3/22/2018

História do Brasil: Os colonos e os jesuítas (Ensaio), de Rocha Pombo


Os colonos e os jesuítas




Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)


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1 - Os primeiros colonos, como nota o nosso grande historiador Varnhagen, foram logo adotando os usos, e até muitos costumes dos indígenas. Afizeram-se ao regime alimentar, aos processos de trabalho de granjearia, de caça e pesca, de locomoção; ao emprego de objetos domésticos, ao modo de construir as habitações.

Tudo isso era muito natural. Em grande desproporção, quanto ao número, com o elemento nativo, e num país estranho e desconhecido, não tinham os colonos meio algum de se eximirem a uma pronta adaptação ao novo meio, na impossibilidade em que se viram, de conservar os próprios usos.

Mas isso tudo não era muito de notar enquanto ficasse por aí.

O que era mais grave e alarmante é o que se passava no domínio dos costumes, dos sentimentos, das ideias, de toda a psicologia, em suma, do adventício. Dentro de alguns anos de vida passada na América, o europeu se parecia mais com o bárbaro do que com o homem civilizado. Tinha adquirido quase todos os hábitos e vícios dos índios, ao ponto de se poder acreditar numa súbita regressão de cultura, operada naqueles estreitos círculos dos pequenos núcleos dispersos pelo nosso litoral.

E não era com efeito nada menos do que isso o que se dava: um abaixamento de nível, não diremos de inteligência, mas de senso da vida. O elemento indígena absorvia, e se não assimilava completamente, pelo menos ia alterando o fator exótico, enquanto este não assumia a preponderância que o habilitasse a exercer por sua vez, e definitivamente, uma poderosa ação modificativa.

É assim que o colono passou a viver aqui como vivia o selvagem: na mesma ociosidade, na mesma desídia de alma, nas mesmas incontinências morais, nos mesmos excessos. E tudo isto, quando não requintava ainda os vícios do gentio, como não raro acontecia. Casos houve até em que o europeu não teve forças nem para resistir à gula nefanda do antropófago! Segundo o insuspeito testemunho de Lery, houve franceses que chegavam a tomar parte nos sacrílegos banquetes dos tamoios para ganhar-lhes a confiança! Dos portugueses sabe-se que pelo menos nem sempre condenavam a antropofagia, porque era este o meio mais prático de enfraquecer os selvagens, e de angariar adeptos entre os chefes!

2 - Numa carta do padre Nóbrega, escrita dez anos depois que chegara ao Brasil, dizia ele ao rei: ''A causa por que no tempo deste governador se faz isto (refere-se aos proveitos com que se vai fazendo a catequese, e pondo ordem nas colônias) não é por haver agora mais gente na Bahia, mas porque pôde vencer Mem de Sá a contradição de todos os cristãos desta terra, que era quererem que os índios se comessem, porque nisto punham a segurança da terra; e quererem que os índios se furtassem uns aos outros para eles terem mais escravos"...

Em suma — estudar o colono dos primeiros dias pouco mais teria de ser que estudar o selvagem. Quase em todo o primeiro século não se pode dizer que estejamos em presença da sociedade colonial. Esta há de vir logo mais, depois que das duas raças em ação tiver saído um outro tipo social, que dará a sociedade nova, a integrar-se lentamente, operando sobre o mundo selvagem no sentido da cultura clássica, por mais que tenha esta de ressentir-se do novo meio.

Mas o vício indígena, que mais largamente se infiltrou na índole doa primeiros colonos, e que se tornava o maior perigo para a civilização do continente, foram os desregramentos da poligamia. Nem mesmo é este o termo próprio para designar o desconcerto geral em que caíram os europeus encontrando-se com a família americana.

Aqui não se aceitou o que se chama propriamente poligamia organizada: o que se fez não foi mais que converter o que, entre os selvagens, era um costume, em vício novo, que não tem símile na história, e que se estranha como não espantava até os menos sensíveis à sorte futura da terra.

Em regra, só vinham da Europa, nos primeiros tempos, homens solteiros, ou casados que deixavam lá as famílias. Dando com a simpleza da moral indígena, começaram por entregar-se ao concubinato, e caiam em seguida numa devassidão desenfreada. Em vez de lar, tinha cada colono o seu alcouce. Quando ia à guerra com a tribo amiga, das florestas voltava, trazendo como prémio, manadas de escravas para povoar-lhe o prostíbulo. Os mais comodistas preferiam comprar escravas. Comprava-se uma rapariga por um alfinete.

3 - As escravas tinham de trabalhar para o senhor e barregão, em tarefas ingentes. Os filhos que lhes nasciam eram também escravos: criavam-se como selvagens, no próprio lupanar no meio da escravaria, como em senzala ou então, por mais econômico e mais cômodo, eram enviados aos parentes, que os criavam até poderem prestar serviços e voltar para o poder dos pais e senhores.

Contra isto ninguém se insurgia, porque todos andavam afogados na inconsciência da mesma degradação. Os próprios donatários, os  magistrados e outras autoridades, mesmo os que se animaram a trazer família, aproveitavam-se da licença geral.

Havia, entre os índios menos embrutecidos, o uso de escravizar os vencidos em guerra, principalmente as crianças e as mulheres. Esse uso era muito legítimo: era a forma clássica da escravidão militar, que é perfeitamente histórica.

Mas, que é que fez aqui o colono? Precisando de gente que lhes lavrasse as terras, foram, primeiro, resignados à fraqueza dos dias de ensaio, com astúcias chamando os índios ao serviço dos eitos. À guisa de estipêndio, davam aos míseros ingênuos algumas bagatelas, que pouco mais de nada lhes custavam. À medida que se impunham pelo prestígio e pela força, iam, com muito jeito, reduzindo o "salário" e prendendo o jornaleiro. Chegaram assim a criar, sem que o índio se apercebesse disso, uma condição servil bem disfarçada.

Daí à verdadeira escravidão foi um passo. Com o concurso de chefes amigos, faziam batidas em tribos contrárias, e traziam, às vezes, malocas inteiras, com prisioneiros de guerra. E então instituiu-se "juridicamente" a escravização do gentio. O índio escravizado passou logo a ser uma simples mercadoria, como vai ser logo o negro da África.

Por meados do primeiro século, estava a instituição perfeitamente acabada, e em todas as capitanias negociava-se em escravos. Os próprios capitães eram os negociantes mais fortes. E estes (valendo-se de concessão expressa nos respectivos forais) até exportavam índios, mesmo para fora da América.



4 - Um outro grande vício em toda a colônia desde o princípio; e este introduzido pelos europeus: o jogo, a praga que nasceu da indolência geral, invadindo todas as classes, das mais altas às ínfimas, e com o mesmo furor. Os próprios governadores e vice-reis não se privavam de jogar nos paços, muito cuidosos na escolha de comparsaria que lhes não comprometesse o decoro. Até nas diversões de família, entrava o jogo mais do que a dança (mesmo porque pouco se dançava nos tempos coloniais). O gamão era o jogo mais em uso entre as altas classes. Em família preferiam-se jogos de cartas. Homens e senhoras, velhos e meninos, todos jogavam com a mesma paixão.

Em relação à dança, há uma nota muito curiosa a acrescentar: nos princípios da colônia, dançava-se nas igrejas. Em muitas capitanias, este costume veio até quase à independência.

Não estará aí mais um vestígio dos antigos tempos (cuja tradição, já perdida na Europa, aqui se reproduziu) em que se considerava a dança como cerimônia sagrada?

— Parece que aí está o suficiente para caracterizar o colono, desde os primeiros dias, sob o aspecto moral.

É na situação de que já temos uma ideia, que os jesuítas entraram na colônia em 1549. Entraram eles reagindo abertamente contra semelhantes desordens, e com uma firmeza, um renunciamento pessoal, e uma coragem de que só era mesmo capaz a alma estoica daqueles homens, que traziam para o meio daquele caos a consciência e a voz da civilização cristã.

Desde o primeiro dia tomaram desassombradamente a si a defesa dos índios, tanto junto às autoridades da colônia, como perante a própria corte.

Tiveram de transigir em presença dos fatos; mas nunca deixaram de combater a escravidão dos selvagens. Encontravam o vício tão inveterado, e tão inseparável da vida dos colonos, que tentar extingui-lo de chofre não seria menos que arriscar imprudentemente a causa a que se vinham dedicar. Ainda assim, insistindo sempre pelo respeito às míseras criaturas; falando em caridade quando a voz da razão não bastava; procurando comover se a justiça não valia; contemporizando aqui, cedendo acolá; ora pedindo, ora protestando; ainda assim fizeram-se os únicos protetores da raça desventurada.




5 - Ao mesmo tempo foram enfrentando os desregramentos dos colonos, não tendo com estes menos cuidado e zelo que com o gentio. Contra a prostituição da mulher indígena é que bramaram com toda a força do seu coração. E para atalhar logo, ao menos a parte da impiedade que mais diretamente interessava à sociedade futura, cuidaram de arrebanhar dos alcouces as crianças, filhas da ignomínia, para impedir que volvessem à barbaria das florestas.

E assim foram os padres combatendo todos os grandes vícios em que encontravam afundadas as duas raças.

E o que, sem receio de engano, se pode asseverar é que a tarefa mais rude e fatigante para o missionário não foi a que teve ele com o gentio!

Nos princípios, enquanto os colonos se sentiam fracos pelo número, considerou-se como altamente precioso o concurso dos padres. Estes, não só amansavam o selvagem, domando-lhe os instintos, como protegiam   contra multidões insurgidas as povoações policiadas.

Quando, porém, os colonos se foram sentindo fortes (do segundo século em diante) não precisaram mais dos padres; e estes passaram a ser para eles antes um empecilho que um amparo.

Por sua parte, viram logo os jesuítas, impotentes afinal contra os colonos, que a obra da catequese só poderia ser feita com proveito isolando o gentio, e para isso fundaram as suas reduções mais para o fundo do sertão, fora do alcance dos colonos, e livres, pelo menos, dos inconvenientes que  eram inevitáveis quando se punham em íntimo convívio as duas raças.

Mas este recurso dos padres foi, primeiro, muito combatido pelos governadores e depois, quando encontraram mais tolerância nas autoridades, veio criar males ainda maiores que aqueles que se queria evitar. Lá mesmo nos aldeamentos afastados iam os caça-bugres profissionais perseguir os neófitos agremiados nas aldeias.

Clamaram para a corte os jesuítas. A metrópole, ora apoia os padres, ora cede aos colonos.

Essa mesma dubiedade redunda em favor dos escravistas: mesmo quando amparados de leis protetoras, eram os índios perseguidos com a mesma pertinácia, como se nada valessem medidas que se sabia facilmente derrogáveis no dia seguinte.

Começa então entre os padres e os colonos uma luta tremenda que só veio a ter fim depois de meados do século XVIII, com a expulsão dos jesuítas.

Essas colisões fizeram-se mais desabridas no extremo sul e no extremo norte, onde a obra dos missionários tomou maiores proporções.



6 - Em São Vicente vinham desde muito os padres e os colonos em complicações cada vez mais irritantes. Até que chegou o momento em que tiveram de explodir em conflito formal. E para isso bastou um incidente quase fortuito.

Acossados de temporais, aportaram ao Rio de Janeiro, em 1640, uns missionários espanhóis de Guairá que tinham ido à Europa queixar-se contra os bandeirantes de Antônio Raposo Tavares que lhes haviam arrebatado catecúmenos daquelas missões. Traziam eles bula e carta régia mandando restituir aos padres os índios escravizados, e impedindo que se continuassem a fazer tais correrias contra as reduções. No Rio, ao publicar-se a bula, já houve tumultos, e até o Colégio do Castelo foi investido; mas a intervenção de autoridades afinal arranjou tudo sem mais lamentáveis excessos.

Em São Vicente, porém, onde havia muito maior número daqueles índios de Raposo, assim que se teve notícia do que se passara no Rio alarmaram-se os colonos; e reunindo logo uma junta de Câmaras, resolveram que era preciso tomar uma medida decisiva contra os jesuítas.

Enquanto essa junta parecia contemporizar na marinha, em São Paulo os camaristas e o povo incorporados vão ao Colégio da Companhia (2 de julho de 1640) "intimar os padres a que, dentro de seis dias, despejem a vila", e se retirem "para fora" da capitania. Como recalcitrassem os padres, foi-se-lhes dilatando o prazo para a retirada, até que no dia 13, pela manhã, reunidos os procuradores das diferentes Câmaras, e muito povo, exigem que "se execute o assento tomado na vila de São Vicente, cabeça da capitania, sobre a expulsão dos jesuítas".

Dirigem-se todos então, em tumulto para o Colégio, e dali fazem sair à força os oito padres que se achavam presentes.

Tentou Salvador Correia de Sá e Benevides, que governava a capitania, conciliar os ânimos escrevendo à Câmara de São Paulo. Nada, porém, conseguiu; antes parece que mais exasperou os paulistas. Alguns meses depois quis mesmo ir em pessoa renovar empenho pelos padres; mas nem se animou a passar de Santos, ao saber como estavam ainda as coisas em São Paulo.

Atendendo a queixas dos padres, ordenou a corte que fossem eles readmitidos. Os paulistas ficaram firmes, refratários à própria ordem formal do rei (era já D. João IV).

E o rei contemporizou. Só mais tarde é que se veio a resolver o conflito por meio de conciliação, mas sujeitando-se os padres às condições expressas que, para evitar dúvidas futuras, lhes impuseram os paulistas.

7 - No extremo norte, deram-se lutas análogas. Os dois primeiros jesuítas, que entraram no Maranhão depois da reconquista, tiveram de sair desenganados do seu intento de amparar os selvagens contra a prepotência dos colonos. Para agravar ainda por lá a situação em que se vão ver os jesuítas, concorreu a circunstância de haverem chegado também, tanto ao Maranhão como ao Pará, missionários de outras Ordens (franciscanos, carmelitas, etc.). Quase que em regra se punham os frades ao lado dos colonos contra os jesuítas. Criou-se assim, nas duas capitanias, uma situação permanente de desordens que ia impressionando cada vez mais o espírito da corte. Procurou-se dar solução aos males que perturbavam por ali a obra colonial. Era preciso, antes de tudo, regular a questão do gentio, e instituir um vasto plano de catequese.

É agora o padre Antônio Vieira, já grande figura de imenso prestígio, que toma a si a direção da causa.

Em janeiro de 1653 chegava ele ao Maranhão, onde já encontrou muitos irmãos que tinham vindo um pouco antes.

Tudo foi alegria nos primeiros momentos. A própria "nobreza" da terra (a que precisava de escravos), conquanto meio desconfiada, recebeu com simpatia e respeito aquele homem, que era uma celebridade na Europa, e que tinha grande prestígio na corte.

Não demorou, porém, que as coisas fossem mudando, até que tomaram proporções de colisão aberta entre os padres da missão e os escravistas.

Vai o padre Vieira à corte, ansioso e clamante e de lá volta refeito de coragem, para encaminhar aquela obra. E então não teve mais descanso o grande apóstolo. Vivia, ora nos sertões do Tocantins, ora na ilha de Marajó, ou no Ceará, ora a bradar nos púlpitos. Em parte alguma da América foi mais admirável a função da gloriosa milícia.

Com a retirada, porém, de André Vidal de Negreiros do governo, cai de novo em declínio o prestígio dos padres, e levantam-se outra vez os caça-bugres. E recrudesce de tal fúria a animadversão contra os missionários que as autoridades, os chefes de bando, com o apoio de outras Ordens e do clero secular, prendem todos os jesuítas (sem exclusão do próprio Vieira!) e os enviam para o reino, em 1661.


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Imagens:
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