3/16/2018

Expulsão dos holandeses da Bahia (Ensaio), de Rocha Pombo


Expulsão dos holandeses da Bahia

Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)



Trataram antes de tudo os holandeses de recolher os fartos despojos daquela fácil vitória. Além de dinheiro, de objetos de ouro e de prata, de mobiliários, de alfaias das igrejas, de armamentos, etc., arrecadaram grande quantidade de mercadorias, tanto dos armazéns e casas de comércio, como das embarcações que se achavam no porto, carregando-se logo muitos navios que partiram pressurosos para a Holanda.

Nem só do que havia na cidade e no porto se aproveitaram os flibusteiros: durante alguns meses foram apreendendo barcos mercantes que, nada suspeitando daquela mudança, entravam na baía desapercebidos.

Tudo isto era a rapina oficial; isto é, a que se fazia de conta da empresa; sem falar, portanto, do saque com que se premiou o heroísmo da soldadesca.

Johan van Dorth, que era o governador da conquista, só chegara à Bahia no dia 11 de maio. Como era homem digno, esperava-se que logo poria em ordem a terra.

E com efeito, esforçou-se o governador intruso até por inspirar simpatia e confiança aos próprios baianos violentados.

Naturalmente, muito falsa ideia tinha ele da população agredida. Ou então zombava das vítimas, confiando demais na força das armas.

E isto é o que parece que se dava.

Não obstante os sinais de repulsa que sentiam em torno da praça, era quase inverossímil aquela grande confiança que mostravam os holandeses, fazendo desassombradamente o tráfico em todo o Recôncavo e nas imediações da cidade, muito seguros, como se fossem os legítimos senhores da terra.

Parece mesmo que o intuito deles era seduzir os colonos estimulando-Ihes o instinto do ganho (que decerto calculavam tão poderoso como o dos flamengos); punham-se de relações com os mais acessíveis, oferecendo-lhes bons negócios, pagando-lhes bem os gêneros que compravam e os serviços que recebiam: enfim, tudo faziam, por chamar a si ao menos as classes humildes da população.

É fácil de ver que algum fruto haviam de colher de tais manobras, principalmente entre os negros e os índios.

2 - A gente que fugira da cidade na noite de 9 para 10 de maio, espaIhara-se pelos distritos vizinhos, cuidando, primeiro que tudo, de abrigar as famílias.

O maior número dos homens válidos foram logo reunindo-se, aos grupos, em várias aldeias que ficavam ao norte da praça; e começaram a combinar meios de reação contra os invasores.

Principalmente na aldeia do Espírito Santo foram concentrando-se os retirantes. Com os moradores, ocorriam também maltas de índios, alarmados com aqueles sucessos, e revelando pelos portugueses uma sinceridade de devotamento que muito os confortou naquele transe.

Em breve estava a aldeia convertida em vasto acampamento militar.

Cuidou-se de dar substituto ao Governador. Abertas as vias de sucessão, viu-se que estava designado o Governador de Pernambuco. Enquanto se dava disso aviso para Olinda, elegeu-se capitão-mor provisório ao desembargador Antão de Mesquita de Oliveira. Reconheceu-se logo que este, pela sua avançada idade, não era homem para semelhantes funções.

Convenceram-se todos de que a figura indicada para aquele momento era o Bispo. E realmente, D. Marcos Teixeira tinha índole para grandes lances heroicos, e no seu coração havia mais virtude de cavaleiro que serenidade de missionário.

Foi ele escolhido para o comando dos patriotas. E sentindo agora que o seu valor, o seu instinto nacional, a sua dedicação apaixonada pelas coisas da terra, e pelo bem de todo o povo, eram compreendidos e avaliados por aquela gente, ali em tão aflito aperto, foi o Bispo cada vez mais afervorando-se e tanto sobrelevou nele, às coisas do seu ministério, o sentimento daquela missão, que lhe pareceu providencial — que foi até o desprendimento de fazer-se formalmente soldado, pondo-se cora alegria, e vigoroso e altivo como os moços, no meio dos mais incendidos.

Segundo Southey, não foi bruscamente que D. Marcos passou do seu caráter episcopal para o militar; vestiu primeiro o hábito de penitente; fez oração pública; e depois tomou armas, trazendo a roupeta por cima do arnês, e uma cruz ao peito usando ainda, como distintivo, de chapéu verde, e sempre ao lado da espada trazendo o báculo. Antes de tudo, "ditou o seu testamento, como se fosse morrer... fez preces públicas... deixou crescer a barba..."

A primeira medida que tomou, logo que foi empossado do governo, destinou-se a atalhar aquela fraqueza de alguns que se mostravam propensos a aderir aos conquistadores: proibiu, sob pena de morte, que se entrasse em relações de qualquer ordem com o inimigo; e chamou às armas todos os baianos que podiam combater.

E como que instantaneamente, mudou a situação no arraial do Espírito Santo. Vasto alarido de guerra ecoou por aquelas paragens onde andava reinando a desolação.

Em poucos dias, estavam prontos para entrar em campanha cerca de dois mil homens.


3 - Foram essas forças divididas em companhias, sob o comando de capitães já conhecidos pelo seu valor.

Organizado o exército da reação, o primeiro pensamento de D. Marcos foi tentar a libertação do Governador, e do mesmo golpe fazer a reconquista da cidade.

Infelizmente falharam os planos, pois os intrusos estavam muito apercebidos.

Transferiu-se então o acampamento do Espírito Santo para o Rio Vermelho, a cerca de uma légua da cidade; e estabeleceu-se o cerco da praça, espalhando-se pelo contorno formidáveis quadrilhas de assalto.

Abre-se assim, para os flamengos, uma fase de lutas tremendas, que lhes não deixam mais um momento de sossego. Todos os caminhos em volta da cidade foram tomados, não se deixando ao inimigo meio algum de receber víveres por terra.

Uma das primeiras vítimas daquelas temerosas companhias volantes foi o próprio governador intruso, uns três meses depois da ocupação. Fora, não há dúvida, van Dorth bem pouco prudente, talvez por desafrontar os seus dos muitos perigos que se corriam ao sair da cidade. Acompanhado de cem homens da sua guarda, saíra ele a inspecionar uma fortificação a cerca de uma légua da porta do Carmo; e quando voltava, "rebentaram os nossos — diz Vieira — de uma emboscada contra eles, e um (foi Francisco Padilha) arremeteu contra o governador, que vinha a cavalo, e o derribou. Tanto que este caiu, caiu com ele o ânimo dos soldados que o acompanhavam, como bem se viu no efeito, porque faltando-lhes nas mãos para resistir, só nos pés lhes sobejou para fugir".

Este desastre consternou os sitiados; e pode contar-se daí o declínio da situação para eles.

Da sua parte, exaltando-se com o sucesso, iam os baianos apertando o sítio.

Para mais os incender, chega-lhes do Norte, Antônio de Morais "com uma companhia montada à própria custa"; e logo depois, reforços de Pernambuco às ordens de Francisco Nunes Marinho, que viera como locotenente de Matias de Albuquerque no Governo Geral.

Passara-lhe o Bispo aquele penoso posto; e dentro de um mês (por princípios de outubro) falecia, talvez mais de desenganos que de fadiga.

4 - Continuou Nunes Marinho a obra da reconquista com muito esforço e bravura, aumentando fortificações, construindo novas trincheiras no lado do sul e do norte, únicos pontos por onde era possível a agressão, achando-se todo o flanco oriental da praça defendido por águas canalizadas.

Do mês de outubro em diante viram-se os intrusos reduzidos quase a permanecer dentro dos muros.

Só na baía conservavam ainda o seu domínio. Mas ali mesmo no mar já se viam molestados e perseguidos. Por todo o litoral do Recôncavo, nos pontos por onde poderiam receber víveres, destacaram-se turmas de flecheiros, que tornam perigoso o desembarque. Também na ilha de Itaparica, onde faziam provisões, iam sendo hostilizados, e só com muita força e arriscando-se a graves perdas, atreviam-se a voltar ali.

Se os baianos dispusessem de forças navais para impedir-lhes a baía, tê-los-iam posto logo na contingência de fugir ou de render-se.

Provavelmente, na Holanda não se tem notícia exata das condições a que se acha reduzido ali aquele bando, nem mesmo depois da morte de Johan van Dorth, e do que sucede a este imprevisto acidente. A falta de um chefe autorizado tivera como consequência mais grave o afrouxamento da disciplina entre os soldados. Albert Schouten, que sucedera a van Dorth, não tinha o mesmo prestígio do malogrado governador.

Bem se vê como é insustentável a situação dos flamengos. Parece mesmo que só agora é que eles clamam para a sua metrópole, na aflição em que se vão sentindo.

E agora, não só já é um pouco tarde, como não se precisa mais em Haia de avisos cá da América. Lá mesmo é que o Conselho dos Dezenove (que dirige a Companhia das índias Ocidentais) sente os sinais da refrega iminente.

Mas então já não era mais tempo de evitar o fracasso daquela primeira tentativa. Mesmo que a solução da causa ficasse entregue exclusivamente às duas hostes que estão travadas, não seria possível que os sitiados resistissem por muito tempo mais à ação dos sitiantes.

5 - Por princípio de dezembro chegava aos arraiais baianos, com algum reforço, D. Francisco de Moura; e dando notícia de que não tardaria a vinda de uma poderosa esquadra para restaurar a cidade.

Em Olinda combinou o novo capitão-mor com Matias de Albuquerque o que convinha. Ali ainda se lhe reuniu alguma gente capitaneada por Manuel de Sousa d'Eça e Feliciano Coelho.

Com alguns caravelões, providos de víveres e armamentos, veio D. Francisco de Moura desembarcar num porto umas doze léguas ao norte da Bahia, e dali alcançou por terra o Rio Vermelho.

Ainda com mais confiança e decisão cuidou-se agora, não só de estreitar cada vez mais o sítio, como de ir fechando pelo estuário a única válvula que restava aos inimigos.

Por sua vez, provocados de invectivas e refregas contínuas ensaiam os holandeses sortidas por vários pontos e travam-se lutas ali quase peito a peito sem descanso.

Numa das escaramuças, que se repetiam nos arredores da praça, teve logo o coronel Albert Schouten sorte igual à de van Dorth. Sucede-lhe o irmão Willem Schouten, mas ainda com mais depressão do ânimo geral na praça, do que com o primeiro desastre.

Os pequenos socorros que chegam da Holanda parece que, em vez de consolar os sitiados, começam a desenganá-los. Não passam nunca de uma ou outra nau com algumas dúzias de soldados; e não é decerto com isso que se há de manter a praça, tão fortemente assediada de inimigos.

Sentem os intrusos como se lhes agravam as condições dentro dos muros quando a baía se lhes foi fechando.

Entregaram os baianos a Sousa d'Eça a vigilância do Recôncavo; e começou o valente capitão apoderando-se de algumas paragens que ainda se achavam guardadas pelos inimigos.

Não tendo mais no Recôncavo onde entrar sem combate, procuraram os sitiados prover-se de mantimentos em outros pontos da costa, fora da baía. Mas, por ali mesmo eram atropelados pelos temerosos bandos de assalto que batiam todo o litoral.

Era, pois, esta a situação dos intrusos. Só a esperança de um grande socorro, que de Haia se lhes promete, é que os anima a conservar com tanto sacrifício a cidade e o porto.



6 - Tanto em Espanha, como em Portugal, aparelhava-se a poderosa esquadra que devia desafrontar a terra.

Nunca se conhecera na península um fenômeno semelhante ao que ali agora se passa. Dir-se-ia que na alma dos dois povos lavrou uma vasta insurreição moral no momento em que correu notícia da audácia flamenga. Todas as classes, do rei aos mais humildes, emularam em dedicação e fervor; e um só clamor de guerra se ouviu contra a temeridade dos intrusos. Mesmo os que não puderam tomar armas fizeram questão de ter a sua parte de sacrifício na desafronta, contribuindo com seus haveres para custeio da expedição. Acorriam com tanto alvoroço os voluntários que houve casos em que foi necessário tirar à sorte, entre irmãos, o que havia de ficar com a família... porque todos queriam vir.

Em pouco estava preparada a frota portuguesa, composta de 26 velas, com cerca de 4.000 homens. Vinha como almirante D. Francisco de Almeida; e como general de terra D. Manuel de Menezes.

Esta armada saiu do Tejo pelos fins de novembro (1624) e veio em Cabo Verde esperar pela de Espanha.

A frota espanhola compunha-se de 37 navios, como 7.000 homens, tendo como almirante D. João Fajardo de Guevara.

Toda a expedição, formada pelas duas frotas, vinha sob as ordens de D. Fadrique de Toledo, chefe supremo da terra e mar.

Pelos princípios de fevereiro (1625) reuniam-se as duas esquadras na baía de Santiago. Assumiu D. Fadrique o comando geral; e no dia 11 do referido mês, prosseguiu na derrota para a América, vindo, no dia 29 de março, fundear a nordeste da barra da Bahia, junto ao pontal de Santo Antônio.

Dirigiu-se logo D. Francisco de Moura, com outros oficiais, para bordo da capitânia real e deu ao generalíssimo conta do estado em que ia a guerra.

Concertou-se em conselho o plano de operações. No dia 30 estabeleceu-se o bloqueio da barra. Só então é que viram os holandeses que a esquadra não era a que esperavam.

No dia 31, começou o desembarque de tropas, ao sul da cidade, entre Santo Antônio e São Bento: tudo correndo em boa ordem. Alguns dias; depois chegaram também reforços de Pernambuco, do Rio de Janeiro, de São Vicente e de outras capitanias.

Instalou D. Fadrique o seu quartel no alto do Carmo. Guarneceram-se todas as eminências vizinhas, e fechou-se, com uma compacta linha de baterias, a cidade por terra, e tendo-se a baía completamente bloqueada.

Sentindo a extremidade do perigo, abandonaram os holandeses alguns fortes e trincheiras que ainda conservavam fora dos muros e concentraram suas forças na praça, deliberados a resistir até que lhes cheguem os esperados socorros.


7 - Tudo disposto em volta da praça, pelos primeiros dias de abril, aproximou-se do baluarte do Mar a nossa esquadra, e rompeu fogo, de um lado e de outro, no mar e em terra.

E desde então (6 de abril) não houve mais descanso nos dois campos. Diz Fr. Vicente que "durante 23 dias não se passou um quarto de hora, de dia nem de noite, sem se deixar de ouvir estrondo de bombardas, esmerilhões e mosquetes de parte a parte".

Para aumentar a aflição dos inimigos, já sem um chefe de prestígio, começou a discórdia a dividi-los. Uma sedição depõe Willem Schouten, e proclama general a Hans Ernest Kijf; enquanto uma facção fica ao lado daquele.

Não era mais possível a resistência.

No dia 27 de abril, num dos lados da praça onde a luta era mais tremenda, iam os nossos soldados tomar de assalto uma trincheira, quando gritaram de dentro que cessassem o fogo "porque se queriam entregar". Veio logo o próprio comandante holandês entender-se com os oficiais que estavam ali; e no outro dia, foi um tambor ao quartel do Carmo, com uma carta em que se propunha formalmente a paz.

Ao cabo de algumas conferências, aceitaram os flamengos as condições impostas pelos vencedores. Foi a capitulação assinada no dia 30 de abril; e no 1° de maio fizeram as tropas reais a sua entrada triunfal na cidade.

A esquadra que os holandeses esperavam só a 26 de maio é que apareceu na Bahia. Tendo o almirante a decepção de ver que nos muros da cidade no tope dos navios já tremulavam as bandeiras de Portugal e de Espanha, preferiu deixar pacificamente o porto.

Estava, pois, burlada aquela primeira tentativa dos holandeses no Brasil.

Mas, nem por isso aquele fracasso havia de desiludir os argentários de Amsterdam. E muito naturalmente. Eles não saíam daqui perdendo; antes lucrando, e lucrando muito mais que as presas recolhidas, pois lucraram as lições daquele proveitoso ensaio, e com elas a convicção de que não era possível renunciar ao Brasil.

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