O presépio
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Havia
quase um ano que estava na loja, mercearia num bairro escuro, em que mal
entrava de esguelha, como espreitando a medo, um raio de sol, entre as casarias
muito altas da rua tortuosa.
Com doze
anos, que saudades tinha da aldeia, da família, dos antigos companheiros de
escola, dos cães amigos que ladravam de noite a vigiar a casa!
Tudo lá
tão longe! Ah! Se ele soubesse!...
Pois nem
uma lágrima lhe viera anuviar o último adeus, quando a diligência dera volta na
estrada e ele vira sumirem-se os choupos da ribeira e o lenço que mão saudosa
sacudia no alto do cabeço.
É que o
deslumbrava a ideia de Lisboa, de que tantas maravilhas grandes lhe contavam.
Ainda agora partia, e já se via de volta na aldeia, de relógio e cadeia de
ouro, a falar de alto, a puxar o bigode, a dar enchente, como o Januário, que
lhe arranjara o lugar.
Com o seu
examezinho de instrução primária, marçano de uma tenda... Não, que os pais não
o queriam para cavador.
Tinham
sido consultados o mestre-escola, o prior, o senhor Freitas, lavrador muito
importante que arrastava tudo nas eleições, o Custódio, velhote de muito bom
conselho, e todos se tinham mostrado de acordo: não havia como Lisboa para
fazer um homem. Era ver o Januário que tinha casado com a viúva do patrão. A
loja era de um cunhado dele, bom homem, áspero mas bom homem. Os olhos baixos
do Manuelzito, fitos no chão, viam no tijolo resplandecer auréolas, que giravam
como o fogo de vistas pelas festas.
Ah
estava, havia quase um ano; e no desvão da escada, onde às dez horas o mandavam
deitar, a morrer de calor no Verão, no Inverno a morrer de frio, punha-se a
rever os campos e a casa deixados sem as lágrimas, que lhe corriam agora em
grossos fios pelas faces.
Os
primeiros dias tinham passado muito lentos.
A
conselho do Januário, um biscoito ou outro da mão papuda e oleosa do merceeiro
tinham-no ajudado na tarefa. Assim é que ele havia de ser homem, um dia. Mas o
patrão mostrava maior pressa.
Pai, mãe
e mestre-escola nunca lhe tinham batido. Atreveu-se uma vez a declará-lo. Foi
pior. Chegou o Verão. As festas de São João e São Pedro aumentaram-lhe a
tristeza. Reviu nesses dias mais intensamente a alegria da aldeia, os bailes à
noite em volta da fogueira, a ida à fonte pela manhã, o sino a tocar à missa, e
ele a pensar que, quando fosse crescido, havia de ter uma namorada por quem
queimasse uma alcachofra, a quem cantasse umas quadras falando de estrelas e de
flores.
A bulha
nas ruas, nessas noites, não o deixara dormir. Cada bomba era uma pancada no
coração. Um sol-e-dó que passou tocando arrancou-lhe lágrimas de imensa
saudade.
Pelos
Santos, com a melancolia do tempo, ainda foi pior.
Depois
veio o Inverno, começaram os dias de chuva.
O mau
tempo irritava o patrão, porque lhe afugentava fregueses. Na loja, com recantos
muito negros, acendiam-se muito cedo os candeeiros, e o Manuelzito tinha pena
da sombra em que se acolhia com maior amor. Pasmava os olhos, fugia com o
pensamento para muito longe.
— Acorda,
ralaço! — gritava-lhe o patrão.
Estava a
chegar o Natal.
Que lindo
era o Natal lá na aldeia!
Andavam
na rua a abrir um cano; quase ninguém ali passava; os passeios eram cheios de
lama. O patrão andava furioso.
Então o
pequeno teve uma ideia.
***
Lembrou-se
de fazer muito misteriosamente um presépio. O segredo em que havia de trabalhar
mais o animava na tarefa.
Todos os
dias, muito a medo, enquanto o patrão almoçava ou saía da loja algum instante,
vinha à porta, se não havia freguês a servir, espreitava, corria, apanhava um
nadinha de barro nas escavações do cano. Escondia-o, e debaixo do balcão, quase
às apalpadelas, ia fazendo as figurinhas.
Assim
modelou o menino Jesus, que deitou num berço de caixa de fósforos, Nossa
Senhora de mãos postas, São José de grandes barbas, os três Reis Magos a
cavalo, e os pastores, um a tocar gaita de foles, outro com um cordeirinho às
costas, e uma mulher com uma bilha. Não se pareceriam lá muito; mas ele deu
provas de que sabia puxar pela imaginação.
Sempre
lhe faltava alguma coisa. Havia problemas difíceis de resolver.
Um dia,
engraxando as botas do patrão, lembrou-se de engraxar um dos reis, e pôs-lhe
depois umas bolinhas brancas, de papel a fingir os olhos.
Aos anjos
fez asas com as penas de uma galinha que depenou para um jantar de festa que
não comeu. Moeu vidro para fingir as águas do rio, e no papel de embrulho
recortou um moinho que só havia de armar à última hora.
Levou
nisso parte de novembro e dezembro todo, até ao Natal.
Escondia
os materiais debaixo da enxerga e, de vez em quando, revia-se na obra.
O que
mais o encantava era o menino Jesus, com a cabeça do tamanho de um grão de
milho, com buraquinhos a fingirem olhos, ouvidos, nariz e boca. Tinha mãos com cinco
dedos riscados a canivete e dois pezinhos que ele achava um encanto.
Com tiras
de papel azul havia de fazer o céu e, como o não tinha dourado onde recortasse
a estrela, fez em papel branco uma meia Lua; vinha quase a dar na mesma
Aquele
mês passou correndo.
Era a
véspera do Natal. As dez e meia, o patrão mandou-o deitar e saiu.
Que
alegria estar só!
Não lhe
deixavam luz; mas que importava? Às escuras armaria o presépio. E logo começou.
Enrolou o moinho, pôs-lhe as velas; esticou o papel azul que fingia o céu e
pregou nele com um alfinete a meia Lua; espalhou o vidro moído, num S em volta
das palhas; dispôs as figurinhas, suspendeu os anjos. Depois fez uma carreira
de fósforos de cera, que todos se tinham de acender ao mesmo tempo, num
deslumbramento, quando desse meia noite.
Deram
onze e três quartos.
Ajoelhou.
Batia-lhe
o coração, que lhe parecia que deviam de ser milagrosas as figurinhas, que
delas lhe viria algum bem, consolação da sua vida triste.
Que seria
quando ele iluminasse o desvão da escada e os santinhos se pusessem todos a
luzir quase tanto como os verdadeiros? Rezava-lhes... Rezava-lhes... Àquela
hora, lá na aldeia, tocavam os sinos alegres e iam ranchos contentes a caminho
da igreja. Lá dentro reluzia o trono, e o sacristão muito atarefado ia,
vinha...
Meia
noite!
Acendeu
os fósforos e ficou embasbacado!
Nunca
assim vira coisa tão perfeita. Os anjos voavam deveras, os cavalos dos reis
galopavam, o rio corria, as velas giravam no moinho e os pontinhos do Menino
Jesus sorriam-lhe no rosto a São José e a Nossa Senhora!
Pôs-se a
cantar, como lá na aldeia:
Andava
nessas campinas,
Esta
noite, um querubim.
Tão
enlevado cantava, que nem ouviu o patrão abrir a porta, entrar na loja, chegar
ao desvão.
Acordou-o
do êxtase um pontapé.
— Isso...
Agora larga-me fogo à escada!... Varre-me já esse lixo!
E ele, a
chorar, levantou-se, foi buscar a vassoura.
O bruto
continuava aos pontapés.
— Vá?...
Vá!
Mas
quando se deitou, encontrou na enxerga uma figurinha. Apalpou-a, conheceu-a
logo: era a do Menino Jesus. Beijou-a muito. Pior vida levara do que ele...
Sentiu de repente um dó muito grande do patrão,
que não vira nada, nem que era tão bonito aquele Menino, com um olhar tão meigo
nos seus olhinhos picados.
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