12/10/2017

A Grande Sombra (Conto), de Mário de Sá-Carneiro






A Grande Sombra
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Le Prince d’Aquitaine à la tour abolie
GÉRARD DE NERVAL

CAPÍTULO 1
Dezembro de 1905.
– O Mistério...
Oh! desde a infância esta obsessão me perturba – o seu encanto me esvai...
No grande quarto onde eu dormia receava longas horas antes de adormecer, no ondular da luz indecisa da lamparina de azeite que deixavam sobre o toucador. Temia que as sombras de súbito transviassem, animando-se – e monstros, monstros de bruma, corressem sobre mim aos esgares, arrepanhando-me...
Horas longes, porém, de medo infantil – só vos posso recordar em saudade. É que então, se sofria, a minha febre era já a cores – voluptuosidade arraiada também. E assim, quantas horas até, durante o dia, lasso dos brinquedos sempre iguais, eu ansiava a noite, sinuosamente, para latejar a ela os meus receios prateados...
As grandes casas às escuras onde nunca entrara e que, no entanto, bem conhecia de as percorrer iluminadas – eu, do meu leito, imaginava-as, criava-as agora no silêncio e na treva, fantásticas: terrificantes e maravilhosas.
Pensava: "!Oh! a glória de passear nelas por esta solidão, de tactear o que haverá dentro delas!..." E vinham-me ideias de, sorrateiramente, descalço, para as criadas não sentirem, erguer-me da minha pequena cama branca de taipais e partir a visitá-las... Mas era mais forte do que a ânsia o meu pavor... Escondia a cabeça debaixo dos lençóis, mesmo de verão, até que adormecia esquecido, fundamente...
– As grandes casas às escuras...
Ainda hoje não sei entrar nelas tranquilo... E evito sempre percorrê-las...
De mais a minha inteligência sabe coisa alguma de espectral existir aí – mágicas vibrações, indícios nenhuns de sortilégio ondular ao redor...
Mas receio sempre... E lembram-me fantasmas... triângulos frios... espadas nuas... listas de fogo doutras cores...
Tremo e vacilo. Retrocedo...
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A suntuosidade inigualável do mistério!...
Sim! Desde criança adivinhei que a única forma de volver rutilante uma vida, e bela, verdadeiramente bela em ameias a marfim e ouro – seria lograr referi-la ao mistério, incluí-la nele...
Mas como, meu Deus, como?...
Procurando, descendo bem as trevas, acumulando imperialmente enigma sobre enigma. Oh... debalde, debalde, até hoje, tenho buscado segredos para ungir com eles a minha existência – imortalizá-la de Sombra... À minha volta é tudo bem certo, mais do que certo, real sem remédio... Só a minha imaginação vence ainda tremular mistérios – mistérios porém de fumo; quebrantos a vago, lendários... E a luz sempre sobre mim, a luz – certeza tosca, material...
Também já na infância, de resto, era assim em verdade. Só em fantasia me amedrontava, só com ela ia achar um enlevo delicioso e inquieto nos alçapões, nos subterrâneos (se me falavam de algum palácio antigo) e nas pontes, nos zimbórios, nos grandes arcos – bem como já me passavam às vezes, em calafrios, vagas reminiscências de aquedutos negros, que eu nunca vira, decerto.
Mas havia sobretudo no prédio da nossa quinta um sótão inexplicável que durante os anos da minha infância foi para mim o centro de todo um mundo misterioso.
Esse sótão – ao que uma só vez vagamente entrevira – não tinha sobrado. Era, concluo hoje, apenas um desvão entre o telhado e o forro da casa – sendo um corpo do edifício mais alto do que o outro. De longe a longe os criados vinham limpá-lo, creio. Deixar-me-iam entrar, talvez – mas não o tentei nunca, com medo: e percebo agora que o meu receio era apenas de o ficar conhecendo realmente, e assim perder aos meus olhos todo o seu encanto.
Ah! mas as vezes que eu subia até à sua porta, a escutar... Pelas frestas o vento entrava redemoinhando; de espaço a espaço o vigamento rangia – e tudo isso se transtornava na minha imaginação em bater de asas negras, arrastar de correntes... crepitar de ossos, quem sabe... Certo dia a minha coragem foi até entreabrir a porta...
Lá dentro, penumbra densa – entanto, um raio de sol da tarde, coando-se por uma fresta, iluminava em mágicas palpitações um halo de poeira multicolor... Assombrado, cego da maravilha, fechei a porta no mesmo instante – fugi...
Comecei então pensando, às noites, antes de adormecer, largas horas nesse sótão que, mais do que nunca, se me volvera um mundo bizarro, desconhecido, alucinante. E criava nele, em verdade criava, toda uma vida... Fantasiava-lhe – sim – os seus bosques, os seus rios e pontes, as suas montanhas, os seus oceanos, as suas povoações, os seus habitantes... As florestas, via-as de algodão em rama, policromas, com lantejoulas, como os brinquedos de Árvore do Natal; seriam de água as montanhas; os rios de pedras preciosas, e, sobre eles, em arcos de luar, grandes pontes de estrelas. A humanidade que habitaria o meu país, suscitava-a de anões disformes, anafados, picarescos, mas de olhos cor de violeta – e sugeria lá também toda uma fauna de animais estrambóticos, inexprimíveis: pássaros sem cabeça, coelhos com asas, peixes de juba, borboletas que fossem flores, nascessem da terra...
O rei desta nação, não sei porquê, parecia-me, acreditava seguramente, que era uma grande formiga multicolor – e ratos dourados com asas de prata os fidalgos da sua corte. Só o povo homúnculos ridículos...
De resto, todo este mundo da minha imaginação infantil me pululava dentro do sótão num conjunto misterioso – indistinto, difuso, entrecruzado, impossível de destrinçar: era mar onde era também cidade; havia palácios riais ao mesmo tempo florestas. Coisa mais caprichosa: nesse mundo tudo existia variegado mas, simultaneamente, tudo era cinzento! Sim, eu via as árvores de algodão em rama, umas brancas, outras roxas ou azuis, escarlates ou cor de laranja – e os olhos violeta dos anões, os vassalos ratos dourados, el-rei a grande formiga multicolor – e rios arco-íris de joias; montanhas cristalinas, aniladas. Entretanto, surgindo-me tudo assim, numa infinidade de tons, eu não podia deixar de o ver também uniformemente a gris!...
Ah! a imaginação das crianças... onde achar outra mais bela, mais inquietadora, que melhor saiba frisar o impossível?... Ela é sem dúvida, pelo menos, a mais apta a converter pavor, a refugiar vislumbres. Porque nessa época ondulante da vida é-se apenas fantasia, crédula fantasia. Vem depois o raciocínio, a lucidez, a desconfiança – e tudo se esvai... Só nos resta a certeza – a desilusão sem remédio...
Eis pelo que a hora mais além, a hora mais perturbadora da minha vida, a vivi nos oito anos.
Estávamos na nossa quinta.
Eu não me atrevera nunca a passear de noite, sozinho, pelas ruas areadas, orladas de buxo, tão aprazíveis e campestres, em que de dia, bem afoito, brincava correndo afogueado. Mas, do grande pátio junto da cozinha, eu olhava-as, em frente de mim, sonhando descobri-las, noturnamente, numa viagem maravilhosa. Porque, em verdade, de noite, a minha quinta devia ser mágica... Gnomos a percorreriam às cabriolas, e elfos; nos grandes tanques, ao luar, se banhariam fadas, e pelos assentos de azulejo – oh, sem dúvida! – toda uma figuração de príncipes e rainhas encantadas se assentaria devaneando...
Depois, que medo não havia de fazer, lá embaixo, sob a nogueira secular, junto do poço – à borda do qual, talvez, mouras de sortilégio, todas nuas, assomassem... esquivas...
De olhos fascinados, sim, eu sonhava tudo isto, de olhos perdidos – mas trêmulo, não ousando nunca afastar-me alguns passos de ao pé da cozinha, onde havia luz e a criadagem falaceava... Sonhava ainda investigando sempre a noite, sonolento, com um livro de estampas esquecido sobre os joelhos... e o meu olhar perdia-se mais uma vez no laranjal que se adivinhava perto, numa penumbra esbatida, e em que eu, à força de ilusão, distinguia, conseguia realmente distinguir, os frutos rutilantes – volvidos agora, de milagre, áureos pomos de encantamento...
Algumas vezes, com o caseiro, percorrera já, era certo, as ruas da quinta, à noite. Mas isso, claramente, nada significava: acompanhar-me alguém fazia esvair todo o quebranto. Só aos meus olhos de criança solitária – demais sabia eu – esse mundo mágico se revelaria...
Em balde continuava pois sonhando, numa sofreguidão de me evadir nas trevas – sempre acorrentado pelo pavor...
Até que uma noite – não sei como foi – de súbito, decidi-me: fechei os olhos, e, numa carreira louca, afastei-me...
Abri-os só depois de assim haver corrido alguns minutos, para ter a certeza de já não recuar... E largo tempo, numa febre de medo, a ranger de mistério, voguei pela sombra...
Meu Deus, é-me impossível dizer toda a beleza, toda a maravilha que vivi então!... Dava-me asas o próprio terror – matava-me e deliciava-me... Que cenário de quimeras!...
Na noite, entre a escuridão, ao longe, os lugares bem conhecidos – os pomares, os vinhedos, os eirados, os jardins – surgiam apavorantes, noutros contornos... As ruas, ladeavam-nas os monstros de bruma verde em que o buxo se convertera – monstros aliás jocosos, bonacheirões, em esgares torcidos de polichinelo... e eram soldados hirtos, alvejando, os pilares das parreiras: soldados de barretina, alguns, fumando cachimbos onde fingiam brasas os pirilampos que esvoavam próximo...
Tudo sombra, sombra vacilante, enfim, ao meu redor, a modificar sutilmente, constantemente, a paisagem noturna...
Rumorejavam segredo as árvores – sabbats talvez de feiticeiras as suas sombras, tão arrepanhado e seco o crepitar agora dos ramos entre o vento...
(Ah! mas aquele vento, na noite, através dos canaviais, não o sentia eu como o vento do dia... Era por força qualquer outro fluido. Parecia-me, no seu estranho sibilar velado, como que um espectro do vento – um espectro temível, grasnado, de ecos mortos...)
Os tanques refletiam negrume apenas, porque a noite era escura, sem luar nem estrelas: tanques de alcatrão, dir-se-ia, hediondos – mas a frescura que ressumavam dissipava este medo: e sobre a água, em verdade, olhando bem, mil formas de fantasia, indefinidas, talhadas numa névoa translúcida, anilada, quase invisível, esvoaçavam capricho e mistério...
E eu corria sempre...
No jardim, as rosas eram encantamentos mais suaves. Entanto, ao meio, o alecrim do Norte, copado, circular, volvera-se num bonzo chinês, espapaçado, cruzando os membros venerandamente... Os lírios, campainhas de torre de marfim...
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...Debruçava-me agora sobre um poço... Em ruídos úmidos, longas asas negras, desconhecidas, roçaram-me o rosto... Então o meu pavor foi uma agonia...
Ainda vi ao longe uma grande forma secreta, fulva talvez, crescer sobre mim...
Depois não sei o que se passou... Encontrei-me de novo, boquiaberto, sentado no banco da casa do arco, junto da cozinha, com o mesmo livro de estampas sobre os joelhos... Lambia-me as mãos, docemente, o meu companheiro preferido — o canzarrão amarelo do caseiro que eu atrelava aos meus carros...
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Sim! sim! Até hoje foram estes os maiores instantes que vivi. Nunca logrei, a mais densa ilusão, embrenhar-me de Sombra, incluir-me em Segredo... Ah! mas, às noites seguintes, como se encapelaram os meus pavores!... Ruivamente, acordava muita vez chorando, a debater-me em crises de acerados histerismos...
E foi então que sonhei pela primeira vez – outra das minhas reminiscências cintilantes.
Com efeito, uma manhã, ao despertar, bem seguro me lembrei que – não sabia aonde, mas nessa noite – certa rainha de brocado me tivera ao colo, me abrira os seus cofres de pedrarias, me desenastrara as suas tranças, longas de ouro, para eu coar entre elas os meus dedos febris, a refrescá-los...
A Princesa não pudera existir no meu quarto, mesmo da noite – e eu não saíra do meu quarto...
Entanto falara-lhe, vira-a bem... Aonde?Aonde?... Lembravam-me quase as suas feições... a      sua boca de pérolas... seus gestos-flores... Havia paredes de névoa em torno aos meus olhos...
Por fim, cheio de vergonha, contei tudo às criadas.
Mas distraidamente, as criadas só me responderam:
– Ora... Isso foi um sonho...
Um sonho...
Todo esse dia – nunca mais me esqueci – passei-o a reviver o lindo mistério... a rainha de mágica: e os seus anéis, os seus colares, o brilho roçagante do seu traje, as suas madeixas desprendidas... amoroso dela, quem sabe – mas, acima de tudo, orgulhoso de ter sonhado pela primeira vez: de saber sonhar, pois não podia crer que a todos acontecesse o mesmo, tamanha glória...
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Depois, nunca me tornei a enganar... Por isso recordo a minha infância em admiradas saudades...
Embora toda a minha Arte se fixe em Mistério, cingidamente – jamais me nimbo de além. Terei deixado sombra – pode ser – sombra diademada, nos meus livros: sombra de artifício, porém; sombra imóvel, sombra morta, que me não vibra: que eu crio, mas que não me envolve; que só projeto de requinte.
E cada noite, mais saudoso, mais humilde, volvo às recordações infantis – silenciosas: ao meu passeio noturno, de milagre; ao meu sótão de fantasia... e às largas horas também que, do meu leito, olhos cerrados, às manhãs de sol, contemplava na transparência das pálpebras – caleidoscópio de ilusão – os discos, as flechas, as garras, os laços, as estrelas, os crescentes multicolores que se engastavam numa penumbra vermelha, cintilando a mosqueá-la em rodopio...
Como toda essa riqueza vai longe! Como fui grande!... Então receava os campanários das igrejas, sombriamente... se havia torreões num palácio, só acreditava neles com princesas nuas, lá dentro, ceando frutas acres... e temia sobre as tapeçarias espessas... vinham-me calafrios defronte dos reposteiros pesados, de veludos quentes...
De resto, ainda hoje não perdi o medo do que pode haver para lá de um reposteiro – bem como ainda, de longe, me perturbam os tapetes da Pérsia, os panos de Arrás, os grandes lustres apagados, os espelhos mortos, nos paços antigos...
Mas tudo em balde, e tão incerto...
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Oh! que ânsia leonina de me abismar na Sombra – e vivê-la! vivê-la!...

CAPÍTULO 2
Janeiro 1906.
Grifado quebranto... Na minha atração de Mistério freme densamente qualquer coisa de sexual... Se tanto o sonho e o visiono, o ergo em anseio perdido – é numa sensualidade esguia, dimanante e delgada: em crispado.
Sim; como as lembranças aquáticas, o fogo e os corpos nus – as sensações de Segredo, ou reais ou evocadas, arrepiam-me êxtases fluidos, perversos de ouro...
Bem sei... É que, para mim, tudo quanto me impressiona se volveu sexualizado – e em sexo apenas o oscilo, o desejo e o sofro... Eis pelo que sempre cataloguei, excitantemente e a par, os corpos nus, esplêndidos; as cidades tumultuosas de Europa – os perfumes e os teatros rutilantes, atapetados a roxo – as paisagens de água, ao luar – os cafés de ruído, os restaurantes de noite, as longas viagens – o murmúrio contemporâneo das fábricas, das grandes oficinas – a loucura e as bebidas geladas – certas flores, como as violetas e as camélias – certos frutos, como o ananás... e os morangos, na sua acidez toda nua, de caprichos afilados.
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Olho para trás de mim às horas silenciosas e evoco todos os personagens da minha vida... os raros corpos de acaso que possuí, por os desconhecer... e mesmo aquelas pessoas, ignoradas, que só um instante cruzaram a minha existência...
– Mas não será a mais bela a recordação destas últimas – e a mais secreta?...
Uma noite, em Paris, no restaurante, sentou-se, por exemplo, em minha face, qualquer rapariga que, à sobremesa, me perguntou o nome francês do doce que eu comia... Falamos alguns minutos, depois. Era russa, de Moscou... E eu dum país distante, ao ocidente, perdido em aventura...
Despedimo-nos sem sabermos os nossos nomes...
Não nos tornamos a ver.
Fosse como fosse, porém, as nossas vidas, tão longínquas, tão diversas – tinham-se tocado um segundo, vivido juntas um instante... quem sabe se no cumprimento dum destino insofismável...
Ah! como ao lembrar-me destas pequeninas coisas, me sinto orgulhoso – porque lhes sei encontrar a sua significação íntima, perturbadora, velada de sombrio...
E assim vou suscitando todos os meus abraços, todos os meus encontros fortuitos: todos aqueles, em suma, com quem um dia, em qualquer cenário, troquei uma palavra – os próprios transeuntes, é verdade, que apenas me perguntaram por uma rua... Evoco-os, e sinto beleza – beleza enclavinhada numa ideia sutil de medo a sacudir-me... Pois quem eram, ah! quem seriam todos esses estranhos que, enfim, têm desempenhado, têm dialogado a minha vida?...
Meu Deus, meu Deus, quanta sombra!...
À beira de que catástrofes terei fugazmente seguido?... se eu terei falado minutos a grandes criminosos indo para o seu crime essa noite?... a grandes desgraçados, nas horas culminantes talvez duma existência perdida...
E ocorrem-me até rostos de criaturas que apenas fitei de longe, vagamente – mas que, por alguma coisa de sutil, nunca mais olvidei. Assim a mulher fulva da Ponte de Rialto... e o homem pálido, solitário, uma noite, no Mônico, com o laço vermelho...
— Crescei, crescei sobre mim, de miragens... resvalai em teorias fantásticas, todos os comparsas da minha vida!... Fazei-me tremer, ranger de pavor e sortilégio, até que num esforço me erga – esbraceje a dissipar-vos!...
Podiam ser estas, ainda, horas bordadas que eu fremisse...
Mas em vão... em vão... Não se animam as imagens...
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Entretanto não soube nunca guardar um segredo...
Com efeito se algum amigo me conta, lialmente, segredos da sua vida – o meu orgulho sobe tão alto por conhecer o que os outros ignoram que logo os divulgo a qualquer: ponho termo ao mistério que me foi confiado, a demonstrar-me assim, em glória inútil, que sou maior do que ele visto que o posso desmoronar...
De resto, enquanto assim procedo, se me sobem ternuras por alguma criaturinha gentil, franzina e aguda – todo o meu desejo é de emprestar um pouco de enigma a essa vida banal, pequenina... Eis como, debalde, a quanta pobre rapariga que eu nunca tive, enviei cartas de fantasia, e flores, telegramas – livros meus, se era no estrangeiro…

CAPÍTULO 3
Março 1906.
Vibrantemente o futuro me agita também, pois é dos segredos totais.
Noites sem fim – inquietantes, zebradas, multiformes – me perco, esvaecido, entressonhando amanhã episódios da minha vida: as futuras personagens da minha existência... os heróis futuros das minhas novelas ainda não projetadas...
E lembro-me que tudo isso existe já – porque há de existir forçosamente. Por isso me enredo a supô-lo...
Impossível! Impossível!
Só me resta esperá-lo...
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Oh! como eu quisera possuir, de hoje, as minhas amantes futuras – não suscitadas por fantasia, com formas e rostos imaginários – apenas a sua ideia: translucidamente, imponderavelmente... talhadas em desconhecido, por insinuações nebulosas, latejantes de Auréola...
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– Poder, poder sugar um dia – enfim! – o gosto roxo e macerado do Mistério!...

CAPÍTULO 4
Maio 1906.
– O movimento... as viagens...
Outra voluptuosidade de capitoso enigma... Pois sempre me assombrou estar hoje aqui, na minha terra medíocre, nesta cidade ocidental, ao sul da Europa – e em cinco dias (poucas horas) poder chegar, no norte, à capital do Império sombrio e denso da minha nostalgia roçagante...

Depois de vagabundear incerto algum tempo por outros países, esqueço-me de quem sou, quase – não mo relembrando nem a atmosfera, nem o cenário... tão pouco as personagens que me cercam... Duvido se serei eu-próprio – convenço-me de que o não sou... Nunca pude crer que fôssemos totais: o meio que nos envolve, é também um pouco de nós, seguramente. Logo devemos variar em alma (e em corpo até, quem sabe) segundo os países que habitamos.
Por isso receio muito quando alguém que estimo se afasta de mim, com o pavor do seu regresso – e ao esperar na estação um amigo após uma ausência de alguns meses, um grande enleio me assalta diante dele, titubeando, sem já o poder tratar por tu como fazia dantes...
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Viajo, viajo, erradamente... Assim me modifico, em fantasia pelos menos – me sutilizo em laivos de Mistério...
E nos grandes cafés de Europa, mais frisantemente, os meus olhos detêm-se naquela linda mulher de luxo que, aborrecida em face do seu cálice, espera – à tarde – por um amante, sem dúvida... Olho-a... Invencivelmente vou compondo a sua vida... Engalano-a, poetiso-a; dramatiso-a conforme o seu rosto – e o brilho dos seus olhos, a curva da sua boca maquilada, o tom dos seus cabelos... Uma vida, para mim, foi sempre função de todo um perfil... encontro desfechos apropriados a cada beleza – detalhes que só podem ser vividos por certos olhos, certas mãos, certos sorrisos...
Segue todo o enredo... A matiz, todo o seu passado é sugerido... até que o amante chega, por último... ou não chega, pois nem seria esperado, talvez...
Mas a estrangeira levanta-se, sai... Sigo-a ainda com a vista até desaparecer... e fico tão feliz... tão feliz... tão lisonjeiramente feliz... Mais feliz do que se fosse o seu amante – o amante mesmo que não chegou – porque então conhecê-la-ia toda: não poderia criar uma vida à sombra daqueles olhos, uma vida de acordo com esses gestos...
Glória marchetada! Sem ela duvidar, sem mo permitir, eu entrei, entrei em verdade, na sua existência – porque no meu mundo interior A incluí, imaginando-a suavemente...
São estas frivolidades os mais íntimos prazeres da minha alma. Por isso viajo alheamento, me perco à busca... E acima de tudo quero à noite dourada em que descobri para um bairro aristocrático de não sei que capital, alta noite, um automóvel de milionários, cintilante, esperando em frente dum palácio. Detive-me...
Após momentos abriu-se o portão brasonado... Subiram para a carruagem um homem alto, elegantíssimo... uma mulher suntuosa de zibelinas e rendas...
... E como eu fui mais vitorioso então, sozinho – ao vento – do que eles dois na carruagem, agora talvez misturando as bocas...
Porque eu, podia-os imaginar... e eles, aí, sabiam fatalmente quem eram...
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As grandes cidades... o triunfo de ascender nas Praças monumentais a colunas simbólicas – e, da sua altura – estátua, deixar perder os olhos por toda a casaria... Possessa, a vista ziguezagueanos por ruas, por avenidas, entre parques... espraia-se-nos infinitamente pelo mar dos telhados... E é um formigueiro de edifícios que, do alto, surgidos em panorama, se entrecruzam, se interseccionam, se engolfam uns pelos outros – indestrinçáveis, alucinantes...
Momento a momento o turbilhão nos volve mais confusos... Breve perdemos a noção da distância... uma vertigem nos rodopia... até que, em nossa face, todo o horizonte se desloca – e se vela, ocupado em miragem por outra cidade de mistura...
Ondulamos de erro... arripiam-se-nos os olhos, sagrados... febricitamos de pairar...

... E a vida corre aos nossos pés, a vida – entanto!...

CAPÍTULO 5
Janeiro 1907.
Nas minhas ânsias de segredo tenho-me esforçado, ao menos, para que os meus sentidos vibrem diversamente: desengonçadamente, noutras direções de crispado – dando-me assim, em vislumbres, uma ilusão intranquila a desconhecido.
Eis como algumas tardes, de súbito, a certas cores, realiso sentir – por artifício embora, mas automaticamente – a saudade magoada de certa companheira morta, gentil e pálida, que nunca tive... E é uma sombra propícia a afagar-me então de dúvida... a irisar-me...
Outras vezes chegam-me sensações de “fim” – de termos duma época de vida... de começos de outra, com novas personagens, novos hábitos... E, ao meu redor, é tudo igual – nos mesmos planos!...
Ha fatos também que me impressionam esquivas contradições: Certa noite, por exemplo, num teatro ordinário de Lisboa, desceu-me uma grande tristeza, uma tristeza dilacerada, em face dum casal de velhos bêbados – dueto hilariante da revista célebre. Sim, foi uma derradeira amargura – pungente, arrependida – uma tristeza de passado... e uma piedade... ah! uma piedade aflitiva e inútil, em mágoa enternecedora, quando os personagens grotescos surgiram a cantar versos torpes, bamboleando-se ao compasso duma música raspada, de saltos bruscos... Lembraram-me irreparavelmente um fim de vida, um trágico levantar de feira... E enquanto todo o público pedia “bis” às gargalhadas, eu tinha vontade de chorar – misteriosamente, por mim...
Tenho ocasiões repentinas, outros dias, em que me chegam grandes júbilos entusiasmados. À minha volta tudo ecoa glória... E se encontro um amigo, tomo-lhe o braço – a rir, a rir, infantilmente... Em balde procuro as razões dessa alegria – coisa alguma me sucedeu... Mistério: no entanto ela é uma alegria motivada. É verdade; é deste modo que eu a sinto – pelo menos numa ideia difusa, cariciosa e ondulante...
De resto, de forma idêntica me sobem a cada passo ternuras imotivadas, e – bizarria maior – imotivados pudores enternecidos.
Ainda há pouco se me despertou a sensação esguia de ser insidiosamente uma rapariguinha suave e loira que viesse de se entregar ao seu amante, em caprichos tênues – apenas por um meu amigo me mostrar uns postais que comprara, e eu já vira pelas montras, com uma rapariga linda, de seios nus, adoráveis: a rapariga talvez que, nesse instante, duvidei ser – corando...
Pequenas dores físicas sofro-as, por vezes, apenas em paladar, como gostos desagradáveis.
Frequentemente, ao virar-me numa rua, num salão, encontro-me de súbito no cenário distante de qualquer cidade estrangeira – bem nítido: vendo na realidade toda uma praça... todo um cais... sentindo latejar a penumbra violeta entre as colunas majestosas de certa catedral... (Aqui – bem sei – ainda existe uma explicação admissível: qualquer deslocamento que se dê na atmosfera e que, justamente, interseccione planos paralelos, quebre vértices de luz e sombra, iguais àqueles em que porventura eu presenciei o cenário evocado).
Descem-me também em pleno inverno sensações de outono e primavera – e há períodos em que, sem ter adoecido, me sinto convalescente duma longa enfermidade – salvo talvez da morte por milagre...
Divagando a minh’alma – a sintetizar todo o seu descalabro – ocorrem-me ideias estrambóticas, picarescas e complexas: as únicas entanto capazes de exprimir, por sugestão, as mais íntimas particularidades do meu mundo psíquico.
Assim quando me peso, irremediável, em tristeza e tédio desolador – lembro-me que virá só disto a minha tortura: um revestimento oco de lata me contornou interiormente toda a carne – e outra coisa qualquer: a minha alma, presumo... (E receio então que a minha alma seja apenas um líquido verde, oleoso e turvo, enjoativo, fechado nesse depósito).
A devastação completa da minha vida, encaro-a como uma série de losangos de zinco, salpicados de diversas cores – particularmente dum vermelho sujo – amolgados e torcidos.
E muita noite, no meu leito, revendo a náusea estagnada desta minha existência – uma ânsia irrisória se me suscita de volver o meu corpo triangular, e mandá-lo afiar, nos seus vértices, em gumes cortantes de aço. Ah! se fosse possível fazer um fio ao meu corpo – adivinho bem seguro em tais momentos – breve cessaria a minha desolação...
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Que, de resto, não nos criemos ilusões, eu sinto tudo isto sincera e naturalmente. Não eduquei os meus sentidos a fremir em destrambelho... Eles é que, por si, se desarticularam – de tanto oscilar em oco, de tanto girar em falso...
Depois, se nas minhas obras de Arte, vagabundas de miragem, suntuosas de requinte, ponho um pouco de mim nos protagonistas – gritam logo os castrados à blague ou à incompreensão. Incompreensão... Há tão pouco que compreender no que escrevo – nisto tudo...
Digo: “A imagem da minha vida estampa-se-me como uma série de losangos de zinco”. É só isto. Não procurem nada aqui – não há nada a perceber. Meu Deus, é só isto! Nem o posso exprimir doutra maneira, com maior clareza, porque é assim – assim mesmo.
Mas, por o saber sentir, um pouco de ignorado me penetra. E eis pelo que as minhas extravagâncias só me ensoberbecem, e lhes quero a fulvo – leoninamente...
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(– Por que haveria na encosta do olival da nossa quinta, quando eu era pequeno, uma santa de papel, sob um vidro incrustado na terra?...)
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Entretanto, apesar de tudo, olhando bem – como é só luz, luz insípida, à minha volta... Em vão procuro descer o mistério, minar galerias de sombra...
Impossível! Impossível!...
Ah! como invejo os grandes criminosos que souberam     escapar à justiça... e passam... desaparecem            sangrentos   em assassínios e estupros...
Deixaram ao menos um pouco de névoa – esses.
Encerrados no seu segredo, como hão de viver gloriosos – sem remorsos, tamanhos de Maravilha...
Eu, de evidente, tenho asco de mim!...

CAPÍTULO 6
Agosto 1907.
Se eu fosse milionário e Príncipe, como ergueria o meu domínio do Mistério...
Ah! para regiões do Norte, entre jardins pomposos, o meu castelo altíssimo, em sombras abafadas, ascenderia as suas torres taciturnas, alastraria o seu arcabouço pesado e longo – absortamente.
Dentro, largas salas de baile sem janelas, que eu teria feito executar por grandes arquitetos – e ornadas de frescos de pintores admiráveis; enriquecidas a prata e ouro nas cúpulas maravilhosas, nos lambrises de incrustações exóticas, a madrepérolas e jades...
Reposteiros de veludo, arrastados, roçagantes – a brilhos espessos. Tapeçarias majestosas, profundas, que abafassem os passos – candelabros, serpentinas e lustres brasonados que nunca se acendessem...
Oh! mesmo eu não teria nunca visto à luz esses salões teatrais... Percorrê-los-ia sempre em penumbra, tacteando a sua riqueza; adivinhá-los-ia apenas, em espelhos duvidosos, pelas sombras da sua suntuosidade – guiado por uma luz distante, de fracos bruxuleios, que ainda chegasse, talvez, pelas fimbrias das portas...
Meu Deus, como seria grande!... Que sortilégios marchetados, que vértices difusos, latentes, me aturdiriam ao transpor as minhas salas de honra: onde nunca ninguém dançara, que eu próprio mal conheceria, embora em noites de gala ouvisse dos seus divãs – sempre em penumbra – solenes concertos pelas minhas orquestras asiáticas, ocultas noutras galerias...
E perco-me a sonhar todo o meu domínio de Erro se me deixo esvair em tais pensamentos...
...Jardins emaranhados em volta do Palácio – e parques... Mais longe, bosques tumultuantes, densíssimos, impenetráveis ao sol – com súbitas clareiras aonde, por minha ordem, se elevassem monumentos a heróis, navegadores e guerreiros que nunca tivessem existido...
Ao fundo de roseirais inesperados, perdidos na floresta, templos a divindades de nenhuns ritos – divindades falsas que só eu criara, erguendo-as ali em altares de fantasia... Inscrições tumulares, góticas, antiquíssimas, sob as cúpulas dos templos, em lajes que não cobrissem nenhumas sepulturas – e mausoléus, de mentira também, vazios de ossadas, mais longe, junto dos pântanos, ao fim do bosque, entre ciprestes...
Completaria depois o ambiente irrisório, edificando ruínas perto duma grande lagoa seca – ruínas ogivais de arcos partidos, colunas e abóbodas... Esconderia tesouros, à toa, profundamente, como outrora, nas ruas da minha quinta, enterrava brinquedos... Faria ainda vedar por altos muros eriçados e largos portões de ferro, recintos circulares desertos, onde não se guardasse coisa alguma – mandando por último abrir cavernas e subterrâneos inúteis pelos meus territórios: assim como no meu palácio haveria alçapões de despropósito, repentinas portas falsas, escadarias que nunca se descessem, estranhos maquinismos de segredo...
Mas tudo isto, tudo isto, aprendido incertamente – passeando só de noite pelos meus domínios, nunca cruzando mesmo certas alamedas, jamais me abeirando de certos lagos que apenas suporia pelo murmúrio cendrado dos seus jorros de água ligeiros... Sim, tudo entrevisto em distração e em dúvida, vacilantemente, para o bordar a magia...
E das janelas monumentais do meu quarto dourado, então, eu olharia ao crepúsculo o meu Império de esbatido alastrando-se ao longe – imaginando-o, prevendo-o em sombras ondulantes, no rumorejar da folhagem, em ruídos aquáticos – sob cintilações de estrelas...
Ah! mas não passa dum sonho todo o meu Principado...
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— Se eu fosse um sonho, também?...

CAPÍTULO 7
Abril 1908.
Os dias vão passando, e a minha curva obsessão mais e mais se me inflecte...
Abriram-se-me no cérebro compassos de pontas de ágata...
Oh! a luta impossível contra a realidade!...
Se ao menos, por    fim, a loucura me envolvesse...
Ainda seria  abismar-me numa grande sombra...
Mas não... mas não... Tudo é real na vida – a própria morte é real...
Ha quem tenha sabido desaparecer, entretanto!
E evoco dois companheiros perdidos doutras épocas:
Um, pálido e louro, sardento, que me falava dos seus avós de França. Vivo ou morto, esse passou sem deixar rastro... E só mais tarde soube, por seus pais, que não tivera nunca parentes estrangeiros – nem tão pouco existiam as grandes propriedades do Norte, para onde me convidara esse verão...
Pasmo hoje, recordando-o. Abominava a sua companhia. Era um espírito tão pouco interessante... Mas acompanhava-o muitas vezes, não o sabendo evitar. Por gratidão. Era ele que me procurava com insistência, numa ociosa simpatia... Por fim, os seus modos bruscos e os seus hábitos grosseiros, de mesquinhices reles ou prodigalidades tolas de “parvenu”, tinham-mo feito quase odiar...
Só hoje descubro o meu completo engano! Que espírito heráldico o seu!... Nele houve também, sem dúvida, a ânsia flava do Mistério – tosca embora, mas profunda. Eis pelo que só me falaria de irrealidades – das suas quintas, dos seus automóveis, das suas espingardas – e procederia em destrambelhos premeditados: ora sumítico, ora produlário; injusto sempre...
Até que uma noite, num ímpeto mais nobre, resolveria desaparecer, projetando assim uma mentira maior... E logrou-o em Vitória. Ninguém usou nunca o seu luto. Se morreu, não se encontrou nunca o seu cadáver. Se vive ainda – é hoje outro, por certo...
Nem um vestígio atrás de si...
Maravilhoso Artista!...
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Mais belo, talvez, o destino do meu segundo companheiro – que uma tarde me entrou pela casa dentro a anunciar-me o seu próximo suicídio... Eu encolhi os ombros arrumando os livros da minha estante. Conhecia demais o seu amor pelo drama, o seu ingênuo capricho de se romantizar... Demos um      lindo  passeio essa noite, despreocupadamente...
Algumas semanas mais tarde repetiu-me o seu propósito... Exigi-lhe explicações, por gentileza... Negou-mas – aludindo entanto, por rodeios, a vagas impossibilidades...
Insisti mais convictamente no dia seguinte. Então houve uma grande cena... Arremessou-se sobre um divã – passou as mãos esguias, maquilhadas, pela longa cabeleira... Tinha uma flor ao peito. Arrancou-a, deixando-a cair no tapete... De costas para ele, diante duma janela, eu abafava a custo o meu riso...
Amarfanhou ainda as almofadas de seda, limpou lágrimas que não chorara – e, em gestos femininos de artifício, contou-me o que o levava à sua resolução...
Meu Deus, que motivo inesperado... tão pequenino, semilouco em despautério – e ridículo, ridículo... o último, de resto, que se poderia imaginar...
Fiz-lhe ver, tomando-o nos meus braços – encarando o meu papel agora já inteiramente a sério – como eram insignificantes as suas razões, e inadmissíveis. Concordou comigo. Jurou-me o seu arrependimento. Fomos à livraria comprar os últimos romances...
Encontrei-o à noite no teatro – impecável e risonho, de smoking, e nova flor na lapela: uma grande rosa vermelha...
Tornei-o a encontrar no outro dia. Leu-me o cenário de mais uma peça que ia escrever, e desenvolvera essa manhã. Falou-me dos seus projetos para o verão próximo – entrou no camiseiro a fazer uma encomenda muito complicada. Pediu-me o endereço dum editor francês, para mandar vir um volume que já lera emprestado por mim – só para também o ter na sua biblioteca...
Dois dias mais tarde, suicidava-se com uma bala no coração...
...Foi depois que eu soube que a outros amigos ele anunciara também o seu suicídio – sob o maior segredo – juntando, em confidência, as razões que o forçavam a um tal desespero: mas a cada um de nós contara uma história diversa...
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Seja como for, criaturas assim aureolizam efetuar-se um pouco em mistério – esbatem-se em Asas, ungem-se de Errado...
São, pelo menos, maiores do que eu, a esbracejar – é certo – a minha ânsia, e a permanecer embora, eternamente, na claridade quotidiana, bem limpo de segredos.
Ah! por uma incoerência, por um medo de sacrilégio, talvez, em face da obra que deveria executar – sou todo ceticismo abandonado, desilusão de esforço, marasmo de renúncia...
E desta maneira, se alguém estranha a minha vida desigual, vazia mas tão diferente – não me contenho que não grite logo a verdade: se naquela noite parti de súbito, foi porque me quis deitar mais cedo – não encerram cartas de amor os meus sobrescritos prateados – se desapareço durante longos períodos, é só por minha casa, ou, quando muito, a ler e a escrever por cafés doutro bairro...
Num misticismo vão, numa agonia despeitada de me dar – sou eu próprio que logo arremesso para longe o mistério falso que em mim, sem segredo, poderia entretanto existir aos olhos dos outros... como se os mistérios não fossem sempre falsidades...
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Sim, sim, ó meus amigos esquecidos doutrora: tu, pálido e longo, dos avós de França – e tu, da cabeleira revolta e das unhas pintadas – como sou mais vil, mais sem alma, mais sem nervos... náusea de mim próprio, irrisão de mim próprio, esfinge de papelão... E como sinto a vossa nostalgia entanto, e o vosso orgulho – ó reis loucos que morrestes ao luar, para lagoas azuis, talvez... entre enredos incertos...

CAPÍTULO 8
16 novembro 1908.
Meu Deus... meu Deus... Como hei de suportar esta luz sem fim -inevitável  e obcecante...
Ultrapassei-me em tédio. Tudo se esvaziou à minha volta...
Penduraram-me os nervos numa escápula de ferro; ataram-mos numa réstia seca...
Tenho medo de mim, de triste que estou...
Passeio nas ruas, solitário – e o meu olhar, o meu próprio olhar, me fustiga...
Em vão busco ainda acompanhar-me de fantasmas...
Tudo vive esta vida ao meu redor...
Se ao menos existissem outras... Sei lá, vidas instáveis, vidas-aromas – organismos fluidos que se pudessem condensar, solidificar, e de novo evaporar...
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22 novembro.
Não me engano. Deu-se ultimamente uma modificação na minha Alma. Já não a sinto da mesma forma. Divergiu em hélice... E os meus sentidos giram como rodas de cor – tômbolas de feira na minha febre...
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Devaneios... devaneios...
Sempre em face de mim a realidade cruel: a folha branca onde escrevo – a vontade consciente que me faz escrever...
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CAPÍTULO 9
Fevereiro 1909.
Enfim! Enfim! O triunfo – a Ouro o triunfo!
Como fazia mal em desesperar!
Vibro hoje apoteoses, e tudo se abateu perante o Milagre!
Cerraram-se aos meus olhos redemoinhos de Asa, em pedrarias e estrelas!
Houve fogos de artifício de aromas.
– Que vale o resto se o quebranto me estilizou, insondável em neblina?
Não sei o que se vai seguir – o que vai ser de mim. Mas seja o meu destino qual for, terei vivido beleza – beleza enclavinhadamente a sombrio... Projetei Mistério. Insinuei-me em Iris. Venci!
– Acaso posso ver o sangue?
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Foi este o meu triunfo. Quero fixá-lo poucas horas volvidas, para mais tarde o percorrer melhor.
Na minha vagabundagem expectante, sempre entre fanadas amarguras, ocos esforços – bocejando luz e absorção – vim dar naturalmente à Costa Azul por este inverno rigoroso.
E uma noite do Carnaval de Nice, não sei porquê nem como, achei-me no baile do Cassino.
Foi-me propício o ambiente. Em ruídos dissonantes, zebravam-se mil cores à minha volta – cintilações de festa que me parecia estranho o meu espírito, aqui, sentir de lisonja.
E no meio da multidão bigarrada lembrou-me a frase volátil que, a um meu companheiro querido, ouvira certa noite num café de Paris:
– Ah! os bailes de máscaras maravilhosos...
Um baile de máscaras do Império, na grande Opera... Mas se eu estivesse lá – meu amigo, se eu estivesse lá – seriam minhas amantes todas as mulheres que me rodeassem: porque todas viriam de máscara!
Os meus olhos então resvalaram mais sensíveis ao Segredo que me envolvia – segredo banalizado, sem dúvida, mas ainda assim fugitivo.
Era perturbador e belo, com efeito...
Tanta seda!
E abandonei-me ao tumulto – ao confete e às serpentinas...
"Esquisita coisa" – breve comecei notando. “Não bebera decerto nenhum álcool, nenhum narcótico. Os meus sentidos entanto vibravam em confusa dispersão: um esvaecimento acre, mas sutil, muito suave, delicioso – em transparência abatida.”
Caminhei embaralhado até que, de súbito, numa sensação oscilatória, as luzes divergiram em torno dos meus olhos latejantes.
Ao mesmo tempo alguém me tomou o braço, murmurando a despertar-me do meu torpor:
– Eu sou talvez a Princesa velada...
Não sei bem o que se seguiu. Só após alguns momentos pude ver a mulher esplêndida que me tomara o braço. Alta, escultural, inigualável – vestindo um estranho disfarce: o costume, por certo, dos pajens de algum país distante e azul de conto de fadas.
Encerrava-lhe o tronco um corpete de brocado de ouro, por onde assomava em perniciosa audácia o bico petulante dum seio moreno.
Cingia-lhe as pernas, quase nuas, um “maillot” violeta, imponderável.
Um gorro de cetim escarlate sobre os cabelos torrenciais, com uma pluma desconhecida, de ave mágica – ofuscante e multicolor.
À cintura, um cinto negro de couro lavrado, misterioso, donde, na sua bainha, pendia um estreito punhal.
Um “loup” de seda verde a ocultar-lhe o rosto...
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Não sei bem o que se passou nos primeiros minutos – repito. O meu torpor ia pouco a pouco evaporando-se – mas a escoar-se arrepiadamente, toldando-me mais do que nunca os sentidos.
A minha lucidez só regressou – e uma lucidez muito relativa ainda –quando os dois, no bufete, bebíamos champanhe...
Numa inquietação arraiada, os meus olhos tinham-se fixado agora no punhal. Mas a desconhecida, seguindo o meu olhar, logo o tirou da sua bainha de prata e mo estendeu para que eu perdesse o medo.
Tomei-o nas minhas mãos vacilantes, num sentimento heráldico.
Era uma arma terrível e uma joia solene. Pedrarias secretas se incrustavam nos copos, deslumbrantemente, em cintilações desvairadas, –brilhos remotos de densas pompas; cores infinitas... A lâmina cruel de aço, estreita e curta, muito acerada – e, sobre ela, estranhamente gravados, os caracteres surpreendentes dum alfabeto perdido...
Examinei a joia, emudecido. Sombreou-se-me o rosto. Esfriaram-me os dedos... Mas, a sorrir, a estrangeira contava:
– É uma joia de família... preciosa, emblemática, antiquíssima... com uma lenda medonha, espessa... de maldição eterna... Talvez um dia lha conte...
Foi como se me partissem os dedos com um martelo de gelo. Deixei cair o punhal... Ela apanhou-o no mesmo instante, sem medo, a rir muito... Depois, mandou-me encher mais uma vez a sua taça – enquanto, bem tranquila, sempre a rir, embainhava de novo a arma estrídula...
Saímos do bufete. Amorosamente, encostava-se a mim – em verdade o seu corpo enroscara-se no meu. Tinham-se enlaçado as nossas mãos – e um momento houve em que, ao ajeitar o corpete áureo, fizera surgir mais livremente a ponta maquilada do outro seio.
Como nunca, se me acentuava agora um estranho calafrio – um calafrio de sombra, em singularidade me parecia.
A delírios, revendo a minha glória daquela mulher de olvido, admirável, a pendurar-se-me dos braços – todo o meu receio era do fim seguramente banal da aventura. No entretanto nunca foram banais os beijos suntuosos. E eu caminhava bêbado de alegria, automaticamente, fora do espaço, sem proferir uma palavra...
Ah, mas decerto a minha companheira tomara já uma resolução.
Sempre pelo meu braço, dirigiu-se ao vestiário a pedir os seus abafos –um manto de peles riquíssimas.
Eu tremia agora de pavor, sem coragem para lhe dizer a frase inevitável sobre a nossa noite...
Ela não se admirou nunca, entanto, do meu silêncio – e pergunto a mim próprio, ainda, como é que de súbito me achei subindo para a “limusine” que, sem dúvida, a esperava...
O veículo arrancou, marchou muito rápido. Apenas então se me volveu um pouco de sangue-frio.
Fortalecera-se o meu triunfo: o enigma continuava. E o meu pavor divergiu: “Seria com efeito tudo aquilo um enigma – ou nada mais do que uma aventura interessante, rara, inesperada; contudo bem natural?...” Ah! se enfim eu estivesse na posse dum Segredo...
Até que, de brusco, decidindo-me, embora fosse desmoronar-me numa desilusão, provoquei eu mesmo, indiretamente, uma resposta explicativa.
A minha companheira esquecida – a rir muito, a entrelaçar-me os dedos, jurou-me que não tivesse receio, que não havia perigo nem ladrões mascarados... que me levava apenas para sua casa, o seu hotel – acrescentando:
– Lá ninguém sabe que eu sou talvez a Princesa velada... Não lhes dei o meu nome... Dei um nome falso... A bem dizer não dei nome algum... Nem me viram nunca, quase...
Senti na verdade deslocarem-se planos multicolores à minha volta: o Mistério prosseguia portanto, e não era eu que o criava. Ao contrário: eu buscara até aclará-lo. O triunfo era certo e Ouro.
Assim abstraí da hora, decidido a entregar-me sem consciência ao quebranto, entrecerrando os olhos para menos ver ainda.
Simultaneamente, sem me esforçar, sem me lembrar sequer de a sugerir – regressou-me anestesiadora e tênue, deliciosa como nunca, a dispersão que referi há pouco e me dimanara antes de A ter achado – em arrepios violeta, agora.
(Particularidade curiosa que só depois observei: dessa difusão entorpecedora, muito do fundo, ressumava um pavor oculto em insinuações magentas).
Pude ainda ver que, vertiginoso, desde o Cassino, o automóvel se dirigiu pelo Boulevard Mac-Mahon, – seguindo depois pelo Boulevard du Pont-Vieux até à Praça Garibaldi. Mas, após chegarmos a esta Praça – onde nos detivemos um instante para o chauffeur acender uma lanterna que se apagara – não me é possível dizer se tomamos pelas ruas Cassini, da República, ou por outras quaisquer.
A partir daí, com efeito, transmigrei-me a um mundo de sonhos. Volveu-se-me relativa a realidade – todos os meus pensamentos e os meus gestos foram meras projeções de movimentos subtis executados noutros planos. Adormeci em jade. Eclipsou-se qualquer coisa de mim: o luar, talvez, sobre o meu mundo interior. Fui apenas sensível ao Mistério que me acompanhava...
Ao fim de não sei quanto tempo, o automóvel estacou em face dum portão de ferro. Descemos. A desconhecida abriu-o com uma pequena chave que brilhou na noite...
Entramos num jardim rumorejante. Ela dera qualquer ordem ao chauffeur que, tomando o guiador, desaparecera... A noite estava muito escura. Ao fundo do jardim, no entanto, eu pressenti a sombra dum grande edifício...
Tomou-me pelo braço, mais uma vez, a encantadora – e seguimos por uma rua lateral até chegarmos defronte dum pavilhão isolado, à esquerda do jardim...
De novo puxou por uma chave brilhante.
Abriu uma porta. Subimos alguns degraus...
Era um interior delicioso – espécie de atelier adornado em requinte.
Uma   atmosfera  azul se cendrava aí iluminada em estranhas divergências por lâmpadas elétricas foscas – macia de perfumes, toda de seda.
Cortinados roçagantes – tapetes profundos, de luas roxas.
Móveis orientais, indecisos – e, ao meio, um leito baixo de pelúcias, insondável, secreto.
Mas, em todo aquele ambiente de morfina, foi isto que mais me impressionou: a luz não era imóvel – ondulava no ar, bem distinta, em listas semiovais, desabrochando contínuas, a um ritmo iriado, de escoamentos tênues.
Mal chegamos, logo a minha ignorada arremessou o seu manto sobre uma poltrona espessa. E, em face dum grande espelho, logo também se despojou do seu costume. Ficou toda nua. No rosto sempre a máscara verde...
Quando o seu corpo surgiu liberto e esplêndido, imóvel como uma estátua, a meio do aposento – foi muito frisante – a luz modificou-se. Desabrocharam mais arqueadas as listas, em impulsos mais rápidos e esguios – influência por certo da auréola de platina que, baçamente, o seu corpo macerado nimbava em redor...
Como se arroxeou então o meu Orgulho, mosqueando-se a esmeraldas! Toda essa carne de Segredo ia ser minha! E um espasmo de alívio se me evolou por vê-la conservar a máscara – íntegro assim, em ruivo, o Enigma!...
Rolamos doidamente pelo grande leito. Sob o meu corpo rangeu delírios a sua carne de Apoteose e Alma...
Ah! mas de súbito os meus olhos fixaram-se em qualquer coisa mais resplandecente que brilhava perto, sobre o mármore rosa do fogão: o punhal que, ao desnudar-se, ela deixara ali, em descuido.
Continuei a mordê-la...
Possessos, os meus olhos não se despregavam da outra maravilha!
Nessa atmosfera de seda, penumbrosamente movediça, as cintilações da arma lendária eram dum sortilégio infernal, mágico de rutilante e temível.
Não devia ser com efeito luz somente, luz multicolor, o que as gemas esquecidas deslumbravam – e eu só posso exprimir assim, por fantasia: das pedras de artifício, emanava primeiro, em verdade, uma cintilação luminosa, relampejante. Mas, bruscamente, a meio da sua trajetória, essa cintilação condensava-se, na penumbra azul, em um núcleo hialino, donde, por sua vez, saía então um halo de reverberações coloridas, arco-iriadas, a divergir em estranhos rastros de relevo. Era certo – eis o mais bizarro, e inexplicável: essa luz, ainda que fluida, tinha relevo: em relevos caprichosos e bem nítidos, palpáveis, nos surgiam o seu brilho e as suas cores.
Toda a minha vida, em suma, se focava agora no punhal. Estridentemente, não sei porquê, chegara-me a certeza granate de que era ele enfim, mais do que qualquer outra coisa, o Mistério em que há tanto me sonhava envolver.
Deste modo, uma impressão de feitiços minuto a minuto se me vincava, alucinadora e coleante...
Zurziram-se planos engolfados a meus ouvidos, aromas silvaram a transtornar se em músicas de dissonância, até que, a uma cintilação mais fantástica, me pareceu secretamente que todo o meu mundo interior se paisagenava. As crepitações dos brilhos ofuscantes invadiam, sim, a minha Alma: esbraseando sol sobre as minhas ânsias – toldando chuva no meu tédio, alastrado em planície, inutilmente – aluarando os cemitérios das minhas nostalgias – e, maior singularidade, alargando uma Praça enorme, de arquiteturas colossais (mas com um grande poço ao centro, em vez duma estátua de herói) em volta de todo o meu entusiasmo. E previ no mesmo instante, seguramente previ, que a minha vida de alma, futura, ia existir nessa Praça – fechada, mergulhada talvez para sempre no grande poço central.
Depois, a todas essas ideias mágicas – nessa hora, pelo menos, tão reais – haviam-se misturado sempre os meus beijos nos seios esmaltados da doida, por toda a sua carne perdida, convulsa de miragens em ondas de neblina e jaspe!...
Seguiu se um momento em que os meus olhos lograram divergir do punhal na ideia perfurante de que tudo caía em meu redor, no espaço, insondavelmente – que só eu não caía. Pareceu-me mesmo que o próprio corpo encantado que vibrava sob o meu se ia abismando em vertigens. Melhor: prolongando-se em espessura, pois, embora fosse caindo, eu, imóvel, sentia-o sempre debaixo de mim.
Mas, breve, os meus olhos pararam de novo sobre a arma... Como nunca o mundo inteiro se me centralizou no punhal... Pairava todo um sonho de Ópio...
... Até que, por último, um espasmo recamado em insinuações astrais me soçobrou... Mas, ao esvair me, ah! não foi a carne suntuosa que eu possui, opulento – foram os reflexos imperiais da joia maldita!...
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De súbito, desenvencilhei-me... Precipitei-me sobre o punhal... Era tempo! O Mistério ia desmoronar-se... Ela erguia-se já... Tiraria a máscara, por certo... eu próprio lha arrancaria... E vê-la... saber quem ela era... ver os seus olhos... deixá-la... Não! Não!... Impossível.
De resto, o ambiente, após os êxtases, por força me havia de surgir em toda a sua realidade...
Apenas durante os espasmos lograra imaginá-lo talvez – purpureamente.
Eu ia acordar... Despertava do Ouro... Ia perder todo o Milagre...
Tive medo. Receei pelo meu orgulho... Que seria de mim se não tivesse o gênio de fixar – leonino! – aquele Segredo  escultural, de me enroscar nele para sempre, de o estilizar em mim próprio para sempre o viver?...
Foi uma ânsia de estertores! Mas venci!...
Empunhei a arma rudemente... e cambaleando, num redemoinho, numa vertigem, enterrei-lha toda no coração...
Não houve um gemido. Apenas os seios oscilaram...
Que hora grandiosa!
Pareceu-me que chocara em verdade contra o destino, e o meu braço – só o meu braço – o fizera deter!...
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Sim! Sim! triunfara! Até que realisara a minha obra – projetara bruma, envolvera névoa, abobadara Sombra... E, a meu redor, a realidade desmoronava-se em gomos negros, cascalhantes... Uparam-se tronos de marfim a cercar-me... desfilaram  cavalgadas  de  estrelas... diademas rolaram em catadupas...
Ah! o momento infinito!...
Não era tudo, entanto. Faltava ainda alguma coisa para a obra ser completa... E, num ímpeto, de olhos cerrados, por baixo do “loup” de seda verde, lacerei furiosamente o rosto dessa mulher que nunca vira: para ninguém mais a poder ver – nem eu mesmo!
Olhei a joia. Milagre. A ponta limpa de sangue. Só as letras da inscrição enigmática se tinham colorido de vermelho, perpetuamente. E as pedras do cabo do punhal haviam cessado o seu desvairo – enfim tranquilas de luz.
Arremessei a arma longe. Fugi...
Guiei-me, sonâmbulo, entre as ruas do parque. Saí o denso portão de ferro, cuja chave ficara, decerto, na fechadura... Vagueei não sei quantas horas por ruas desconhecidas...
Quando a lucidez me voltou – e me regressaram as noções do espaço e do tempo – achava-me de novo, não sei como, na Praça Garibaldi...
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Nessa mesma manhã tomei um expresso na estação de Ville-Franche. Ninguém me impediu o passo...
Ignoro o que deixo atrás  de mim... um cadáver, pelo menos... Ignoro o que vai suceder... se já correrão a perseguir-me...
Mas que vale tudo mais em frente da obra a Diamantes-mármore que ascendi?...
Sutilizei-me em Astro...   vibro  de Sortilégios... Finquei-me em Saudade e Beleza...
Eu próprio sou Mistério. Tremo de pavor, esvaecidamente. Translucidez afilada!
É tudo sombra – Sombra, enfim, à minha volta!
O triunfo maior: o Triunfo!...
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CAPÍTULO 10
3 fevereiro 1911.
Tanto tempo volvido... E retomo as minhas notas para frisar a minha glória.
Sim, foi completo o Triunfo!
Como hoje vivo Outro – indeciso, longínquo; insensível a tudo quanto me contempla. (Não sou eu que olho as coisas, já – antes elas me olharão, quem sabe, agora...)
Talhei-me em Exílio. Deixei de ser Eu-mesmo em relação ao que me envolve. O Mistério ogivou-me longos aquedutos – e os ecos, entre as arcarias, não me deixam, por afago, ouvir a vida. À minha cerca existo hoje só Eu – vitória sem resgate!
Para mim não há senão “antes” e “depois” da Maravilha. De “antes” não me recordo. Ninguém se lembra do que viveu primeiro que nascesse. Ora, por essa noite tigrada, no minuto a safiras em que lhe cravei o punhal – acordei (foi certo) em outro mundo, nasci outra vida: uma vida delgada onde é perpetuamente a mesma estação do ano, onde os instantes existem parados pelo mesmo tempo fora, – um tempo diverso, inexprimível, sem direção: que não é espaço ou movimento, mas qualquer coisa como um ritmo fluido, constante por transparência vibrátil.
Tudo se esbateu aos meus sentidos, se nimbou de Sutil. Tudo hoje apenas adivinho. Eis como venço seguir olvidado – preso por fios de sombra ao meu quebranto.
Não ouço os meus passos; mal vejo os meus gestos.
Irrealizei-me a crepúsculo – emudeci a toda a luz.
Vou sempre como através de ruínas.
Durmo torres e fanatismo em Levantes intermitentes.
Saibo-me a um descobridor de mundos que não existiram nunca.
Se falo alto, sozinho, a minha voz ressoa coada por damascos e pelúcias – outras vezes, mais longínqua, através de mármores arraiados, cor de rosa...
Dissolveram-se-me no sangue a Beleza e o Mistério.
Ah! tenho bem nítida a impressão de que, no momento do crime, despojei qualquer coisa de mim que teria ruído aos pés do cadáver – e assim me libertei, me individuei a Esfinges...
……...……………………………………………
10 fevereiro.
Que pompa ao meu redor!
Sou hierarquias em Bizâncio...
Todo eu pairo Segredo.
Quem era ela – quem era o seu rosto?...
Fosse como fosse, essa mulher tinha uma vida, portanto – uma existência bem sua. Muitos a viram, ao menos...
E desapareceu – sumiu-se por alçapões teatrais.
Choraram-na os seus amantes, sem dúvida – e os seus parentes lembraram-se talvez da sua morte.
A sua morte existe – mas só eu posso jura-lo!
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Procuraram-me bem após o crime, decerto.
Embalde... Atrás de mim não houve vestígios.
Passara como uma lenda.
Estranha segurança: nunca receei que me descobrissem. Nem pude nunca recear que o meu crime fosse algum dia punido. Foi como se nunca o tivesse praticado.
Apenas não tornei a ler jornais.
Entanto uma vez – não sei por que cidade – os meus olhos fixaram-se de súbito num diário estrangeiro, desdobrado, que um transeunte lia.
Em grandes letras, vi ainda, sem querer:
“O Mistério da Vila das...”
No mesmo instante o desconhecido voltou a página...
– Seria aquele o meu Segredo?...
De resto, as letras não me zigue-zaguearam a fogo...

20 fevereiro.
Nimba-me também, certas manhãs astrais, uma ternura de camélias: a saudade emersa da carne uma só noite beijada – e as macerações frenéticas daqueles seios agressivos...
……………………………………………
Minha louca, como devias ser bela – duma formosura nova, doutras delicadezas...
Matei-te. Abjurei de ti sem te conhecer... Vês tu: foi esta a maior prova de amor!

28 fevereiro.
Caminho...
Oscilações difusas, de cores brandas, aquosas, ascendem em movimentos de hélice, a refrescar o ar à minha volta – indícios multicolores soçobram – enroscam-se listas de aromas – vértices hialinos, ao longe, divergem prismaticamente – esgotam-se sons perdidos de azul, num retinir cendrado – volteiam sensações de filigranas – alastram-se ecos de marfim...
Tal é a paisagem de sutileza, nostálgica doutros mundos, que me encerra hoje!
Tudo se me toldou a bruxulear. Tudo se me substituiu em Imponderável.
Eu sei, eu sei. É que, verdadeiramente, a partir da Hora-imperial, a minha existência tornou-se sensível a outras dimensões. E é nelas que prossegue hoje a minha vida estática...
Luar de embandeiramentos!

CAPÍTULO 11
Dezembro 1912.
Pela primeira vez, depois do Milagre, eu vejo um pouco o cenário real à minha volta. Decerto. É que me encontro em Veneza – sensibilidade isócrona à minha Alma atual.
Não me paralisou o Triunfo. Desde que me descobri em Sombra, ao contrário, mais do que nunca vagueio – para mais esquiva ser a minha incerteza; mais flexível e ondulante.
Descubro hoje, porém, que melhor valerá fixar-me aqui, para sempre, nesta paisagem-iluminura, transtornada de Mistério.
Por incerta que me for a agitação, nada de mais duvidoso me enganará do que existir nesta cidade azul, projetada em mármore no Tempo – constante, parando clepsídras…
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Veneza!
Ó cidade sagrada da fantasia, capital brocado de interssonho, em mágicas penumbras – íris de crepúsculo, anêmona de antemanhã…
Luz de retrocesso a Ouro morto e bronze, ao entardecer sobre as Praças – salões de Paços riais, mosaicados, dir-se-iam, onde os edifícios, à roda, fossem paredes de esculturas – e as sombras, ondulando, reposteiros suspensos…
Veneza surgiu-me sempre, toda ela, através dum grande vidro polido, em perspectiva, como um panorama de artifício – a iluminações teatrais.
Sou bem outro ao agitar-me na sua atmosfera de Passado amarfanhando rendas – capitosa e esquecida, lendária, arquitectônica…
E nos cais dos palácios, nos cais da cidade – filho louco de Doge, talvez – comando préstitos de emigrantes mortos, em disfarces de pompa…
Tudo ecoa… tudo ecoa em redor… Permaneceram nos espelhos, ali, sorrisos doutrora… o ar cascalha ainda, nesta sala, murmúrios das festas volúveis doutras épocas…
Estilizaram-se danças em cores, pelos lambrises…
Ofuscaram-se máscaras em cinza…
Nos canais, negras, as gôndolas singram de esbelta tradição. E eu não posso acreditar que as movam remos – mas sim as marchas fúnebres dos órgãos da Catedral.
Campanários e cúpulas irrealizam-se ao longe…
Tudo influi encantamento. Até o horizonte é um filtro…
– Veneza! Ó cidade-Princesa adormecida de conto de fadas – incerta de lis, saudosa de miragens, fugidia de inter-lúnio…
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A ti me devo misturar para sempre.
Como te sinto hoje mais tênue e latejante…
Adelgaçou-te o meu segredo – aumentou-te em Oculto…
Rodeio as tuas praças, entro nos teus palácios, ajoelho as tuas Basílicas – e compreendo que sou alguma coisa da tua arquitetura.
Desço escadas de honra – perco-me em galerias…
Confundo me com os teus monumentos, os teus mármores, as tuas douraduras – tuas salas secretas, tuas pontes sinistras.
Ocultamos as mesmas insinuações.
– Quem sabe se eu já fui a tua alma?...

CAPÍTULO 12
23 janeiro 1913.
Ontem, no Florian, não pude evitar um encontro.
De longe a longe, a realidade – é certo – ainda ressuma, inofensiva mas enervante, à minha volta.
Foi um dos meus raros conhecidos – um amigo indiferente de Paris.
De resto, nem procurei velar o meu despeito, enquanto ele me apresentava o seu companheiro – um inglês: Lord Ronald Nevile…
(– Ah... por que me lembrarei deste nome?...)

28 janeiro.
É estranho. Começo, receosamente, a observar uma modificação no meu espírito. Há mais claridade sobre mim. Ouço talvez, de novo, os meus passos. Ter-me-ei ainda iludido?...

2 fevereiro.
Seguem-se agora, inevitavelmente, todos os dias, encontros com o meu amigo e lord Ronald.
Devo tranquilizar-me. São decerto, apenas, estas horas oleosas de verdade que me alteram o espírito.
Procuro fugir. Mas em vão. A cidade é pequena.
E, a qualquer parte onde vá, encontro-os sempre. Pelo menos encontro sempre o Lord…

3 fevereiro.
É muito interessante e bizarra a figura do inglês.
O seu perfil esfuma-se hirto – duma distinção aristocrática e concisa.
É alto e esguio. A pele muito clara, aloirada nas mãos longas – volve-se lhe no rosto, maceradamente, duma palidez sonâmbula. Os olhos intensos, dum azul cruel, fulguram-lhe em brilhos tão profundos que parecem não existir neles próprios – mas atrás deles, coando-se como por lentes através das pupilas.
Rasga-se-lhe delgada a boca equívoca, em crispações femininas – divergindo em triângulo as comissuras dos lábios, por sombras agrestes. Os cabelos louros – indecisos em tons de cobre.
Usa inteiramente barbeado o rosto de aridez, e – detalhe sinistro – nas suas faces extensas ravinam-se misteriosos sulcos verdes.
O mais singular, entanto, são os seus gestos, todos a linhas quebradas; duros e frios. Mas realmente frios – fisicamente frios. Sempre que perto de mim, o Lord esboçou um gesto, mudou uma atitude, eu senti com efeito uma sensação de frio – um frio ácido, crispante, silencioso
Não é menos extraordinária a sua voz. Uma voz cristalina e moça – mas que se diria vibrar abafadamente, entre crepes negros, de seda.
Os seus passos são de madrepérola.
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5 fevereiro.
A claridade aumentou em minha volta.
Dia a dia sinto o Milagre mais longe.
Vai-se pouco a pouco dissipando o cenário de artifício que me toldava de Impérios e Vago. Já se não zurzem em meu redor outros planos resvalados, transpondo a Certeza.
A minha vida parece regressar às antigas dimensões.
Oh! mas é necessário ter força, não deixar diluir o quebranto!
Tudo isto é mera influência do contato com os estrangeiros evidentes. Não pode deixar de ser assim!
Urge pôr termo aos nossos encontros.

8 fevereiro.
Baldados esforços!
Fecho-me em casa, decidido. Juro não sair… E, de súbito, não sei para quê, caminho nas ruas,
– à toa, bocejando…
Sei bem o fim que me espera. Não deixo nunca de o encontrar…

9 fevereiro.
Mas será propriamente luz, luz real o que hoje me cerca? Não será antes, meu Deus, qualquer coisa mais perigosa que não saberei ainda exprimir – qualquer coisa ofuscante, em densidades remotas?...

12 fevereiro.
Seja como for, não me esqueço do Lord. Inquieta-me sobretudo este fato irrisório: ao lembrar-me do seu rosto, ele surge-me sempre de uma palidez adormecida – e ravinado por estranhos sulcos verdes, inexplicáveis. Pois bem: esses sulcos não existem! Isto é: embalde, defronte dele, procuro descobri-los nas suas faces. Nunca os vi realmente. Mas não me é possível recordar o seu rosto, sem esses sulcos verdes – fantásticos…
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16 fevereiro.

Enfim!
Posso de novo encerrar-me no meu Mistério – volver à Maravilha.
O meu amigo e o Lord partiram hoje.
Acompanhei-os à estação!

CAPÍTULO 13
22 fevereiro.
Um sortilégio roxo, em verdade, me entrelaçou. Esquivas macerações a tons de Ouro vacilante me dimanam e enfeitiçam em Alma e corpo. Vivo só em metade de mim – a mão brônzea, incrível, dum gigante, se abateu, cerrada, sobre a minha nuca. E, atordoado, prossigo em direções assustadoras, complexas, pastosas.
Uma força estranha, dobrada, se enclavinhou no meu espírito, e, subconscientemente, ela me dirige. Desenrola-se um fio negro, perto de mim, que me guia – imponderável mas fatal.
Pois como doutro modo explicar o desconcertante erro?...
Eu decidira, bem convicto decidira, permanecer largo tempo em Veneza a penetrar-me de indeciso e marchetado – e, desta forma, regressar, íntimo, ao meu cioso alheamento-Estátua.
Um grito de expansão soltara, por sinal, como doido, ao ver desaparecer o comboio que levava para longe esse desconhecido, banal porventura, mas que a minha vibratilidade, ainda assim, pressentira em secreto.
Livre, sozinho, de novo ia permanecer, sem dúvida, inteiro em mim – absoluto em Tênue, glorioso, a oscilar a minha soberba.
Não obstante, poucos dias depois, certa manhã, – sem pensar, sem me ver (foi exato: sem me ver) fiz, creio, as minhas malas, corri à estação, saltei sobre um expresso… ignorando para onde me dirigia, embora eu próprio tivesse comprado o bilhete…
No entanto o mais estrambótico, o mais pavoroso, era que apesar de tudo isto ser assim, assim mesmo, eu sabia – ah! no fundo demasiadamente sabia! – para aonde viajava, porque viajava, e o que me fizera partir de súbito…
Na estação de Nice, com efeito, desci. No “trottoir” alguém me esperava… O Lord, realmente, correu para mim – tomou-me o braço, sem surpresa, como se já soubesse que eu devia chegar naquele comboio. Levou-me para o seu hotel…
Eu não escrevera a ninguém a minha partida de Itália.

CAPÍTULO 14
27 fevereiro.
Mais do que nunca me sinto resvalar entre véus cinzentos. O quebranto persiste, afinal – mas é outro, rebelde. Mais de esfinges, talvez – agressivo porém; nunca afagador.
Os dias seguem, e vivo na impressão bizarra de que eles é que são eu – e eu o tempo por onde eles decorrem.
Acendem-se luzes amarelas, triangulares, picarescas, em face dos meus olhos que, ao longe, projetam, implacavelmente, dois pontos dum vermelho sujo, enfadonho...
Visões de molduras – molduras só; ovais, sem retratos – bailam outras vezes defronte de mim: sobretudo nas horas trêmulas de antes de adormecer.
Volveu-se-me, de resto, uma doença física dormir. Nunca me ciliciaram pesadelos de remorso. Durmo, ao contrário, densamente – e é esse mesmo peso do meu sono que me aflige e amarfanha. Só ao fim da tarde me sinto curado do meu despertar.

1 março.
Vejo-me já, nestes poucos dias, num grande círculo de relações, graças ao meu extraordinário companheiro.
O Lord é recebido em toda a parte – com a maior consideração. No entretanto afigura-se-me, não sei porquê – com uma consideração despeitada.
Gasta dinheiro a rodos. Todos o adulam; todos o conhecem. Pelo menos, à sua passagem, todos o olham – apontam-no, falam baixo...
Só ele parece não conhecer ninguém – mesmo as pessoas que me apresenta.
Acompanho-o muito. Fiquei no seu hotel.
Logo de manhã me vem buscar ao meu quarto... Comemos à mesma mesa. Passamos os dias juntos. A ponto que não tenho um instante livre. Chega-me a enfastiar, por vezes, a sua presença contínua.
Aliás, não se pode ser mais amável. Parece considerar-me muito. Interroga-me sobre as minhas obras. Conversa sempre. Mas há súbitas lacunas nas suas frases.
Não me deixa pagar nenhuma despesa.
Chegam-me a vexar as suas atenções.
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O centro da nossa vida mundana é em casa da Marquesa de Santo Stefano que habita uma luxuosa “vila” de Cimiez. Todas as noites recebe, em suntuosidade. É aí que tenho feito muitos conhecimentos. Fato estranho: quem sempre me apresenta é o Lord.
A Marquesa de Santo Stefano é uma mulher formosíssima. Ouvi dizer que o seu marido está paralitico e nunca sai do seu castelo dos Abbruzzos. Não sei bem ao certo. Mas seja como for, ainda não vi o seu marido.
A melhor sociedade frequenta os seus salões.

2 março.
Nos jardins da “vila” da Marquesa não há nenhum pavilhão.

4 março
Sigo nas salas douradas. Os pares volteiam em mil cores. Lembram rosas as valsas. E, no entanto, mais do que nunca se me acentua um calafrio de receio. Tremo todo... Rangem-me os dentes... Faço os últimos esforços para que se não veja a minha inquietação...
Atravesso outros salões... Tenho a ideia que pontes de ouro se abrem à minha passagem...
Listas de cristal fustigam-se vertiginosas... E eu sinto-me esse cristal prestes a estalar...
Ziguezagueia-me o cérebro. Vou-me encostando às paredes para não cair...
O Lord não chegou ainda. Combinara encontrar-se comigo, à noite, em casa da Marquesa...
Receio o quê? A sua chegada? É possível. Parece-me contudo que, se tremo, é mais pela sua ausência.
– Onde estará ele agora? Que estará a fazer agora?...
E este pensamento tortura-me como se, longe de mim, me pudesse fazer mal – me pudesse fazer pior...
...Chega finalmente. Sossego um pouco. Vem mais pálido. É nova a cor dos seus cabelos! Os seus passos divergem noutros brilhos...

6 março.
Como posso sofrer tanto...
E por que, meu Deus, por quê?...
Que terá a minha vida com a desse estranho? Nada me prende a ele. Ninguém me prende.
Sou livre, perfeitamente livre. Se quiser partir amanhã, hoje mesmo – posso partir. Ninguém mo impede. E é por isso talvez que permaneço...
Mas não sei em verdade o que me atrai a esse homem. É terrível: não o esqueço um minuto. Quando estou diante dele, mesmo assim, não me logro esquecer de que estou diante dele. Junto de qualquer pessoa, nós olvidamos a sua presença – a sua presença é natural. Pois o mesmo me não sucede em face do Lord – como se só por um prodígio fosse possível estarmos os dois frente a frente...
Cada vez duvido mais para onde caminho.

Chega-me uma sensação de fim, a prata velha e roxo.
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8 março.
— Quem é aquele homem? ah! quem é aquele homem?...
Positivamente, nada sei.
Desejo investigá-lo a todo o custo.
Mas não ouso, como seria já natural, na nossa intimidade, fazer-lhe uma pergunta direta.
Até aqui, a minha única tentativa foi junto do amigo de Paris que nos apresentou. Fiquei petrificado. Respondeu-me só, ligeiramente, que o conhecera por acaso – durante a viagem, de Roma a Veneza, que tinham feito na mesma cabine...

9 março.
Ainda procuro às vezes persuadir-me de que tudo isto é bem simples, bem real – que não existirá mistério algum nesse personagem – entretanto sinistro.
Ai, dura pouco a ilusão...
E começo a observar que, nas suas frases de quando em quando interrompidas, aparecem agora também, a intervalá-las, palavras incoerentes, avulsas – palavras hirtas, mortas – que saltam, como escórias, na frase que vai pronunciando: raspadas, caindo secamente...
Depois, para aumentar o meu pasmo e o meu medo, as minhas dúvidas arrepiantes, eis ao que esta noite assisti:
Jantamos em casa da Marquesa de Santo Stefano. Esta apresentou-nos alguns convidados que desconhecíamos.
E eu ouvi, distintamente ouvi, a Marquesa, fazendo as apresentações, dizer.
– Lord Roland Neville.
O meu amigo nunca protestou.
Roland e Ronald confundem-se, em verdade, na pronúncia inglesa. Entanto, mesmo assim, não se me afigura natural o erro da estrangeira.
Pareceria bem fácil dirigir-me ao meu amigo, a esclarecer o caso. Tentei-o ainda. Em vão... Ao preparar-me para lhe falar do engano, sentia-me tremer todo... e um selo de fogo me cerrava os lábios...
De forma que, hoje, nem mesmo estou certo do seu nome.
– Para onde vou, meu Deus, para onde vou?...

11 março.
Ontem, depois do almoço, estávamos ambos sozinhos no terraço do Hotel.
Bruscamente o Lord pôs-se-me a falar de sensações de mistério e de medo... a perguntar-me as que eu já fremira...
A conversa deslizou, bem plausível, neste campo – até que, de súbito, destrambelhadamente, às gargalhadas, concluiu assim:
– Eh! meu amigo... eh! eh!... por ventura... meu amigo... já experimentou tamanha glória?...
Dormir num grande palácio deserto... Às escuras... e, antes de adormecer, à força de concentração... só com a sua vontade... ah! ah!... povoar de figuras as casas vazias... na treva... figuras de medo... kesskrrssssss... mutiladas...guturais... farfalhantes... É belo! É belo!... Mas não o queira nunca... Tem um perigo... Que, reais em demasia, as crisálidas se precipitem a cercá-lo... e o esmaguem... esverdinhadas... contorcidas... contorcidas... rrrrrrr...
Olhei-o atônito. Havia uma auréola peganhenta em seu redor...
Depois, não sei quantas horas ficamos os dois ali, silenciosos – face a face...
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CAPÍTULO 14
14 março.
Cada noite se me frisa melhor a sensação de “fim” – por inflexões arruivadas, agora. E creio mesmo, em bizarria, que não sou já, sequer, eu próprio, mas apenas o embalsamamento de mim próprio.
Giro entre fluidos policromos.

Todo eu sou naufrágios embandeirados a negro. Contudo, a meio destes feitiços e do meu pavor dia a dia mais elétrico, esvai-se um iriado capricho a esbater-me,   dolorosa – porém transparentemente, aciduladamente, frescamente...
Ah! mas ouvi-lo hoje, não me perturba só – martiriza-me também: porque a sua voz começa a ter sobre os meus nervos a mesma influência que o raspar da lixa em ferro – um calafrio ósseo semelhante aos que nos produzem os ácidos fortes e os líquidos gelados passando-nos pelos dentes...
Outra singularidade:
As nossas conversas são todas em francês. De resto, eu mal conheço a sua língua. Vê-se bem – é claro – que o Lord não é francês. Mas não tem o acento inglês. De forma nenhuma. Nem outro acento estrangeiro que eu conheça: espanhol, italiano, russo, alemão, oriental... A verdade é esta: não fala, a bem dizer, com acento algum. Conhece-se que é estrangeiro, mas não pela pronúncia... por outra coisa qualquer: mais velada, perdida...
E nunca o ouvi falar senão francês – mesmo com os seus compatriotas.
A sua voz lembra-me uma sombra.
Com efeito, todo aquele homem me lembra uma sombra...
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CAPÍTULO 16
20 março.
Oh! o medo sepulcral!...
Estou perdido! Agora, sim, não me resta ilusão alguma – estou irremediavelmente perdido.
Foi ontem à noite quando, de súbito, um jato elétrico lhe iluminou o rosto que, pela primeira vez, doido de pavor, não sabendo evitar um grito – observei que o seu queixo se parece frisantemente, numa curva sutil, mansa, inconfundível, com o queixo da morta... a única parte que eu vi do rosto da rapariga mascarada...
Que me vai acontecer, meu Deus, sempre ao lado deste homem – em estilhaços todas as esperanças, hoje, de lhe fugir um dia?...

22 março.
Lembrou-me esta manhã, em confusão, se o meu crime não o teria praticado antes ele...

23 março.
É certo – mais que certo: qualquer coisa de horrível, de alucinante, me encadeia a esse homem. Não sei bem o quê, ainda...
Vivo numa tortura incessante. Eu-próprio sou a minha angústia. E o meu terror, vou encontrá-lo mesmo nos gestos das pessoas que me falam, nos olhos dos transeuntes.
Mas que vitória também! A minha dor enclavinhou-se em Mistério – esculpe-me em desconhecido, alastra-me em destrambelho...
Assim, agora, defronte dos meus olhos, torcem-se picarescamente grandes cabos viscosos, duma matéria arroxeada, em filamentos capilares. E nas minhas horas de maior pavor sinto, com efeito sinto, que vão comboios pequeninos na minha alma, puxados a cordel – e que as minhas entranhas se reduziram a um complexo sistema de rodas de vidro e marfim, pequenos discos multicolores, ponteiros exidados – tudo a girar, vertiginoso, por um inútil movimento de relojoaria...
De quando em quando, por entre as rodas dentadas, ressoam timbres agudos de campainhas elétricas... acendem-se lâmpadas minúsculas...
fecham-se e abrem-se circuitos... e, mais irrisoriamente, ascendem – inesperados, não sei donde – finos repuxos de álcool colorido...
Vou nas ruas, disperso, atônito, conduzindo dentro de mim, em laboração, o ridículo maquinismo – quinquilharia afinal, brinquedo de criança: mas de que eu tenho receio... um receio laivado de riso, sarcasticamente...
E os nervos rangem me todos, como ossos...
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Que hei de lastimar, portanto? O meu Triunfo, seja o que for – embora maldito – é uma certeza.
Tenho o que queria: a Sombra.

27 março.

Cada dia vivo mais em face do Lord. Pois é diante dele que o meu tormento, em todo o caso, diminui – preso dos seus olhos.
Ontem falou-me dos seus domínios da Escócia... um castelo imenso, entre bosques...
E era tão sombrio o tom da sua voz, referindo-se aos seus territórios... Parecia velar-lhe a garganta a sombra – talvez – das árvores seculares das suas florestas...
Escutando-o, lembrou-me, numa recordação visual, o meu Principado sugerido outrora.

29 março.
Mais e mais a bruma me ondula – bruma de tempestade, receando trovões.
Adivinho, inexprimivelmente, ao longe, avançar sobre mim uma sombra – uma grande sombra, aguda, triangular, em vértices repentinos...

30 março.
Voltam as obsessões de molduras – molduras douradas a ouro fosco, onde agora porém se enquadram telas... telas só... telas ainda sem retratos...

1 abril.
Procuro desenvencilhar-me numa última veleidade. Não tanto para fugir da loucura – quem sabe – como para medir melhor a força do meu Mistério.
Mas embalde tento lançar luz. Em tudo isto há pequeninas certezas, reais, insofismáveis – que me confirmam o duvidoso, em maior significação.
Não me engano! não me engano! O Erro e a Sombra existem-Me.
Ao mesmo tempo prevejo que o mais fantástico, o maior, o mais sombrio, ainda me não foi descoberto.
Esperaremos...
Por mim, terminei. Vivo o meu fim.
Somente, quanto durará o meu fim?...

2 abril.
Há vestígios verdes nas telas vazias das molduras douradas.

4 abril.
Sobem-me, em ternura, recordações de infância – um pouco a roçar o meu mundo interior. Durmo menos agitadamente – como as crianças, com a cabeça debaixo dos lençóis.
Mas chegou-me um novo receio: o medo do luar. Amaldiçoo-o sem saber por quê...
6 abril.
Os arrepios que me soçobram juntaram-se todos numa agulha.

8 abril.
Ha duas noites que sonho grandes incêndios em ruínas.

9 abril.
Apareceram retratos desconhecidos nas molduras douradas.
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16 abril.
Enfim – sei tudo!
Ah! por isso eu amaldiçoava o luar...
A verdade foi-me revelada quando os dois conversando, ontem, paramos sob um raio de lua.
Ignoro como é que o adivinhei. Mas, de súbito, o mistério desvendou-se-me numa certeza escarlate, iluminada a jorros – fatal, irredutível.
Também, não podia deixar de ser assim. Aquele homem havia de ter, por força, qualquer relação com o meu segredo!

O LORD É A MORTE DA RAPARIGA MASCARADA.

CAPÍTULO 17
17 abril.
O “fim”, a veludo negro e crepes – consumou-se portanto.
Já não tremo.
Resvalei do meu mundo-interior.
Pararam as rodas e os ponteiros dentro de mim – emudeceram os timbres, apagaram-se as lâmpadas.
Sei o meu caminho irremediável...
Para que lhe tentar fugir?
Os meus passos, de hoje avante, só podem ser os seus passos...
Embrenhei-me definitivamente.
Chego à grande Sombra.
– Mas aonde iremos... aonde?...
Será o último Enigma.
Porque havemos de partir, por força...
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Nas molduras secretas, enfim tranquilas (elas outrora oscilavam sempre) os retratos desconhecidos volveram-se o seu retrato – uniformes, a verde. Era também fatal.

18 abril.

Em todo o caso, que pavor sem nome!...

19 abril.
Devíamos ontem jantar em casa da Marquesa de Santo Stefano.
Porém, à última hora, resolveu que ficássemos no Hotel – e hoje, no Passeio dos Ingleses, todos os nossos conhecidos nos voltaram as costas! Entre eles, o amigo de Paris que nos apresentara.
Mas parece nem o ter notado...
Sigo de abismo em abismo.

20 abril.
Saiu de madrugada.
Estava só no meu quarto, quando um maitre de hotel me veio chamar.
Contou-me que uma senhora estrangeira, numa grande agitação, procurava o PRÍNCIPE – que tinha a maior urgência em lhe falar... Era um caso de vida ou de morte. Se ele não estivesse, ao menos suplicava que a ouvisse o seu amigo.
Corremos ao salão.
A desconhecida desaparecera...
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– O Príncipe!...

21 abril.
Suicidou-se ontem a Marquesa de Santo-Stefano.
Preveniu-me ao almoço que partimos hoje. Tomaremos o comboio na estação de Villefranche.

É outra a força que me arrasta.
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– A sua morte! A sua morte! A sua morte!...

CAPÍTULO 18
Não atravessamos nenhum mar. A viagem foi toda de caminho de ferro. E não posso dizer quantos dias durou.
O expresso caminhava vertiginosamente, parando em raras estações – estações porém que eu nunca descobri, olhando pelas vidraças.
Febril de quebrantos, disperso de agouros, aturdia-me a impressão de que o comboio não marchava horizontalmente, mas verticalmente, desmoronando-se em nuvens que o peneiravam através de estreitos poros – bem como ao meu corpo.
De resto, já sem mundo-interior, deportado dele para sempre, só de muito longe (e a muito vago) sentia – e de mais longe posso referir aqui o que sentia. Apenas os seus olhos atuavam ainda a minha vida – os meus sentidos, as minhas recordações.
Fomos sempre face a face.
Chegamos, noite cerrada, a uma gare imensa – desta vez real, bem visível. Mas uma gare inexplicável: deserta, sem chefe. Pelo menos eu não vi nem chefe, nem soldados, nem carregadores...
Esperava-nos um grande automóvel cinzento, muito agudo. Subimos. Mais vertiginoso do que o expresso, o veículo marchou algumas horas. Durante o trajeto não trocamos uma palavra. Creio até que nunca mais trocamos uma palavra.
A noite, densíssima – tão escura que oferecia resistência ao próprio automóvel...
Por fim, a carruagem estacou. De volta as trevas ainda. Entanto, próximo, sentia-se – não se via, pressentia-se numa emanação de altura – a sombra dum grande edifício torreado.
Descemos. Atravessamos as ruas dum jardim
– suponho. Sobre uma escadaria, muito larga, de mármore negro – um lacaio, de libré toda branca, empunhava, mal aceso, um candelabro antigo.
Entramos.
Numa sala de teto elevadíssimo, havia uma longa mesa posta para muitos convivas. Luzes baças, sempre.
Sentamo-nos. Mas não apareceu ninguém. Bebemos Xerez. Trinquei um fruto.
Tinha desaparecido...
O mesmo lacaio, hirto, silencioso, me guiou por escadas intermináveis e fundos corredores ao grande aposento de abóbadas onde escrevo estas páginas – à luz ondulante duma grossa vela de cera...
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– Onde estou, meu Deus, onde estou?... Para aonde me trouxeram... que vão fazer de mim... que pretendem de mim... a que me irão obrigar?...
Há  embranças de pavor, ainda, na minha alma – tão funesta é a noite, tão cerrado o Enigma...
Arrepanham-me cabelos de feitiço. Volvem-se estátuas de ferro os momentos.
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Olho em volta. Perscruto a penumbra.
Bailam sombras em todo o aposento: sombras rasteiras, pesadas, sólidas, que esvoaçam sem asas – e que a chama triste do cirio não logra afugentar.
O leito espera-me ao fundo – abafado, insondável – sob cortinas de damasco púrpura. Lençóis de bretanha; colchas da Índia.
À direita, um grande armário de espelho. Mas estremeço... ranjo de presságios... O espelho está partido... estalado de alto a baixo...
Há  portas, seguramente de desvãos, que não ouso abrir, em arrepios – bem como a grande janela do fundo que uma tranca exagerada cerra...
Lá fora, nas galerias, em todo o palácio – um silêncio de catedral.
No quarto, uma atmosfera úmida – turvada em olores de insidia, contundentes.
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Resolvo-me num ímpeto...
Destranco a janela... abro as vidraças...
Uma   lufada de vento –   de vento, e de qualquer coisa menos fluida – vergasta-me o rosto... vai apagar o castiçal...
Debruço-me. Apenas a    escuridão...
Adivinho, entanto, que uma grande altura se escoa abaixo de mim...
Devo estar numa torre...
Longe, o mar ruge... talvez... o mar, ou florestas que rumorejam... É um clangor soturno, opaco – que, à distância, tanto pode ser do oceano como das bétulas.
– Que haverá defronte dos meus olhos? Que haverá a meus pés?...
Nem uma estrela que brilhe... uma luz esquecida...
Mas é bem certo que um grande espaço se abisma e se alastra em torno de mim.
Dir-se-ia que estou em pleno azul, suspenso – como na barquinha dum balão...
Longos minutos passo à janela.
Sempre a mesma treva, o mesmo rumorejar...
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Reúno-me num esforço derradeiro de lucidez.
Com efeito, ninguém jamais viveu horas Maiores.
Solene segredo!
— Onde estou? Que existe em cerca de mim? O que é que não existe?... que foi ontem? que será amanhã?...
Cingi a minha obra de Astro. Que mais posso esperar?
Deixo-me cair sobre o leito.
E só agora, nas trevas, sei que há frescos – grandes frescos sombrios, obras-primas de claro-escuro – nas paredes que me envolvem. Sinto as suas figuras a projetarem-se no meu corpo – em relevo, por umidade...
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— Dormirá também?...
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Para escrever, acendo de novo a vela.
Inferno! Não sonhemos mais!
Urge acordar e salvarmo-nos.
Seja como for, seja o que for, seja quem for – o resto dissipar-se-á, e eu serei obrigado a reconhecer-me: pois vivo, vivo, entanto...
Palpo o meu corpo... acho-o todo... E o meu coração lateja.
É tempo de salvar-me. Ilusão! Ilusão!
Não sonhemos, embora – asseguremo-nos do Triunfo. Infame aquele que, por um enleio, deixasse perder tamanha vitória.
Breve, a manhã há de raiar. E eu saberei! saberei! saberei!...
Tudo menos isso!
Ainda que esteja certo do que é o Príncipe. Deixar perder tanto Ouro morto... deixar ruir tanta Sombra... Não! Não!... Ao contrário...
Mergulhar nela indefinidamente... misturar-me a ela... sê-la... sê-la a mais Resgate!...
— Ó êxtases de Arminho! Luar crucificado...
Esfinges de Profundura...
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Depois, tudo se esvai em frente desta Maravilha. Logo, é esta que eu devo fixar a sedições de Prata. Fixá-la, sim, encerrá-la em jade – ópio coleante... profética volúpia...
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Comigo – estas páginas do meu caderno vermelho, secretas também, confiadas à Altura...
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O próprio vento, ogivalmente, abriu a janela de par em par.
As sombras cresceram – e agora o seu cortejo, roçagando dosséis, desfila em triunfo...
Nas galerias solitárias, a esta apoteose – ah! por força! progridem imagens de neblina violeta... assim como ondeiam brocados nas salas próximas, douraduras tilintando o ar... e se abatem tapeçarias... se desvendam reposteiros...
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Passam cultos mortuários...
Sou funerais em Memphis...
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... E a janela aberta, ampla, insondavel, sobre a noite – lagôa-pelúcia, orquidea velada do meu Capricho...
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Vá! Leoninamente – dum jato!...

O grande salto!... ao Segredo... na Sombra... para sempre... e a Ouro!... a Ouro!... a Ouro!...

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