nunca pude crer que fôssemos totais: o meio que nos envolve, é também um pouco
de nós, seguramente. Logo devemos variar em alma (e em corpo até, quem sabe)
segundo os países que habitamos.
Por isso
receio muito quando alguém que estimo se afasta de mim, com o pavor do seu
regresso – e ao esperar na estação um amigo após uma ausência de alguns meses,
um grande enleio me assalta diante dele, titubeando, sem já o poder tratar por tu como fazia dantes...
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Viajo, viajo, erradamente... Assim me modifico, em fantasia pelos menos – me sutilizo em laivos de Mistério...
E nos
grandes cafés de Europa, mais frisantemente, os meus olhos detêm-se naquela
linda mulher de luxo que, aborrecida em face do seu cálice, espera – à tarde –
por um amante, sem dúvida... Olho-a... Invencivelmente vou compondo a sua
vida... Engalano-a, poetiso-a; dramatiso-a conforme o seu rosto – e o brilho
dos seus olhos, a curva da sua boca maquilada, o tom dos seus cabelos... Uma
vida, para mim, foi sempre função de todo um perfil... encontro desfechos apropriados
a cada beleza – detalhes que só podem ser vividos por certos olhos, certas
mãos, certos sorrisos...
Segue
todo o enredo... A matiz, todo o seu passado é sugerido... até que o amante
chega, por último... ou não chega, pois nem seria esperado, talvez...
Mas a
estrangeira levanta-se, sai... Sigo-a ainda com a vista até desaparecer... e
fico tão feliz... tão feliz... tão lisonjeiramente feliz... Mais feliz do que
se fosse o seu amante – o amante mesmo
que não chegou – porque então conhecê-la-ia toda: não poderia criar uma
vida à sombra daqueles olhos, uma vida de acordo com esses gestos...
Glória
marchetada! Sem ela duvidar, sem mo permitir, eu entrei, entrei em verdade, na
sua existência – porque no meu mundo interior A incluí, imaginando-a suavemente...
São estas
frivolidades os mais íntimos prazeres da minha alma. Por isso viajo alheamento,
me perco à busca... E acima de tudo quero à noite dourada em que descobri para
um bairro aristocrático de não sei que capital, alta noite, um automóvel de milionários,
cintilante, esperando em frente dum palácio. Detive-me...
Após
momentos abriu-se o portão brasonado... Subiram para a carruagem um homem alto,
elegantíssimo... uma mulher suntuosa de zibelinas e rendas...
... E
como eu fui mais vitorioso então, sozinho – ao vento – do que eles dois na
carruagem, agora talvez misturando as bocas...
Porque
eu, podia-os imaginar... e eles, aí,
sabiam fatalmente quem eram...
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As
grandes cidades... o triunfo de ascender nas Praças monumentais a colunas
simbólicas – e, da sua altura – estátua, deixar perder os olhos por toda a
casaria... Possessa, a vista ziguezagueanos por ruas, por avenidas, entre
parques... espraia-se-nos infinitamente pelo mar dos telhados... E é um
formigueiro de edifícios que, do alto, surgidos em panorama, se entrecruzam, se
interseccionam, se engolfam uns pelos outros – indestrinçáveis, alucinantes...
Momento a
momento o turbilhão nos volve mais confusos... Breve perdemos a noção da distância...
uma vertigem nos rodopia... até que, em nossa face, todo o horizonte se desloca
– e se vela, ocupado em miragem por outra cidade de mistura...
Ondulamos de erro... arripiam-se-nos os olhos, sagrados...
febricitamos de pairar...
... E a vida corre aos nossos pés, a vida – entanto!...
CAPÍTULO 5
Janeiro 1907.
Nas
minhas ânsias de segredo tenho-me esforçado, ao menos, para que os meus
sentidos vibrem diversamente: desengonçadamente,
noutras direções de crispado – dando-me assim, em vislumbres, uma ilusão intranquila
a desconhecido.
Eis como algumas
tardes, de súbito, a certas cores, realiso sentir – por artifício embora, mas
automaticamente – a saudade magoada de certa companheira morta, gentil e
pálida, que nunca tive... E é uma sombra propícia a afagar-me então de
dúvida... a irisar-me...
Outras
vezes chegam-me sensações de “fim” – de termos duma época de vida... de começos
de outra, com novas personagens, novos hábitos... E, ao meu redor, é tudo igual
– nos mesmos planos!...
Ha fatos também
que me impressionam esquivas contradições: Certa noite, por exemplo, num teatro
ordinário de Lisboa, desceu-me uma grande tristeza, uma tristeza dilacerada, em face dum casal de velhos bêbados –
dueto hilariante da revista célebre. Sim, foi uma derradeira amargura –
pungente, arrependida – uma tristeza de
passado... e uma piedade... ah! uma piedade aflitiva e inútil, em mágoa
enternecedora, quando os personagens grotescos surgiram a cantar versos torpes,
bamboleando-se ao compasso duma música raspada, de saltos bruscos...
Lembraram-me irreparavelmente um fim de vida, um trágico levantar de feira... E
enquanto todo o público pedia “bis” às gargalhadas, eu tinha vontade de chorar
– misteriosamente, por mim...
Tenho
ocasiões repentinas, outros dias, em que me chegam grandes júbilos
entusiasmados. À minha volta tudo ecoa glória... E se encontro um amigo,
tomo-lhe o braço – a rir, a rir, infantilmente... Em balde procuro as razões
dessa alegria – coisa alguma me sucedeu... Mistério: no entanto ela é uma alegria motivada. É verdade; é deste modo que
eu a sinto – pelo menos numa ideia difusa, cariciosa e ondulante...
De resto,
de forma idêntica me sobem a cada passo ternuras imotivadas, e – bizarria maior
– imotivados pudores enternecidos.
Ainda há pouco
se me despertou a sensação esguia de ser insidiosamente uma rapariguinha suave
e loira que viesse de se entregar ao seu amante, em caprichos tênues – apenas
por um meu amigo me mostrar uns postais que comprara, e eu já vira pelas
montras, com uma rapariga linda, de seios nus, adoráveis: a rapariga talvez
que, nesse instante, duvidei ser – corando...
Pequenas
dores físicas sofro-as, por vezes, apenas em paladar, como gostos desagradáveis.
Frequentemente,
ao virar-me numa rua, num salão, encontro-me
de súbito no cenário distante de qualquer cidade estrangeira – bem nítido:
vendo na realidade toda uma praça... todo um cais... sentindo latejar a penumbra violeta entre as colunas majestosas de
certa catedral... (Aqui – bem sei – ainda existe uma explicação admissível:
qualquer deslocamento que se dê na atmosfera e que, justamente, interseccione
planos paralelos, quebre vértices de luz e sombra, iguais àqueles em que porventura
eu presenciei o cenário evocado).
Descem-me
também em pleno inverno sensações de outono e primavera – e há períodos em que,
sem ter adoecido, me sinto convalescente duma longa enfermidade – salvo talvez
da morte por milagre...
Divagando
a minh’alma – a sintetizar todo o seu descalabro – ocorrem-me ideias estrambóticas,
picarescas e complexas: as únicas entanto capazes de exprimir, por sugestão, as
mais íntimas particularidades do meu mundo psíquico.
Assim
quando me peso, irremediável, em tristeza e tédio desolador – lembro-me que
virá só disto a minha tortura: um revestimento oco de lata me contornou
interiormente toda a carne – e outra coisa qualquer: a minha alma, presumo...
(E receio então que a minha alma seja apenas um líquido verde, oleoso e turvo,
enjoativo, fechado nesse depósito).
A
devastação completa da minha vida, encaro-a como uma série de losangos de
zinco, salpicados de diversas cores – particularmente dum vermelho sujo –
amolgados e torcidos.
E muita
noite, no meu leito, revendo a náusea estagnada desta minha existência – uma
ânsia irrisória se me suscita de volver o meu corpo triangular, e mandá-lo
afiar, nos seus vértices, em gumes cortantes de aço. Ah! se fosse possível
fazer um fio ao meu corpo – adivinho bem seguro em tais momentos – breve
cessaria a minha desolação...
…………………………...………………………
Que, de
resto, não nos criemos ilusões, eu sinto tudo isto sincera e naturalmente. Não
eduquei os meus sentidos a fremir em destrambelho... Eles é que, por si, se
desarticularam – de tanto oscilar em oco, de tanto girar em falso...
Depois,
se nas minhas obras de Arte, vagabundas de miragem, suntuosas de requinte,
ponho um pouco de mim nos protagonistas – gritam logo os castrados à blague ou
à incompreensão. Incompreensão... Há tão pouco que compreender no que escrevo –
nisto tudo...
Digo: “A
imagem da minha vida estampa-se-me como uma série de losangos de zinco”. É só
isto. Não procurem nada aqui – não há nada a perceber. Meu Deus, é só isto! Nem
o posso exprimir doutra maneira, com maior clareza, porque é assim – assim mesmo.
Mas, por
o saber sentir, um pouco de ignorado me penetra. E eis pelo que as minhas extravagâncias
só me ensoberbecem, e lhes quero a fulvo – leoninamente...
…………………………………………………
(– Por que
haveria na encosta do olival da nossa quinta, quando eu era pequeno, uma santa
de papel, sob um vidro incrustado na terra?...)
…………………………………………………
Entretanto,
apesar de tudo, olhando bem – como é só luz, luz insípida, à minha volta... Em
vão procuro descer o mistério, minar galerias de sombra...
Impossível!
Impossível!...
Ah! como
invejo os grandes criminosos que souberam escapar
à justiça... e passam... desaparecem sangrentos em assassínios e estupros...
Deixaram
ao menos um pouco de névoa – esses.
Encerrados
no seu segredo, como hão de viver gloriosos – sem remorsos, tamanhos de
Maravilha...
Eu, de
evidente, tenho asco de mim!...
CAPÍTULO 6
Agosto 1907.
Se eu fosse
milionário e Príncipe, como ergueria o meu domínio do Mistério...
Ah! para
regiões do Norte, entre jardins pomposos, o meu castelo altíssimo, em sombras
abafadas, ascenderia as suas torres taciturnas, alastraria o seu arcabouço
pesado e longo – absortamente.
Dentro,
largas salas de baile sem janelas, que eu teria feito executar por grandes
arquitetos – e ornadas de frescos de pintores admiráveis; enriquecidas a prata
e ouro nas cúpulas maravilhosas, nos lambrises de incrustações exóticas, a
madrepérolas e jades...
Reposteiros
de veludo, arrastados, roçagantes – a brilhos espessos. Tapeçarias majestosas,
profundas, que abafassem os passos – candelabros, serpentinas e lustres brasonados
que nunca se acendessem...
Oh! mesmo
eu não teria nunca visto à luz esses salões teatrais... Percorrê-los-ia sempre
em penumbra, tacteando a sua riqueza; adivinhá-los-ia apenas, em espelhos
duvidosos, pelas sombras da sua suntuosidade – guiado por uma luz distante, de
fracos bruxuleios, que ainda chegasse, talvez, pelas fimbrias das portas...
Meu Deus,
como seria grande!... Que sortilégios marchetados, que vértices difusos, latentes,
me aturdiriam ao transpor as minhas salas de honra: onde nunca ninguém dançara, que eu próprio mal conheceria, embora
em noites de gala ouvisse dos seus divãs – sempre em penumbra – solenes
concertos pelas minhas orquestras asiáticas, ocultas noutras galerias...
E
perco-me a sonhar todo o meu domínio de Erro se me deixo esvair em tais
pensamentos...
...Jardins
emaranhados em volta do Palácio – e parques... Mais longe, bosques
tumultuantes, densíssimos, impenetráveis ao sol – com súbitas clareiras aonde,
por minha ordem, se elevassem monumentos a heróis, navegadores e guerreiros que
nunca tivessem existido...
Ao fundo
de roseirais inesperados, perdidos na floresta, templos a divindades de nenhuns
ritos – divindades falsas que só eu criara, erguendo-as ali em altares de
fantasia... Inscrições tumulares, góticas, antiquíssimas, sob as cúpulas dos
templos, em lajes que não cobrissem nenhumas sepulturas – e mausoléus, de
mentira também, vazios de ossadas, mais longe, junto dos pântanos, ao fim do
bosque, entre ciprestes...
Completaria
depois o ambiente irrisório, edificando ruínas perto duma grande lagoa seca –
ruínas ogivais de arcos partidos, colunas e abóbodas... Esconderia tesouros, à toa,
profundamente, como outrora, nas ruas da minha quinta, enterrava brinquedos...
Faria ainda vedar por altos muros eriçados e largos portões de ferro, recintos
circulares desertos, onde não se guardasse coisa alguma – mandando por último
abrir cavernas e subterrâneos inúteis pelos meus territórios: assim como no meu
palácio haveria alçapões de despropósito, repentinas portas falsas, escadarias
que nunca se descessem, estranhos maquinismos de segredo...
Mas tudo
isto, tudo isto, aprendido incertamente
– passeando só de noite pelos meus domínios, nunca cruzando mesmo certas
alamedas, jamais me abeirando de certos lagos que apenas suporia pelo murmúrio
cendrado dos seus jorros de água ligeiros... Sim, tudo entrevisto em distração
e em dúvida, vacilantemente, para o bordar a magia...
E das
janelas monumentais do meu quarto dourado, então, eu olharia ao crepúsculo o
meu Império de esbatido alastrando-se ao longe – imaginando-o, prevendo-o em
sombras ondulantes, no rumorejar da folhagem, em ruídos aquáticos – sob cintilações
de estrelas...
Ah! mas
não passa dum sonho todo o meu Principado...
…………………………………………………
— Se eu fosse
um sonho, também?...
CAPÍTULO 7
Abril 1908.
Os dias vão
passando, e a minha curva obsessão mais e mais se me inflecte...
Abriram-se-me
no cérebro compassos de pontas de ágata...
Oh! a
luta impossível contra a realidade!...
Se ao menos,
por fim, a loucura me envolvesse...
Ainda seria abismar-me numa grande sombra...
Mas
não... mas não... Tudo é real na vida – a
própria morte é real...
Ha quem
tenha sabido desaparecer, entretanto!
E evoco
dois companheiros perdidos doutras épocas:
Um, pálido
e louro, sardento, que me falava dos seus avós de França. Vivo ou morto, esse
passou sem deixar rastro... E só mais tarde soube, por seus pais, que não
tivera nunca parentes estrangeiros – nem tão pouco existiam as grandes
propriedades do Norte, para onde me convidara esse verão...
Pasmo
hoje, recordando-o. Abominava a sua companhia. Era um espírito tão pouco
interessante... Mas acompanhava-o muitas vezes, não o sabendo evitar. Por
gratidão. Era ele que me procurava com insistência, numa ociosa simpatia... Por
fim, os seus modos bruscos e os seus hábitos grosseiros, de mesquinhices reles
ou prodigalidades tolas de “parvenu”, tinham-mo feito quase odiar...
Só hoje
descubro o meu completo engano! Que espírito heráldico o seu!... Nele houve também,
sem dúvida, a ânsia flava do Mistério – tosca embora, mas profunda. Eis pelo
que só me falaria de irrealidades – das suas quintas, dos seus automóveis, das
suas espingardas – e procederia em destrambelhos premeditados: ora sumítico,
ora produlário; injusto sempre...
Até que
uma noite, num ímpeto mais nobre, resolveria desaparecer, projetando assim uma
mentira maior... E logrou-o em Vitória. Ninguém usou nunca o seu luto. Se
morreu, não se encontrou nunca o seu cadáver. Se vive ainda – é hoje outro, por
certo...
Nem um vestígio
atrás de si...
Maravilhoso
Artista!...
…………………………………………………
Mais
belo, talvez, o destino do meu segundo companheiro – que uma tarde me entrou
pela casa dentro a anunciar-me o seu próximo suicídio... Eu encolhi os ombros
arrumando os livros da minha estante. Conhecia demais o seu amor pelo drama, o
seu ingênuo capricho de se romantizar... Demos um lindo passeio essa noite, despreocupadamente...
Algumas
semanas mais tarde repetiu-me o seu propósito... Exigi-lhe explicações, por
gentileza... Negou-mas – aludindo entanto, por rodeios, a vagas
impossibilidades...
Insisti
mais convictamente no dia seguinte. Então houve uma grande cena... Arremessou-se
sobre um divã – passou as mãos esguias, maquilhadas, pela longa cabeleira...
Tinha uma flor ao peito. Arrancou-a, deixando-a cair no tapete... De costas
para ele, diante duma janela, eu abafava a custo o meu riso...
Amarfanhou
ainda as almofadas de seda, limpou lágrimas que não chorara – e, em gestos
femininos de artifício, contou-me o que o levava à sua resolução...
Meu Deus,
que motivo inesperado... tão pequenino, semilouco em despautério – e ridículo, ridículo...
o último, de resto, que se poderia imaginar...
Fiz-lhe
ver, tomando-o nos meus braços – encarando o meu papel agora já inteiramente a
sério – como eram insignificantes as suas razões, e inadmissíveis. Concordou
comigo. Jurou-me o seu arrependimento. Fomos à livraria comprar os últimos
romances...
Encontrei-o
à noite no teatro – impecável e risonho, de smoking, e nova flor na lapela: uma
grande rosa vermelha...
Tornei-o
a encontrar no outro dia. Leu-me o cenário de mais uma peça que ia escrever, e
desenvolvera essa manhã. Falou-me dos seus projetos para o verão próximo –
entrou no camiseiro a fazer uma encomenda muito complicada. Pediu-me o endereço
dum editor francês, para mandar vir um volume que já lera emprestado por mim –
só para também o ter na sua biblioteca...
Dois dias
mais tarde, suicidava-se com uma bala no coração...
...Foi
depois que eu soube que a outros amigos ele anunciara também o seu suicídio –
sob o maior segredo – juntando, em confidência, as razões que o forçavam a um
tal desespero: mas a cada um de nós
contara uma história diversa...
…………………………………………………
Seja como
for, criaturas assim aureolizam efetuar-se um pouco em mistério – esbatem-se em
Asas, ungem-se de Errado...
São, pelo
menos, maiores do que eu, a esbracejar – é certo – a minha ânsia, e a
permanecer embora, eternamente, na claridade quotidiana, bem limpo de segredos.
Ah! por
uma incoerência, por um medo de sacrilégio, talvez, em face da obra que deveria
executar – sou todo ceticismo abandonado, desilusão de esforço, marasmo de
renúncia...
E desta
maneira, se alguém estranha a minha vida desigual, vazia mas tão diferente – não me contenho que não
grite logo a verdade: se naquela noite parti de súbito, foi porque me quis
deitar mais cedo – não encerram cartas de amor os meus sobrescritos prateados –
se desapareço durante longos períodos, é só por minha casa, ou, quando muito, a
ler e a escrever por cafés doutro bairro...
Num
misticismo vão, numa agonia despeitada de me dar – sou eu próprio que logo
arremesso para longe o mistério falso que em mim, sem segredo, poderia entretanto
existir aos olhos dos outros... como se os mistérios não fossem sempre
falsidades...
…………………..………………………………
……………………..……………………………
……………………..……………………………
Sim, sim, ó meus amigos esquecidos doutrora: tu, pálido e
longo, dos avós de França – e tu, da cabeleira revolta e das unhas pintadas –
como sou mais vil, mais sem alma, mais sem nervos... náusea de mim próprio,
irrisão de mim próprio, esfinge de papelão... E como sinto a vossa nostalgia entanto,
e o vosso orgulho – ó reis loucos que morrestes ao luar, para lagoas azuis, talvez...
entre enredos incertos...
CAPÍTULO 8
16 novembro 1908.
Meu
Deus... meu Deus... Como hei de suportar esta luz sem fim -inevitável e obcecante...
Ultrapassei-me
em tédio. Tudo se esvaziou à minha volta...
Penduraram-me
os nervos numa escápula de ferro; ataram-mos numa réstia seca...
Tenho
medo de mim, de triste que estou...
Passeio
nas ruas, solitário – e o meu olhar, o meu próprio olhar, me fustiga...
Em vão
busco ainda acompanhar-me de fantasmas...
Tudo vive
esta vida ao meu redor...
Se ao
menos existissem outras... Sei lá, vidas instáveis, vidas-aromas – organismos
fluidos que se pudessem condensar, solidificar, e de novo evaporar...
………………………..…………………………
22 novembro.
Não me
engano. Deu-se ultimamente uma modificação na minha Alma. Já não a sinto da
mesma forma. Divergiu em hélice... E os meus sentidos giram como rodas de cor –
tômbolas de feira na minha febre...
…………………………………………………
Devaneios...
devaneios...
Sempre em
face de mim a realidade cruel: a folha branca onde escrevo – a vontade consciente
que me faz escrever...
…………………………………………………
…………………………………………………
…………………………………………………
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…………………………………………………
CAPÍTULO 9
Fevereiro 1909.
Enfim! Enfim!
O triunfo – a Ouro o triunfo!
Como
fazia mal em desesperar!
Vibro
hoje apoteoses, e tudo se abateu perante o Milagre!
Cerraram-se
aos meus olhos redemoinhos de Asa, em pedrarias e estrelas!
Houve
fogos de artifício de aromas.
– Que
vale o resto se o quebranto me estilizou, insondável em neblina?
Não sei o
que se vai seguir – o que vai ser de mim. Mas seja o meu destino qual for,
terei vivido beleza – beleza enclavinhadamente a sombrio... Projetei Mistério.
Insinuei-me em Iris. Venci!
– Acaso
posso ver o sangue?
…………………………………………………
Foi este
o meu triunfo. Quero fixá-lo poucas horas volvidas, para mais tarde o percorrer
melhor.
Na minha
vagabundagem expectante, sempre entre fanadas amarguras, ocos esforços –
bocejando luz e absorção – vim dar naturalmente à Costa Azul por este inverno
rigoroso.
E uma
noite do Carnaval de Nice, não sei porquê nem como, achei-me no baile do Cassino.
Foi-me propício
o ambiente. Em ruídos dissonantes, zebravam-se mil cores à minha volta – cintilações
de festa que me parecia estranho o meu espírito, aqui, sentir de lisonja.
E no meio
da multidão bigarrada lembrou-me a frase volátil que, a um meu companheiro
querido, ouvira certa noite num café de Paris:
– Ah! os
bailes de máscaras maravilhosos...
Um baile
de máscaras do Império, na grande Opera... Mas se eu estivesse lá – meu amigo,
se eu estivesse lá – seriam minhas amantes todas as mulheres que me rodeassem:
porque todas viriam de máscara!
Os meus
olhos então resvalaram mais sensíveis ao Segredo que me envolvia – segredo banalizado,
sem dúvida, mas ainda assim fugitivo.
Era
perturbador e belo, com efeito...
Tanta seda!
E
abandonei-me ao tumulto – ao confete e às serpentinas...
"Esquisita
coisa" – breve comecei notando. “Não bebera decerto nenhum álcool, nenhum
narcótico. Os meus sentidos entanto vibravam em confusa dispersão: um
esvaecimento acre, mas sutil, muito suave, delicioso – em transparência abatida.”
Caminhei
embaralhado até que, de súbito, numa sensação oscilatória, as luzes divergiram
em torno dos meus olhos latejantes.
Ao mesmo
tempo alguém me tomou o braço, murmurando a despertar-me do meu torpor:
– Eu sou
talvez a Princesa velada...
Não sei
bem o que se seguiu. Só após alguns momentos pude ver a mulher esplêndida que
me tomara o braço. Alta, escultural, inigualável – vestindo um estranho disfarce:
o costume, por certo, dos pajens de algum país distante e azul de conto de
fadas.
Encerrava-lhe
o tronco um corpete de brocado de ouro, por onde assomava em perniciosa audácia
o bico petulante dum seio moreno.
Cingia-lhe
as pernas, quase nuas, um “maillot” violeta, imponderável.
Um gorro
de cetim escarlate sobre os cabelos torrenciais, com uma pluma desconhecida, de
ave mágica – ofuscante e multicolor.
À cintura,
um cinto negro de couro lavrado, misterioso, donde, na sua bainha, pendia um
estreito punhal.
Um “loup”
de seda verde a ocultar-lhe o rosto...
…………………………...………………………
Não sei
bem o que se passou nos primeiros minutos – repito. O meu torpor ia pouco a
pouco evaporando-se – mas a escoar-se arrepiadamente, toldando-me mais do que
nunca os sentidos.
A minha
lucidez só regressou – e uma lucidez muito relativa ainda –quando os dois, no
bufete, bebíamos champanhe...
Numa
inquietação arraiada, os meus olhos tinham-se fixado agora no punhal. Mas a
desconhecida, seguindo o meu olhar, logo o tirou da sua bainha de prata e mo
estendeu para que eu perdesse o medo.
Tomei-o
nas minhas mãos vacilantes, num sentimento heráldico.
Era uma
arma terrível e uma joia solene. Pedrarias secretas se incrustavam nos copos, deslumbrantemente,
em cintilações desvairadas, –brilhos remotos de densas pompas; cores
infinitas... A lâmina cruel de aço, estreita e curta, muito acerada – e, sobre
ela, estranhamente gravados, os caracteres surpreendentes dum alfabeto
perdido...
Examinei
a joia, emudecido. Sombreou-se-me o rosto. Esfriaram-me os dedos... Mas, a
sorrir, a estrangeira contava:
– É uma
joia de família... preciosa, emblemática, antiquíssima... com uma lenda
medonha, espessa... de maldição eterna... Talvez um dia lha conte...
Foi como
se me partissem os dedos com um martelo de gelo. Deixei cair o punhal... Ela
apanhou-o no mesmo instante, sem medo, a rir muito... Depois, mandou-me encher
mais uma vez a sua taça – enquanto, bem tranquila, sempre a rir, embainhava de
novo a arma estrídula...
Saímos do
bufete. Amorosamente, encostava-se a mim – em verdade o seu corpo enroscara-se
no meu. Tinham-se enlaçado as nossas mãos – e um momento houve em que, ao ajeitar
o corpete áureo, fizera surgir mais livremente a ponta maquilada do outro seio.
Como
nunca, se me acentuava agora um estranho calafrio – um calafrio de sombra, em
singularidade me parecia.
A delírios,
revendo a minha glória daquela mulher de olvido, admirável, a pendurar-se-me
dos braços – todo o meu receio era do fim seguramente banal da aventura. No
entretanto nunca foram banais os beijos suntuosos. E eu caminhava bêbado de
alegria, automaticamente, fora do espaço, sem proferir uma palavra...
Ah, mas
decerto a minha companheira tomara já uma resolução.
Sempre
pelo meu braço, dirigiu-se ao vestiário a pedir os seus abafos –um manto de
peles riquíssimas.
Eu tremia
agora de pavor, sem coragem para lhe dizer a frase inevitável sobre a nossa
noite...
Ela não
se admirou nunca, entanto, do meu silêncio – e pergunto a mim próprio, ainda,
como é que de súbito me achei
subindo para a “limusine” que, sem dúvida, a esperava...
O veículo
arrancou, marchou muito rápido. Apenas então se me volveu um pouco de
sangue-frio.
Fortalecera-se
o meu triunfo: o enigma continuava. E o meu pavor divergiu: “Seria com efeito
tudo aquilo um enigma – ou nada mais do que uma aventura interessante, rara,
inesperada; contudo bem natural?...” Ah! se enfim eu estivesse na posse dum
Segredo...
Até que,
de brusco, decidindo-me, embora fosse desmoronar-me numa desilusão, provoquei eu
mesmo, indiretamente, uma resposta explicativa.
A minha
companheira esquecida – a rir muito, a entrelaçar-me os dedos, jurou-me que não
tivesse receio, que não havia perigo nem ladrões mascarados... que me levava
apenas para sua casa, o seu hotel – acrescentando:
– Lá
ninguém sabe que eu sou talvez a Princesa velada... Não lhes dei o meu nome...
Dei um nome falso... A bem dizer não dei nome algum... Nem me viram nunca, quase...
Senti na
verdade deslocarem-se planos multicolores à minha volta: o Mistério prosseguia
portanto, e não era eu que o criava. Ao contrário: eu buscara até aclará-lo. O
triunfo era certo e Ouro.
Assim
abstraí da hora, decidido a entregar-me sem consciência ao quebranto,
entrecerrando os olhos para menos ver ainda.
Simultaneamente,
sem me esforçar, sem me lembrar sequer de a sugerir – regressou-me
anestesiadora e tênue, deliciosa como nunca, a dispersão que referi há pouco e
me dimanara antes de A ter achado – em arrepios violeta, agora.
(Particularidade
curiosa que só depois observei: dessa difusão entorpecedora, muito do fundo,
ressumava um pavor oculto em insinuações magentas).
Pude
ainda ver que, vertiginoso, desde o Cassino, o automóvel se dirigiu pelo
Boulevard Mac-Mahon, – seguindo depois pelo Boulevard du Pont-Vieux até à Praça
Garibaldi. Mas, após chegarmos a esta Praça – onde nos detivemos um instante
para o chauffeur acender uma lanterna
que se apagara – não me é possível dizer se tomamos pelas ruas Cassini, da República,
ou por outras quaisquer.
A partir
daí, com efeito, transmigrei-me a um mundo de sonhos. Volveu-se-me relativa a
realidade – todos os meus pensamentos e os meus gestos foram meras projeções de
movimentos subtis executados noutros planos. Adormeci em jade. Eclipsou-se
qualquer coisa de mim: o luar, talvez, sobre o meu mundo interior. Fui apenas sensível
ao Mistério que me acompanhava...
Ao fim de
não sei quanto tempo, o automóvel estacou em face dum portão de ferro.
Descemos. A desconhecida abriu-o com uma pequena chave que brilhou na noite...
Entramos
num jardim rumorejante. Ela dera qualquer ordem ao chauffeur que, tomando o guiador, desaparecera... A noite estava
muito escura. Ao fundo do jardim, no entanto, eu pressenti a sombra dum grande edifício...
Tomou-me
pelo braço, mais uma vez, a encantadora – e seguimos por uma rua lateral até
chegarmos defronte dum pavilhão isolado, à esquerda do jardim...
De novo
puxou por uma chave brilhante.
Abriu uma
porta. Subimos alguns degraus...
Era um
interior delicioso – espécie de atelier adornado em requinte.
Uma atmosfera azul se cendrava aí
iluminada em estranhas divergências por lâmpadas elétricas foscas – macia de
perfumes, toda de seda.
Cortinados
roçagantes – tapetes profundos, de luas roxas.
Móveis
orientais, indecisos – e, ao meio, um leito baixo de pelúcias, insondável,
secreto.
Mas, em
todo aquele ambiente de morfina, foi isto que mais me impressionou: a luz não
era imóvel – ondulava no ar, bem distinta, em listas semiovais, desabrochando
contínuas, a um ritmo iriado, de escoamentos tênues.
Mal chegamos,
logo a minha ignorada arremessou o seu manto sobre uma poltrona espessa. E, em
face dum grande espelho, logo também se despojou do seu costume. Ficou toda
nua. No rosto sempre a máscara verde...
Quando o
seu corpo surgiu liberto e esplêndido, imóvel como uma estátua, a meio do
aposento – foi muito frisante – a luz modificou-se. Desabrocharam mais
arqueadas as listas, em impulsos mais rápidos e esguios – influência por certo
da auréola de platina que, baçamente, o seu corpo macerado nimbava em redor...
Como se
arroxeou então o meu Orgulho, mosqueando-se a esmeraldas! Toda essa carne de
Segredo ia ser minha! E um espasmo de alívio se me evolou por vê-la conservar a
máscara – íntegro assim, em ruivo, o Enigma!...
Rolamos
doidamente pelo grande leito. Sob o meu corpo rangeu delírios a sua carne de
Apoteose e Alma...
Ah! mas
de súbito os meus olhos fixaram-se em qualquer coisa mais resplandecente que brilhava
perto, sobre o mármore rosa do fogão: o punhal que, ao desnudar-se, ela deixara
ali, em descuido.
Continuei
a mordê-la...
Possessos,
os meus olhos não se despregavam da outra maravilha!
Nessa
atmosfera de seda, penumbrosamente movediça, as cintilações da arma lendária
eram dum sortilégio infernal, mágico de rutilante e temível.
Não devia
ser com efeito luz somente, luz multicolor, o que as gemas esquecidas
deslumbravam – e eu só posso exprimir assim, por fantasia: das pedras de artifício,
emanava primeiro, em verdade, uma cintilação luminosa, relampejante. Mas,
bruscamente, a meio da sua trajetória, essa cintilação condensava-se, na
penumbra azul, em um núcleo hialino, donde, por sua vez, saía então um halo de
reverberações coloridas, arco-iriadas, a divergir em estranhos rastros de relevo. Era certo – eis o
mais bizarro, e inexplicável: essa luz, ainda que fluida, tinha relevo: em
relevos caprichosos e bem nítidos, palpáveis,
nos surgiam o seu brilho e as suas cores.
Toda a
minha vida, em suma, se focava agora no punhal. Estridentemente, não sei
porquê, chegara-me a certeza granate de que era ele enfim, mais do que qualquer
outra coisa, o Mistério em que há tanto me sonhava envolver.
Deste
modo, uma impressão de feitiços minuto a minuto se me vincava, alucinadora e
coleante...
Zurziram-se
planos engolfados a meus ouvidos, aromas silvaram a transtornar se em músicas
de dissonância, até que, a uma cintilação mais fantástica, me pareceu
secretamente que todo o meu mundo interior se paisagenava. As crepitações dos
brilhos ofuscantes invadiam, sim, a minha Alma: esbraseando sol sobre as minhas
ânsias – toldando chuva no meu tédio, alastrado em planície, inutilmente –
aluarando os cemitérios das minhas nostalgias – e, maior singularidade,
alargando uma Praça enorme, de arquiteturas colossais (mas com um grande poço
ao centro, em vez duma estátua de herói) em volta de todo o meu entusiasmo. E
previ no mesmo instante, seguramente previ, que a minha vida de alma, futura,
ia existir nessa Praça – fechada, mergulhada talvez para sempre no grande poço
central.
Depois, a
todas essas ideias mágicas – nessa hora, pelo menos, tão reais – haviam-se
misturado sempre os meus beijos nos seios esmaltados da doida, por toda a sua
carne perdida, convulsa de miragens em ondas de neblina e jaspe!...
Seguiu se
um momento em que os meus olhos lograram divergir do punhal na ideia perfurante
de que tudo caía em meu redor, no espaço, insondavelmente – que só eu não caía.
Pareceu-me mesmo que o próprio corpo encantado que vibrava sob o meu se ia
abismando em vertigens. Melhor: prolongando-se em espessura, pois, embora fosse
caindo, eu, imóvel, sentia-o sempre debaixo de mim.
Mas,
breve, os meus olhos pararam de novo sobre a arma... Como nunca o mundo inteiro
se me centralizou no punhal... Pairava todo um sonho de Ópio...
... Até que, por último, um espasmo recamado em
insinuações astrais me soçobrou... Mas, ao esvair me, ah! não foi a carne suntuosa
que eu possui, opulento – foram os
reflexos imperiais da joia maldita!...
……...……………………………………………
……...……………………………………………
……...……………………………………………
……...……………………………………………
……...……………………………………………
De súbito,
desenvencilhei-me... Precipitei-me sobre o punhal... Era tempo! O Mistério ia
desmoronar-se... Ela erguia-se já... Tiraria a máscara, por certo... eu próprio
lha arrancaria... E vê-la... saber quem ela era... ver os seus olhos... deixá-la...
Não! Não!... Impossível.
De resto,
o ambiente, após os êxtases, por força me havia de surgir em toda a sua
realidade...
Apenas
durante os espasmos lograra imaginá-lo talvez – purpureamente.
Eu ia acordar...
Despertava do Ouro... Ia perder todo o Milagre...
Tive medo.
Receei pelo meu orgulho... Que seria de mim se não tivesse o gênio de fixar – leonino! – aquele Segredo escultural, de me enroscar
nele para sempre, de o estilizar em mim próprio para sempre o viver?...
Foi uma
ânsia de estertores! Mas venci!...
Empunhei
a arma rudemente... e cambaleando, num redemoinho, numa vertigem, enterrei-lha toda
no coração...
Não houve
um gemido. Apenas os seios oscilaram...
Que hora
grandiosa!
Pareceu-me
que chocara em verdade contra o destino, e o meu braço – só o meu braço – o
fizera deter!...
……...……………………………………………
……...……………………………………………
……...……………………………………………
Sim! Sim!
triunfara! Até que realisara a minha obra – projetara bruma, envolvera névoa, abobadara
Sombra... E, a meu redor, a realidade desmoronava-se em gomos negros,
cascalhantes... Uparam-se tronos de marfim a cercar-me... desfilaram cavalgadas de estrelas... diademas rolaram em
catadupas...
Ah! o
momento infinito!...
Não era
tudo, entanto. Faltava ainda alguma coisa para a obra ser completa... E, num ímpeto,
de olhos cerrados, por baixo do “loup” de seda verde, lacerei furiosamente o
rosto dessa mulher que nunca vira: para ninguém mais a poder ver – nem eu mesmo!
Olhei a
joia. Milagre. A ponta limpa de sangue. Só as letras da inscrição enigmática se
tinham colorido de vermelho, perpetuamente. E as pedras do cabo do punhal
haviam cessado o seu desvairo – enfim tranquilas de luz.
Arremessei
a arma longe. Fugi...
Guiei-me,
sonâmbulo, entre as ruas do parque. Saí o denso portão de ferro, cuja chave
ficara, decerto, na fechadura... Vagueei não sei quantas horas por ruas
desconhecidas...
Quando a
lucidez me voltou – e me regressaram as noções do espaço e do tempo – achava-me
de novo, não sei como, na Praça Garibaldi...
……...……………………………………………
Nessa
mesma manhã tomei um expresso na estação de Ville-Franche. Ninguém me impediu o
passo...
Ignoro o que
deixo atrás de mim... um cadáver, pelo
menos... Ignoro o que vai suceder... se já correrão a perseguir-me...
Mas que
vale tudo mais em frente da obra a Diamantes-mármore que ascendi?...
Sutilizei-me em Astro... vibro de Sortilégios... Finquei-me em Saudade e
Beleza...
Eu
próprio sou Mistério. Tremo de pavor, esvaecidamente. Translucidez afilada!
É tudo
sombra – Sombra, enfim, à minha volta!
O triunfo
maior: o Triunfo!...
……...……………………………………………
…….……..………………………………………
……..…….………………………………………
…….……..………………………………………
……..…….………………………………………
CAPÍTULO 10
3 fevereiro 1911.
Tanto
tempo volvido... E retomo as minhas notas para frisar a minha glória.
Sim, foi
completo o Triunfo!
Como hoje
vivo Outro – indeciso, longínquo; insensível a tudo quanto me contempla. (Não
sou eu que olho as coisas, já – antes elas me olharão, quem sabe, agora...)
Talhei-me
em Exílio. Deixei de ser Eu-mesmo em relação ao que me envolve. O Mistério ogivou-me
longos aquedutos – e os ecos, entre as arcarias, não me deixam, por afago,
ouvir a vida. À minha cerca existo hoje
só Eu – vitória sem resgate!
Para mim
não há senão “antes” e “depois” da Maravilha. De “antes” não me recordo. Ninguém
se lembra do que viveu primeiro que nascesse. Ora, por essa noite tigrada, no
minuto a safiras em que lhe cravei o punhal – acordei (foi certo) em outro
mundo, nasci outra vida: uma vida delgada onde é perpetuamente a mesma estação
do ano, onde os instantes existem parados pelo mesmo tempo fora, – um tempo
diverso, inexprimível, sem direção: que não é espaço ou movimento, mas qualquer
coisa como um ritmo fluido, constante por transparência vibrátil.
Tudo se
esbateu aos meus sentidos, se nimbou de Sutil. Tudo hoje apenas adivinho. Eis como
venço seguir olvidado – preso por fios de sombra ao meu quebranto.
Não ouço
os meus passos; mal vejo os meus gestos.
Irrealizei-me
a crepúsculo – emudeci a toda a luz.
Vou
sempre como através de ruínas.
Durmo torres
e fanatismo em Levantes intermitentes.
Saibo-me
a um descobridor de mundos que não existiram nunca.
Se falo
alto, sozinho, a minha voz ressoa coada por damascos e pelúcias – outras vezes,
mais longínqua, através de mármores arraiados, cor de rosa...
Dissolveram-se-me
no sangue a Beleza e o Mistério.
Ah! tenho
bem nítida a impressão de que, no momento do crime, despojei qualquer coisa de
mim que teria ruído aos pés do cadáver – e assim me libertei, me individuei a
Esfinges...
……...……………………………………………
10 fevereiro.
Que pompa
ao meu redor!
Sou
hierarquias em Bizâncio...
Todo eu
pairo Segredo.
Quem era
ela – quem era o seu rosto?...
Fosse
como fosse, essa mulher tinha uma vida, portanto – uma existência bem sua.
Muitos a viram, ao menos...
E
desapareceu – sumiu-se por alçapões teatrais.
Choraram-na
os seus amantes, sem dúvida – e os seus parentes lembraram-se talvez da sua
morte.
A sua
morte existe – mas só eu posso jura-lo!
……………………………………………
……………………………………………
……………………………………………
Procuraram-me
bem após o crime, decerto.
Embalde...
Atrás de mim não houve vestígios.
Passara
como uma lenda.
Estranha
segurança: nunca receei que me descobrissem. Nem pude nunca recear que o meu
crime fosse algum dia punido. Foi como se nunca o tivesse praticado.
Apenas
não tornei a ler jornais.
Entanto
uma vez – não sei por que cidade – os meus olhos fixaram-se de súbito num diário
estrangeiro, desdobrado, que um transeunte lia.
Em
grandes letras, vi ainda, sem querer:
“O Mistério
da Vila das...”
No mesmo
instante o desconhecido voltou a página...
– Seria
aquele o meu Segredo?...
De resto,
as letras não me zigue-zaguearam a fogo...
20 fevereiro.
Nimba-me também,
certas manhãs astrais, uma ternura de camélias: a saudade emersa da carne uma
só noite beijada – e as macerações frenéticas daqueles seios agressivos...
……………………………………………
Minha
louca, como devias ser bela – duma formosura nova, doutras delicadezas...
Matei-te.
Abjurei de ti sem te conhecer... Vês tu: foi esta a maior prova de amor!
28 fevereiro.
Caminho...
Oscilações
difusas, de cores brandas, aquosas, ascendem em movimentos de hélice, a refrescar
o ar à minha volta – indícios multicolores soçobram – enroscam-se listas de aromas
– vértices hialinos, ao longe, divergem prismaticamente – esgotam-se sons
perdidos de azul, num retinir cendrado – volteiam sensações de filigranas –
alastram-se ecos de marfim...
Tal é a
paisagem de sutileza, nostálgica doutros mundos, que me encerra hoje!
Tudo se
me toldou a bruxulear. Tudo se me substituiu em Imponderável.
Eu sei,
eu sei. É que, verdadeiramente, a partir da Hora-imperial, a minha existência
tornou-se sensível a outras dimensões. E é nelas que prossegue hoje a minha
vida estática...
Luar de
embandeiramentos!
CAPÍTULO 11
Dezembro 1912.
Pela
primeira vez, depois do Milagre, eu vejo um pouco o cenário real à minha volta.
Decerto. É que me encontro em Veneza – sensibilidade isócrona à minha Alma
atual.
Não me
paralisou o Triunfo. Desde que me descobri em Sombra, ao contrário, mais do que
nunca vagueio – para mais esquiva ser a minha incerteza; mais flexível e
ondulante.
Descubro
hoje, porém, que melhor valerá fixar-me aqui, para sempre, nesta
paisagem-iluminura, transtornada de Mistério.
Por
incerta que me for a agitação, nada de mais duvidoso me enganará do que existir
nesta cidade azul, projetada em mármore no Tempo – constante, parando clepsídras…
…………………………………………………
Veneza!
Ó cidade
sagrada da fantasia, capital brocado de interssonho, em mágicas penumbras – íris
de crepúsculo, anêmona de antemanhã…
Luz de
retrocesso a Ouro morto e bronze, ao entardecer sobre as Praças – salões de
Paços riais, mosaicados, dir-se-iam, onde os edifícios, à roda, fossem paredes
de esculturas – e as sombras, ondulando, reposteiros suspensos…
Veneza
surgiu-me sempre, toda ela, através dum grande vidro polido, em perspectiva,
como um panorama de artifício – a iluminações teatrais.
Sou bem
outro ao agitar-me na sua atmosfera de Passado amarfanhando rendas – capitosa e
esquecida, lendária, arquitectônica…
E nos
cais dos palácios, nos cais da cidade – filho louco de Doge, talvez – comando
préstitos de emigrantes mortos, em disfarces de pompa…
Tudo ecoa…
tudo ecoa em redor… Permaneceram nos espelhos, ali, sorrisos doutrora… o ar
cascalha ainda, nesta sala, murmúrios das festas volúveis doutras épocas…
Estilizaram-se
danças em cores, pelos lambrises…
Ofuscaram-se
máscaras em cinza…
Nos
canais, negras, as gôndolas singram de esbelta tradição. E eu não posso
acreditar que as movam remos – mas sim as marchas fúnebres dos órgãos da
Catedral.
Campanários
e cúpulas irrealizam-se ao longe…
Tudo
influi encantamento. Até o horizonte é um filtro…
– Veneza!
Ó cidade-Princesa adormecida de conto de fadas – incerta de lis, saudosa de
miragens, fugidia de inter-lúnio…
…………………………………………………
A ti me
devo misturar para sempre.
Como te
sinto hoje mais tênue e latejante…
Adelgaçou-te
o meu segredo – aumentou-te em Oculto…
Rodeio as
tuas praças, entro nos teus palácios, ajoelho as tuas Basílicas – e compreendo
que sou alguma coisa da tua arquitetura.
Desço
escadas de honra – perco-me em galerias…
Confundo
me com os teus monumentos, os teus mármores, as tuas douraduras – tuas salas
secretas, tuas pontes sinistras.
Ocultamos
as mesmas insinuações.
– Quem sabe se eu já fui a tua alma?...
CAPÍTULO 12
23 janeiro 1913.
Ontem, no
Florian, não pude evitar um encontro.
De longe
a longe, a realidade – é certo – ainda ressuma, inofensiva mas enervante, à minha
volta.
Foi um
dos meus raros conhecidos – um amigo indiferente de Paris.
De resto,
nem procurei velar o meu despeito, enquanto ele me apresentava o seu
companheiro – um inglês: Lord Ronald Nevile…
(– Ah...
por que me lembrarei deste nome?...)
28 janeiro.
É
estranho. Começo, receosamente, a observar uma modificação no meu espírito. Há mais
claridade sobre mim. Ouço talvez, de novo, os meus passos. Ter-me-ei ainda
iludido?...
2 fevereiro.
Seguem-se
agora, inevitavelmente, todos os dias, encontros com o meu amigo e lord Ronald.
Devo
tranquilizar-me. São decerto, apenas, estas horas oleosas de verdade que me
alteram o espírito.
Procuro
fugir. Mas em vão. A cidade é pequena.
E, a
qualquer parte onde vá, encontro-os sempre. Pelo
menos encontro sempre o Lord…
3 fevereiro.
É muito
interessante e bizarra a figura do inglês.
O seu
perfil esfuma-se hirto – duma distinção aristocrática e concisa.
É alto e
esguio. A pele muito clara, aloirada nas mãos longas – volve-se lhe no rosto,
maceradamente, duma palidez sonâmbula. Os olhos intensos, dum azul cruel,
fulguram-lhe em brilhos tão profundos que parecem não existir neles próprios –
mas atrás deles, coando-se como por lentes através das pupilas.
Rasga-se-lhe
delgada a boca equívoca, em crispações femininas – divergindo em triângulo as
comissuras dos lábios, por sombras agrestes. Os cabelos louros – indecisos em
tons de cobre.
Usa
inteiramente barbeado o rosto de aridez, e – detalhe sinistro – nas suas faces extensas ravinam-se misteriosos sulcos
verdes.
O mais
singular, entanto, são os seus gestos, todos a linhas quebradas; duros e frios.
Mas realmente frios – fisicamente frios. Sempre que perto de mim, o Lord
esboçou um gesto, mudou uma atitude, eu senti com efeito uma sensação de frio –
um frio ácido, crispante, silencioso…
Não é
menos extraordinária a sua voz. Uma voz cristalina e moça – mas que se diria
vibrar abafadamente, entre crepes negros, de seda.
Os seus
passos são de madrepérola.
…………………………………………………
5 fevereiro.
A
claridade aumentou em minha volta.
Dia a dia
sinto o Milagre mais longe.
Vai-se
pouco a pouco dissipando o cenário de artifício que me toldava de Impérios e
Vago. Já se não zurzem em meu redor outros planos resvalados, transpondo a
Certeza.
A minha
vida parece regressar às antigas dimensões.
Oh! mas é
necessário ter força, não deixar diluir o quebranto!
Tudo isto
é mera influência do contato com os estrangeiros evidentes. Não pode deixar de ser assim!
Urge pôr
termo aos nossos encontros.
8 fevereiro.
Baldados
esforços!
Fecho-me
em casa, decidido. Juro não sair… E, de súbito, não sei para quê, caminho nas
ruas,
– à toa,
bocejando…
Sei bem o
fim que me espera. Não deixo nunca de o encontrar…
9 fevereiro.
Mas será
propriamente luz, luz real o que hoje me cerca? Não será antes, meu Deus,
qualquer coisa mais perigosa que não saberei ainda exprimir – qualquer coisa
ofuscante, em densidades remotas?...
12 fevereiro.
Seja como
for, não me esqueço do Lord. Inquieta-me sobretudo este fato irrisório: ao lembrar-me
do seu rosto, ele surge-me sempre de uma palidez adormecida – e ravinado por
estranhos sulcos verdes, inexplicáveis. Pois bem: esses sulcos não existem! Isto é: embalde, defronte dele, procuro
descobri-los nas suas faces. Nunca os vi realmente. Mas não me é possível recordar o seu rosto, sem esses sulcos verdes – fantásticos…
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16 fevereiro.
Enfim!
Posso de
novo encerrar-me no meu Mistério – volver à Maravilha.
O meu
amigo e o Lord partiram hoje.
Acompanhei-os à estação!
CAPÍTULO 13
22 fevereiro.
Um sortilégio
roxo, em verdade, me entrelaçou. Esquivas macerações a tons de Ouro vacilante
me dimanam e enfeitiçam em Alma e corpo. Vivo só em metade de mim – a mão brônzea,
incrível, dum gigante, se abateu, cerrada, sobre a minha nuca. E, atordoado,
prossigo em direções assustadoras, complexas, pastosas.
Uma força
estranha, dobrada, se enclavinhou no meu espírito, e, subconscientemente, ela
me dirige. Desenrola-se um fio negro, perto de mim, que me guia – imponderável
mas fatal.
Pois como
doutro modo explicar o desconcertante erro?...
Eu
decidira, bem convicto decidira, permanecer largo tempo em Veneza a penetrar-me
de indeciso e marchetado – e, desta forma, regressar, íntimo, ao meu cioso
alheamento-Estátua.
Um grito
de expansão soltara, por sinal, como doido, ao ver desaparecer o comboio que
levava para longe esse desconhecido, banal porventura, mas que a minha
vibratilidade, ainda assim, pressentira em secreto.
Livre, sozinho,
de novo ia permanecer, sem dúvida, inteiro em mim – absoluto em Tênue,
glorioso, a oscilar a minha soberba.
Não
obstante, poucos dias depois, certa manhã, – sem pensar, sem me ver (foi exato:
sem me ver) fiz, creio, as minhas
malas, corri à estação, saltei sobre um expresso… ignorando para onde me
dirigia, embora eu próprio tivesse comprado o bilhete…
No entanto
o mais estrambótico, o mais pavoroso, era que apesar de tudo isto ser assim,
assim mesmo, eu sabia – ah! no fundo demasiadamente sabia! – para aonde
viajava, porque viajava, e o que me fizera partir de súbito…
Na
estação de Nice, com efeito, desci. No “trottoir” alguém me esperava… O Lord,
realmente, correu para mim – tomou-me o braço, sem surpresa, como se já
soubesse que eu devia chegar naquele comboio. Levou-me para o seu hotel…
Eu não escrevera a ninguém a minha partida
de Itália.
CAPÍTULO 14
27 fevereiro.
Mais do
que nunca me sinto resvalar entre véus cinzentos. O quebranto persiste, afinal
– mas é outro, rebelde. Mais de esfinges, talvez – agressivo porém; nunca
afagador.
Os dias
seguem, e vivo na impressão bizarra de que eles é que são eu – e eu o tempo por
onde eles decorrem.
Acendem-se
luzes amarelas, triangulares, picarescas, em face dos meus olhos que, ao longe,
projetam, implacavelmente, dois pontos dum vermelho sujo, enfadonho...
Visões de
molduras – molduras só; ovais, sem retratos – bailam outras vezes defronte de
mim: sobretudo nas horas trêmulas de antes de adormecer.
Volveu-se-me,
de resto, uma doença física dormir. Nunca me ciliciaram pesadelos de remorso.
Durmo, ao contrário, densamente – e é esse mesmo peso do meu sono que me aflige
e amarfanha. Só ao fim da tarde me sinto curado do meu despertar.
1 março.
Vejo-me
já, nestes poucos dias, num grande círculo de relações, graças ao meu extraordinário
companheiro.
O Lord é
recebido em toda a parte – com a maior consideração. No entretanto
afigura-se-me, não sei porquê – com uma
consideração despeitada.
Gasta
dinheiro a rodos. Todos o adulam; todos o conhecem. Pelo menos, à sua passagem,
todos o olham – apontam-no, falam baixo...
Só ele
parece não conhecer ninguém – mesmo as
pessoas que me apresenta.
Acompanho-o
muito. Fiquei no seu hotel.
Logo de
manhã me vem buscar ao meu quarto... Comemos à mesma mesa. Passamos os dias
juntos. A ponto que não tenho um instante livre. Chega-me a enfastiar, por
vezes, a sua presença contínua.
Aliás,
não se pode ser mais amável. Parece considerar-me muito. Interroga-me sobre as minhas
obras. Conversa sempre. Mas há súbitas lacunas nas suas frases.
Não me deixa
pagar nenhuma despesa.
Chegam-me
a vexar as suas atenções.
…………………………………………………
O centro
da nossa vida mundana é em casa da Marquesa de Santo Stefano que habita uma
luxuosa “vila” de Cimiez. Todas as noites recebe, em suntuosidade. É aí que
tenho feito muitos conhecimentos. Fato estranho: quem sempre me apresenta é o
Lord.
A
Marquesa de Santo Stefano é uma mulher formosíssima. Ouvi dizer que o seu
marido está paralitico e nunca sai do seu castelo dos Abbruzzos. Não sei bem ao
certo. Mas seja como for, ainda não vi o seu marido.
A melhor
sociedade frequenta os seus salões.
2 março.
Nos
jardins da “vila” da Marquesa não há nenhum pavilhão.
4 março
Sigo nas
salas douradas. Os pares volteiam em mil cores. Lembram rosas as valsas. E, no entanto,
mais do que nunca se me acentua um calafrio de receio. Tremo todo... Rangem-me
os dentes... Faço os últimos esforços para que se não veja a minha
inquietação...
Atravesso
outros salões... Tenho a ideia que pontes de ouro se abrem à minha passagem...
Listas de
cristal fustigam-se vertiginosas... E eu sinto-me esse cristal prestes a
estalar...
Ziguezagueia-me
o cérebro. Vou-me encostando às paredes para não cair...
O Lord
não chegou ainda. Combinara encontrar-se comigo, à noite, em casa da
Marquesa...
Receio o
quê? A sua chegada? É possível. Parece-me contudo que, se tremo, é mais pela
sua ausência.
– Onde
estará ele agora? Que estará a fazer agora?...
E este
pensamento tortura-me como se, longe de mim, me pudesse fazer mal – me pudesse fazer pior...
...Chega
finalmente. Sossego um pouco. Vem mais pálido. É nova a cor dos seus cabelos!
Os seus passos divergem noutros brilhos...
6 março.
Como
posso sofrer tanto...
E por que,
meu Deus, por quê?...
Que terá
a minha vida com a desse estranho? Nada me prende a ele. Ninguém me prende.
Sou
livre, perfeitamente livre. Se quiser partir amanhã, hoje mesmo – posso partir. Ninguém mo impede. E é por
isso talvez que permaneço...
Mas não
sei em verdade o que me atrai a esse homem. É terrível: não o esqueço um
minuto. Quando estou diante dele, mesmo assim, não me logro esquecer de que
estou diante dele. Junto de qualquer pessoa, nós olvidamos a sua presença – a sua presença é natural. Pois o mesmo
me não sucede em face do Lord – como se só por um prodígio fosse possível
estarmos os dois frente a frente...
Cada vez
duvido mais para onde caminho.
Chega-me
uma sensação de fim, a prata velha e roxo.
…………………………………………………
8 março.
— Quem é
aquele homem? ah! quem é aquele homem?...
Positivamente,
nada sei.
Desejo
investigá-lo a todo o custo.
Mas não
ouso, como seria já natural, na nossa intimidade, fazer-lhe uma pergunta direta.
Até aqui,
a minha única tentativa foi junto do amigo de Paris que nos apresentou. Fiquei
petrificado. Respondeu-me só, ligeiramente, que o conhecera por acaso – durante
a viagem, de Roma a Veneza, que tinham feito na mesma cabine...
9 março.
Ainda
procuro às vezes persuadir-me de que tudo isto é bem simples, bem real – que
não existirá mistério algum nesse personagem – entretanto sinistro.
Ai, dura
pouco a ilusão...
E começo
a observar que, nas suas frases de quando em quando interrompidas, aparecem
agora também, a intervalá-las, palavras incoerentes, avulsas – palavras hirtas,
mortas – que saltam, como escórias, na frase que vai pronunciando: raspadas,
caindo secamente...
Depois,
para aumentar o meu pasmo e o meu medo, as minhas dúvidas arrepiantes, eis ao
que esta noite assisti:
Jantamos
em casa da Marquesa de Santo Stefano. Esta apresentou-nos alguns convidados que
desconhecíamos.
E eu
ouvi, distintamente ouvi, a Marquesa, fazendo as apresentações, dizer.
– Lord
Roland Neville.
O meu
amigo nunca protestou.
Roland e
Ronald confundem-se, em verdade, na pronúncia inglesa. Entanto, mesmo assim,
não se me afigura natural o erro da estrangeira.
Pareceria
bem fácil dirigir-me ao meu amigo, a esclarecer o caso. Tentei-o ainda. Em
vão... Ao preparar-me para lhe falar do engano, sentia-me tremer todo... e um
selo de fogo me cerrava os lábios...
De forma
que, hoje, nem mesmo estou certo do seu nome.
– Para
onde vou, meu Deus, para onde vou?...
11 março.
Ontem,
depois do almoço, estávamos ambos sozinhos no terraço do Hotel.
Bruscamente
o Lord pôs-se-me a falar de sensações de mistério e de medo... a perguntar-me as
que eu já fremira...
A
conversa deslizou, bem plausível, neste campo – até que, de súbito,
destrambelhadamente, às gargalhadas, concluiu assim:
– Eh! meu
amigo... eh! eh!... por ventura... meu amigo... já experimentou tamanha
glória?...
Dormir
num grande palácio deserto... Às escuras... e, antes de adormecer, à força de
concentração... só com a sua vontade... ah! ah!... povoar de figuras as casas
vazias... na treva... figuras de medo... kesskrrssssss... mutiladas...guturais... farfalhantes... É belo! É belo!... Mas
não o queira nunca... Tem um perigo... Que, reais em demasia, as crisálidas se
precipitem a cercá-lo... e o esmaguem... esverdinhadas... contorcidas... contorcidas...
rrrrrrr...
Olhei-o
atônito. Havia uma auréola peganhenta em seu redor...
Depois,
não sei quantas horas ficamos os dois ali, silenciosos – face a face...
…………………………………………………
CAPÍTULO 14
14 março.
Cada
noite se me frisa melhor a sensação de “fim” – por inflexões arruivadas, agora.
E creio mesmo, em bizarria, que não sou já, sequer, eu próprio, mas apenas o
embalsamamento de mim próprio.
Giro
entre fluidos policromos.
Todo eu
sou naufrágios embandeirados a negro. Contudo, a meio destes feitiços e do meu
pavor dia a dia mais elétrico, esvai-se um iriado capricho a esbater-me, dolorosa – porém transparentemente, aciduladamente,
frescamente...
Ah! mas
ouvi-lo hoje, não me perturba só – martiriza-me também: porque a sua voz começa
a ter sobre os meus nervos a mesma influência que o raspar da lixa em ferro –
um calafrio ósseo semelhante aos que nos produzem os ácidos fortes e os líquidos
gelados passando-nos pelos dentes...
Outra
singularidade:
As nossas
conversas são todas em francês. De resto, eu mal conheço a sua língua. Vê-se
bem – é claro – que o Lord não é francês. Mas não tem o acento inglês. De forma
nenhuma. Nem outro acento estrangeiro que eu conheça: espanhol, italiano,
russo, alemão, oriental... A verdade é esta: não fala, a bem dizer, com acento
algum. Conhece-se que é estrangeiro, mas não pela pronúncia... por outra coisa
qualquer: mais velada, perdida...
E nunca o
ouvi falar senão francês – mesmo com os
seus compatriotas.
A sua voz
lembra-me uma sombra.
Com
efeito, todo aquele homem me lembra uma sombra...
…………………………………………………
CAPÍTULO 16
20 março.
Oh! o medo
sepulcral!...
Estou
perdido! Agora, sim, não me resta ilusão alguma – estou irremediavelmente
perdido.
Foi ontem
à noite quando, de súbito, um jato elétrico lhe iluminou o rosto que, pela
primeira vez, doido de pavor, não sabendo evitar um grito – observei que o seu
queixo se parece frisantemente, numa curva sutil, mansa, inconfundível, com o
queixo da morta... a única parte que eu
vi do rosto da rapariga mascarada...
Que me
vai acontecer, meu Deus, sempre ao lado deste homem – em estilhaços todas as
esperanças, hoje, de lhe fugir um dia?...
22 março.
Lembrou-me
esta manhã, em confusão, se o meu crime não o teria praticado antes ele...
23 março.
É certo –
mais que certo: qualquer coisa de horrível, de alucinante, me encadeia a esse
homem. Não sei bem o quê, ainda...
Vivo numa
tortura incessante. Eu-próprio sou a minha angústia. E o meu terror, vou
encontrá-lo mesmo nos gestos das pessoas que me falam, nos olhos dos
transeuntes.
Mas que
vitória também! A minha dor enclavinhou-se em Mistério – esculpe-me em
desconhecido, alastra-me em destrambelho...
Assim,
agora, defronte dos meus olhos, torcem-se picarescamente grandes cabos
viscosos, duma matéria arroxeada, em filamentos capilares. E nas minhas horas
de maior pavor sinto, com efeito sinto, que vão comboios pequeninos na minha
alma, puxados a cordel – e que as minhas entranhas se reduziram a um complexo
sistema de rodas de vidro e marfim, pequenos discos multicolores, ponteiros
exidados – tudo a girar, vertiginoso, por um inútil movimento de relojoaria...
De quando
em quando, por entre as rodas dentadas, ressoam timbres agudos de campainhas elétricas...
acendem-se lâmpadas minúsculas...
fecham-se
e abrem-se circuitos... e, mais irrisoriamente, ascendem – inesperados, não sei
donde – finos repuxos de álcool colorido...
Vou nas
ruas, disperso, atônito, conduzindo dentro de mim, em laboração, o ridículo
maquinismo – quinquilharia afinal, brinquedo de criança: mas de que eu tenho
receio... um receio laivado de riso, sarcasticamente...
E os
nervos rangem me todos, como ossos...
…………………………………………………
…………………………………………………
…………………………………………………
Que hei
de lastimar, portanto? O meu Triunfo, seja o que for – embora maldito – é uma
certeza.
Tenho o
que queria: a Sombra.
27 março.
Cada dia
vivo mais em face do Lord. Pois é diante dele que o meu tormento, em todo o
caso, diminui – preso dos seus olhos.
Ontem
falou-me dos seus domínios da Escócia... um castelo imenso, entre bosques...
E era tão
sombrio o tom da sua voz, referindo-se aos seus territórios... Parecia
velar-lhe a garganta a sombra – talvez – das árvores seculares das suas
florestas...
Escutando-o,
lembrou-me, numa recordação visual, o meu Principado sugerido outrora.
29 março.
Mais e
mais a bruma me ondula – bruma de tempestade, receando trovões.
Adivinho,
inexprimivelmente, ao longe, avançar sobre mim uma sombra – uma grande sombra,
aguda, triangular, em vértices repentinos...
30 março.
Voltam as
obsessões de molduras – molduras douradas a ouro fosco, onde agora porém se
enquadram telas... telas só... telas
ainda sem retratos...
1 abril.
Procuro
desenvencilhar-me numa última veleidade. Não tanto para fugir da loucura – quem
sabe – como para medir melhor a força do meu Mistério.
Mas
embalde tento lançar luz. Em tudo isto há pequeninas certezas, reais, insofismáveis
– que me confirmam o duvidoso, em maior significação.
Não me
engano! não me engano! O Erro e a Sombra existem-Me.
Ao mesmo
tempo prevejo que o mais fantástico, o maior, o mais sombrio, ainda me não foi
descoberto.
Esperaremos...
Por mim, terminei.
Vivo o meu fim.
Somente,
quanto durará o meu fim?...
2 abril.
Há
vestígios verdes nas telas vazias das molduras douradas.
4 abril.
Sobem-me,
em ternura, recordações de infância – um pouco a roçar o meu mundo interior.
Durmo menos agitadamente – como as crianças, com a cabeça debaixo dos lençóis.
Mas
chegou-me um novo receio: o medo do luar. Amaldiçoo-o sem saber por quê...
6 abril.
Os
arrepios que me soçobram juntaram-se todos numa agulha.
8 abril.
Ha duas
noites que sonho grandes incêndios em ruínas.
9 abril.
Apareceram
retratos desconhecidos nas molduras douradas.
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16 abril.
Enfim –
sei tudo!
Ah! por
isso eu amaldiçoava o luar...
A verdade
foi-me revelada quando os dois conversando, ontem, paramos sob um raio de lua.
Ignoro
como é que o adivinhei. Mas, de súbito, o mistério desvendou-se-me numa certeza
escarlate, iluminada a jorros – fatal, irredutível.
Também,
não podia deixar de ser assim. Aquele homem havia de ter, por força, qualquer
relação com o meu segredo!
18 abril.
19 abril.
O LORD É A MORTE DA RAPARIGA MASCARADA.
CAPÍTULO 17
17 abril.
O “fim”,
a veludo negro e crepes – consumou-se portanto.
Já não
tremo.
Resvalei
do meu mundo-interior.
Pararam
as rodas e os ponteiros dentro de mim – emudeceram os timbres, apagaram-se as lâmpadas.
Sei o meu
caminho irremediável...
Para que
lhe tentar fugir?
Os meus
passos, de hoje avante, só podem ser os seus passos...
Embrenhei-me
definitivamente.
Chego à grande
Sombra.
– Mas
aonde iremos... aonde?...
Será o
último Enigma.
Porque
havemos de partir, por força...
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Nas
molduras secretas, enfim tranquilas (elas outrora oscilavam sempre) os retratos
desconhecidos volveram-se o seu retrato – uniformes, a verde. Era também fatal.
18 abril.
Em todo o
caso, que pavor sem nome!...
19 abril.
Devíamos
ontem jantar em casa da Marquesa de Santo Stefano.
Porém, à
última hora, resolveu que ficássemos no Hotel – e hoje, no Passeio dos
Ingleses, todos os nossos conhecidos nos voltaram as costas! Entre eles, o
amigo de Paris que nos apresentara.
Mas
parece nem o ter notado...
Sigo de
abismo em abismo.
20 abril.
Saiu de
madrugada.
Estava só
no meu quarto, quando um maitre de hotel
me veio chamar.
Contou-me
que uma senhora estrangeira, numa grande agitação, procurava o PRÍNCIPE – que
tinha a maior urgência em lhe falar... Era um caso de vida ou de morte. Se ele
não estivesse, ao menos suplicava que a ouvisse o seu amigo.
Corremos
ao salão.
A
desconhecida desaparecera...
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– O Príncipe!...
21 abril.
Suicidou-se
ontem a Marquesa de Santo-Stefano.
Preveniu-me
ao almoço que partimos hoje. Tomaremos o comboio na estação de Villefranche.
É outra a
força que me arrasta.
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– A sua
morte! A sua morte! A sua morte!...
CAPÍTULO 18
Não
atravessamos nenhum mar. A viagem foi toda de caminho de ferro. E não posso
dizer quantos dias durou.
O
expresso caminhava vertiginosamente, parando em raras estações – estações porém
que eu nunca descobri, olhando pelas vidraças.
Febril de
quebrantos, disperso de agouros, aturdia-me a impressão de que o comboio não
marchava horizontalmente, mas verticalmente, desmoronando-se em nuvens que o
peneiravam através de estreitos poros – bem como ao meu corpo.
De resto,
já sem mundo-interior, deportado dele para sempre, só de muito longe (e a muito
vago) sentia – e de mais longe posso referir aqui o que sentia. Apenas os seus
olhos atuavam ainda a minha vida – os meus sentidos, as minhas recordações.
Fomos
sempre face a face.
Chegamos,
noite cerrada, a uma gare imensa – desta vez real, bem visível. Mas uma gare inexplicável:
deserta, sem chefe. Pelo menos eu não vi nem chefe, nem soldados, nem
carregadores...
Esperava-nos
um grande automóvel cinzento, muito agudo. Subimos. Mais vertiginoso do que o
expresso, o veículo marchou algumas horas. Durante o trajeto não trocamos uma
palavra. Creio até que nunca mais trocamos uma palavra.
A noite, densíssima
– tão escura que oferecia resistência ao próprio automóvel...
Por fim,
a carruagem estacou. De volta as trevas ainda. Entanto, próximo, sentia-se –
não se via, pressentia-se numa emanação de altura – a sombra dum grande edifício
torreado.
Descemos.
Atravessamos as ruas dum jardim
–
suponho. Sobre uma escadaria, muito larga, de mármore negro – um lacaio, de libré toda branca, empunhava, mal aceso,
um candelabro antigo.
Entramos.
Numa sala
de teto elevadíssimo, havia uma longa mesa posta para muitos convivas. Luzes
baças, sempre.
Sentamo-nos.
Mas não apareceu ninguém. Bebemos Xerez. Trinquei um fruto.
Tinha
desaparecido...
O mesmo
lacaio, hirto, silencioso, me guiou por escadas intermináveis e fundos
corredores ao grande aposento de abóbadas onde escrevo estas páginas – à luz
ondulante duma grossa vela de cera...
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– Onde
estou, meu Deus, onde estou?... Para aonde me trouxeram... que vão fazer de
mim... que pretendem de mim... a que me irão obrigar?...
Há embranças de pavor, ainda, na minha alma –
tão funesta é a noite, tão cerrado o Enigma...
Arrepanham-me
cabelos de feitiço. Volvem-se estátuas de ferro os momentos.
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Olho em
volta. Perscruto a penumbra.
Bailam
sombras em todo o aposento: sombras rasteiras, pesadas, sólidas, que esvoaçam
sem asas – e que a chama triste do cirio não logra afugentar.
O leito
espera-me ao fundo – abafado, insondável – sob cortinas de damasco púrpura. Lençóis
de bretanha; colchas da Índia.
À direita,
um grande armário de espelho. Mas estremeço... ranjo de presságios... O espelho
está partido... estalado de alto a baixo...
Há portas, seguramente de desvãos, que não ouso
abrir, em arrepios – bem como a grande janela do fundo que uma tranca exagerada
cerra...
Lá fora,
nas galerias, em todo o palácio – um silêncio de catedral.
No
quarto, uma atmosfera úmida – turvada em olores de insidia, contundentes.
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Resolvo-me
num ímpeto...
Destranco
a janela... abro as vidraças...
Uma lufada de vento – de vento, e de qualquer coisa menos fluida – vergasta-me o rosto...
vai apagar o castiçal...
Debruço-me.
Apenas a escuridão...
Adivinho,
entanto, que uma grande altura se escoa abaixo de mim...
Devo
estar numa torre...
Longe, o mar
ruge... talvez... o mar, ou florestas que rumorejam... É um clangor soturno, opaco
– que, à distância, tanto pode ser do oceano como das bétulas.
– Que
haverá defronte dos meus olhos? Que haverá a meus pés?...
Nem uma
estrela que brilhe... uma luz esquecida...
Mas é bem
certo que um grande espaço se abisma e se alastra em torno de mim.
Dir-se-ia
que estou em pleno azul, suspenso – como na barquinha dum balão...
Longos
minutos passo à janela.
Sempre a
mesma treva, o mesmo rumorejar...
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Reúno-me
num esforço derradeiro de lucidez.
Com
efeito, ninguém jamais viveu horas Maiores.
Solene
segredo!
— Onde
estou? Que existe em cerca de mim? O que é que não existe?... que foi ontem?
que será amanhã?...
Cingi a
minha obra de Astro. Que mais posso esperar?
Deixo-me
cair sobre o leito.
E só
agora, nas trevas, sei que há frescos – grandes frescos sombrios, obras-primas
de claro-escuro – nas paredes que me envolvem. Sinto as suas figuras a projetarem-se
no meu corpo – em relevo, por umidade...
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— Dormirá
também?...
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Para
escrever, acendo de novo a vela.
Inferno!
Não sonhemos mais!
Urge
acordar e salvarmo-nos.
Seja como
for, seja o que for, seja quem for – o resto dissipar-se-á, e eu serei obrigado
a reconhecer-me: pois vivo, vivo, entanto...
Palpo o
meu corpo... acho-o todo... E o meu coração lateja.
É tempo
de salvar-me. Ilusão! Ilusão!
Não
sonhemos, embora – asseguremo-nos do Triunfo. Infame aquele que, por um enleio,
deixasse perder tamanha vitória.
Breve, a
manhã há de raiar. E eu saberei! saberei! saberei!...
Tudo
menos isso!
Ainda que
esteja certo do que é o Príncipe. Deixar perder tanto Ouro morto... deixar ruir
tanta Sombra... Não! Não!... Ao contrário...
Mergulhar
nela indefinidamente... misturar-me a ela... sê-la... sê-la a mais Resgate!...
— Ó êxtases
de Arminho! Luar crucificado...
Esfinges
de Profundura...
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Depois,
tudo se esvai em frente desta Maravilha. Logo, é esta que eu devo fixar a
sedições de Prata. Fixá-la, sim, encerrá-la em jade – ópio coleante...
profética volúpia...
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Comigo –
estas páginas do meu caderno vermelho, secretas também, confiadas à Altura...
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O próprio
vento, ogivalmente, abriu a janela de par em par.
As
sombras cresceram – e agora o seu cortejo, roçagando dosséis, desfila em
triunfo...
Nas
galerias solitárias, a esta apoteose – ah! por força! progridem imagens de
neblina violeta... assim como ondeiam brocados nas salas próximas, douraduras tilintando
o ar... e se abatem tapeçarias... se desvendam reposteiros...
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Passam
cultos mortuários...
Sou
funerais em Memphis...
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... E a
janela aberta, ampla, insondavel, sobre a noite – lagôa-pelúcia, orquidea
velada do meu Capricho...
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Vá!
Leoninamente – dum jato!...
O grande
salto!... ao Segredo... na Sombra... para sempre... e a Ouro!... a Ouro!... a
Ouro!...
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