12/01/2017

Pedro Gobá (Conto), de Ezequiel Freire


Pedro Gobá
(Episódios da vida rural)
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

---

Maio, nas fazendas, é um mês de azáfama. 

Colheram-se as roças; empaiolou-se o mantimento. Topetadas até as cumeeiras, garantem as tulhas um ano de fartura. Malhou-se feijão; bateu-se o arroz; quebrou-se o milho; arrancaram-se as túberas de toda a casta. 

Vêm chegando do mato-dentro as derradeiras carradas. Chiam desesperadamente os grandes carros circundados por alta esteira de taquara entrançada que boja com a pressão da carga. 

Pausadamente, entra pelo terreiro a longa fila de bois, cangados aos pares, parelhos no pelo e no porte. Os da guia, retacos, dorso recurvo, pescoço alongado, focinho abeirando a terra, esticam as tiradeiras, vergando os canzis, ao esforço da tração. Corpulentos, possantes, pampas de amarelo e branco, cabeça ao ar, entrechocando as armações luzidias, marcham pesadamente os do coice, em passo processional e atitude de resistência, escorando, no cangote pelado pelo diuturno atrito da canga, o peso enorme da carrada. 

De pé sobre o cabeçalho, seguro por uma das mãos a um fueiro, com a outra, brande o carreiro alentado e retinto uma comprida aguilhada, em cuja extremidade chocalha entre argolas a roseta de ferro, de puas mais temíveis ao couro bovino do que o ferrão da mutuca. 

— Eia, Lavrado! Fasta, Barroso! Carrega, Damasco! 

E, obediente ao comando, a destra boiada contorna a linha das senzalas, marcando o lento passo ao monótono chiar do carro. 

Por todo o largo terreiro uma grande alacridade barulha entre a criação doméstica, ao desabar da carga, à beira do paiol. Acodem avoando as aves: grasnam os palmípedes, gritam as galinholas, grugulam os perus; enquanto teimosamente grunhem a leitoada miúda, torvelinhante em derredor do monte, faiscando por entre o milho os tenros mogangas alaranjados tão doces ao dente do bácoro guloso. 

De bodoque em punho um rio-branco traquinas, de cor de braúna, mantém o respeito entre a bicharia ruidosa, arredando a pelotadas certeiras os insofridos e os brigões. 

Toda a fazenda ostenta um aspecto de abundância e fartura. O mantimento anda a rodo. Cavalos de estimação, pelo luzidio, garupa redonda, relincham impacientes no cercado. Nédia e forte aguarda a boiada o rude labor dos meses da colheita. 

Tudo está pronto para o início da safra. Os cafezais prometem. O ano passado fora de falha; neste a carga é de vergar. 

De ponta a ponta do terreiro, indo e vindo, abstraidamente, o fazendeiro calcula: — “20 contos, pelo menos, líquidos, sejam para reformar a minha gente, 12 peças de lei, molecotes de 15 a 25 anos, na flor da idade, cerne puro. Mais duas safras desta, e mando ao diabo a hipoteca e o Banco”. 

Entrementes, na alpendrada das senzalas, a um canto, os taquareiros se ativam; e ao longo dos balaústres, em rumas simétricas, se alinham as sururucas, os balaios de alqueires, as peneiras rasas de abanar. 

No cafezal: 

Está limpa e ciscada a terra para receber as bagas que transbordarem das peneiras com a pressurosa apanhação... Porque em princípio de colheita a tarefa é alta e o Maurício feitor aperta o serviço, a estralos de relho sobre o lombo nu da negrada, que escorre em suor, encrostado de poeira, alternadamente mordido, — de manhã, pelo frio orvalho que esborrifa das árvores, — alto dia pela soalheira que mordica a pele como a dentada cáustica da formiga-monjolo. 

Os cafeeiros, vermelhos de frutos, deixam vergarem-se os galhos flexíveis. É uma carga enorme!

 — “Desta vez tiro o pé do lodo”, continua meditando o fazendeiro, indo e vindo, abstraído, inteiramente alheio àquela grande alacridade que em derredor barulha por todo o vasto terreiro entre a criação doméstica... 

*** 

Domingo, ao entardecer, o sino da fazenda tocou à forma geral. 

Vieram depressa os moços, trotando; depois as negras, com as crias novas ao colo, arrastando pela mão um ou dois ingênuos seminus e magritos; por último, com trôpego passo, os sexagenários, alquebrados veteranos do eito, perrengada inválida e inútil. 

— Salva! Manda o feitor. 

Vaássunscristo! Bradam 50 míseros negros, num clamor uníssono, vibrante e merencório, como uma imprecação à surda justiça de Deus, tantas vezes neste triste ermo bradada, sem que ninguém a exalce; nem tu, duro egoísmo do senhor de escravos; nem tu, meigo coração de esposa; nem vós, inconscientes e insensíveis ainda crianças que ides crescendo no espetáculo e nos exemplos desta dolorosa infâmia, que veio de vossos pais e que haveis de legar a vossos filhos!... Ninguém, ninguém te exalça, melancólico brado de angústia; e tu não irás mais alto nem mais longe do que vão o mugido dos bois e o ladrar dos cães; e te perderás, voz animal que tu és, entre as outra vozes da animalidade que te rodeia, no ar morto e sem ecos da Fazenda! 

— Vaássunscristo!... 

Em seguida, faz-se a distribuição anual da roupa: dois parelhos de algodão, japona de baeta, coberta de lã grosseira; porque o dono desta Fazenda é generoso... Outro fora, e dar-te-ia, pobre pária, para cobrir-te a nudez lutulenta — de manhã, o frio nevoeiro cortante dos eitos — alto dia, o sol que te mordiça a pele como a penugem cáustica da urtiga. 

No dia seguinte tinha de dar-se princípio à colheita. 

Para que a solenidade fosse completa distribuiu-se pelos negros aguardente e fumo, indo o Maurício com a canequinha de lata, ao longo da fila, dando a cada qual um gole, que o negro sorvia com a beatitude de um padre emborcando o cálice consagrado. 

—  “Agora, disse o Fazendeiro, indicando com o cabo do relho a melhor peça da fila: amanhã começa a apanhação; Gobá é o tarefeiro. No cafezal novo a tarefa, 10 alqueires. Cada alqueire que passar dos dez, — duzentos réis; cada alqueire que faltar, — uma dúzia de couro. Ouviram?” 

— “Si siô!” Responde o eito num só grito com o automatismo dos entes em cujas almas a diuturnidade da escravidão sob o regime cru das senzalas obliterou a pouco e pouco, e de todo, o sentimento da personalidade. 

Vergonhosamente, nesta pátria aviltada, a promiscuidade é a lei capital que regula as relações do amor entre a escravatura. Raro fazendeiro — ainda hoje! — permite o casamento religioso aos seus negros. Como em certas hipóteses o moderno direto pátrio concede vantagens manumissórias aos cônjuges escravos, o fazendeiro, receoso dos efeitos, obsta à aparição da causa impedindo o sacramento, que — demais — ele considera como um luxo de dignidade supérfluo para a honra do preto. 

Todavia, pois que é conveniente no próprio interesse da disciplina das senzalas, aparentar alguma moralidade, os nossos grandes proprietários rurais, alguns deles portadores de títulos de nobreza consentem (quando pessoalmente não promovem) o concubinato entre a escravatura. 

Alguns levam a solicitude ao excesso de eles próprios designarem os nubentes e sacramentarem o conúbio, com a tranquila consciência de quem exerce dentro do seu latifúndio uma legítima função senhorial; outros deixam aos próprios interessados os cuidados da eleição. 

Estes curiosos casamentos, nota simultaneamente cômica e torpe dos nossos costumes agrícolas, dão-se com a maior frequência na época da colheita do café; e são, principalmente com referência às mulheres, determinados mais por um cálculo interesseiro do trabalho do que pelo intuito genésico ou pelos impulsos naturais da simpatia. 

O que importa para interesse da Fazenda é “aparelhar-se a gente”, formando de um negro diligente e destro com uma crioula morosa e inábil — uma entidade mista, espécie de trabalhador andrógino cujos constituintes perfeitamente se equilibrem para o exercício desta suprema função agrícola — dar a tarefa marcada. 

Fazendeiros há, de tanta sagacidade no arranjo destas delicadas equações da aritmética rural, que, possuindo no eito, entre peças de lei (do preço de 2 a 3 contos) e velhos perrengues (herdados da fazenda paterna) apanhadores que tiram por dia até 16 alqueires nos cafezais carregados, quando outros nem à força de relho chegam a atingir 3 ou 4 balaios; — entretanto, por meio da referida organização conjugal sabiamente exploradas, conseguem obter o equilíbrio do eito, do que resultam inapreciáveis vantagens. 

Bem hajas, prole maldita de Cam, que nos libertas, a nós que no cimo do Ararate soubemos pela sisudez dos nossos avós bíblicos conter o riso ante a descompostura vínica do papai Noé; bem hajas, prole bendita, que amassa o nosso pão com o suor do rosto. 

*** 

Tecla é a mulata mais bonita da fazenda. Sob os seus precoces treze anos borbulha o ardente sangue mestiço, inflando-lhes as veias que serpenteiam túmidas debaixo da pele acobreada, pubesceste, de tons quentes como os do jerivá, verdoengo. — “Flor de cafeeiro”, deve ser colhida pelo melhor apanhador de todo o eito. 

Pedro Gobá, de Olinda, veio num comboio escolhido a dedo, de gente de primeira ordem. Moço atlético, retinto, forte e dócil, é a melhor peça dentre toda a escravatura. Para tocar uma enxada, cantando uma cantilena triste, morro acima, num eito de mato bravo, ninguém como ele! 

No manejo da foice, à roçada de um guaixumal de pasto velho, nem o Peroba o acompanha: e, entretanto era Peroba o melhor crioulo da redondeza, antes de aparecer o Gobá. 

Naquele dia inicial da colheita, Tecla — a flor do cafeeiro, bonita e indolente na exuberante precocidade dos seus treze anos, foi escolhida por Gobá, o tarefeiro, rei da negrada. 

Casou-os o Balbino, velho africano feiticeiro e manhoso, puxador do Terço, que exercia na fazenda um arremedo de funções sacerdotais. 

Era ele quem paramentado com uma sobrepeliz por cima de uma batina de seda — feita de um dominó carnavalesco que lhe dera o senhor moço estudante em São Paulo — casava os parceiros, todos os anos véspera da colheita, no oratório da Fazenda, perante um Cristo envergonhado da sua impotência para aliviar a miséria da raça negra maldita, condenada pelo Padre Eterno da legenda bíblica a eternamente trabalhar em benefício nosso, dos que temos pais fazendeiros e contamos por avós históricos — Sem e Jafé. 

Tecla, confiada no esforço dedicado do marido, acompanhava-o entre os arruados dos cafeeiros, toda atenta a resguardar dos galhos secos o seu vestido de chita, por que se não rasgasse; e esquecida da tarefa, ia cantarolando, eito acima, a mesma toada triste da cantiga do marido. 

Gobá excedia-se de diligência para colher a tarefa sua e da mulher. 

Ao largar o serviço à noitinha, contou às chapas que o feitor lhe dera a cada balaio de café levado ao monte: eram 15. Depois contou as da Tecla: eram 3. Faltavam duas para inteirar a tarefa da companheira: e o senhor bem lhes havia avisado: 

—  “O que faltar para 10, uma dúzia de relho por alqueire!...” 

À noite, na forma, recebiam-se as chapas da tarefa. Dois moleques, nas extremidades da fila, suspendiam ao ar tachos de taquara-seca em labaredas.

 

A negrura daquela mísera gente, ao clarão do fogo, mais negra ainda se tornava. Cabisbaixos, mudos, iam entregando os discosinhos de Flandres, à proporção que o Maurício os tomava, passando-os depois, para verificação, ao feitor do terreiro. 

Sob o alpendre da casa, a família dos brancos assistia curiosa contagem: 

— João Cassange, 10. 

— Pedro Crioulo, 12. 

— Nazário, 11. 

— Tecla, 8. 

E o Maurício, feitor prático, tomando o seu grande relho de couro trançado, intimou: Tecla fora de forma. 

Era o primeiro castigo por falta de tarefa, crime imperdoável na alta justiça dos fazendeiros. 

Tremendo, a mulata, “flor de cafeeiro”, mimosa no abrolhar dos seus treze anos, saiu para frente da fila, quedou-se imóvel, erguendo os braços para que o relho vibrado a dois pulsos pudesse enlaçar-lhe num cíngulo de dor o torso flexível e esbelto de mestiça nova. 

Mas antes que a primeira relhada caísse sobre a carne trêmula daquela criança apenas revestida no busto pelo fino morim da sua camisa de noivado, Pedro Gobá interpõe-se, e se ajoelha. 

— Sinhô! Murmura comovido, com as mãos postas em súplica, voltado para a família dos brancos o rosto sempre risonho, agora crispado pelas contrações da angústia. 

— Sinhô! Repete mais trêmulo ainda. 

— Que é lá, negro? Brada o fazendeiro irado ante aquele ato de indisciplina. 

— Sinhô, eu quero apanhar por minha mulher! 

— Ah! Negro você conta histórias!... Mauricio, amarra esse diabo!! 

*** 

Mas antes que ninguém tivesse tempo de mover-se, dominados todos pela surpresa daquela cena, Gobá, o Pernambucano de raça, altivo e nobre no íntimo da sua alma admirável, debalde abafada desde o berço pela dominação dos senhores; Gobá, a flor da escravatura, manso e bom, subitamente transformado em homem pelo irresistível impulso da nobreza inata, arranca da faca e crava-a no coração da mulher. 

Depois, enquanto ela tomba inanimada, ele, placidamente, fitando com um ar de asco a família atônita dos brancos, placidamente crava a faca ainda rubra e quente no seu próprio coração. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...