3/30/2018

Literatura Brasileira: Grupo maranhense (Ensaio), de José Veríssimo


Grupo maranhense
Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Os comprovincianos e admiradores de Gonçalves Dias levantaram-lhe em São Luís uma estátua. De sobre o airoso fuste de uma palmeira de mármore, eleva-se a sua débil e melancólica figura de romântico. Em cada face do plinto onde assenta a planta que o poeta fez, com o canoro sabiá, símbolo da terra brasileira, destacam-se em relevo os medalhões de ilustres conterrâneos e camaradas do poeta: João Lisboa (1812-1863), Odorico Mendes (1799-1864), Sotero dos Reis (1800-1871), Gomes de Sousa. A ideia feliz da associação destes nomes na justa homenagem que ao máximo de seus filhos prestava a sua terra natal, comemora a coexistência simultânea nesse mesmo torrão brasileiro de um grupo de intelectuais, como ora dizemos, que por mal dela e nosso jamais se repetiria. Console-se o Maranhão, também à Atenas, que lhe deram por antonomástico, nunca jamais lhe voltou o tempo de Péricles.

Conquistado pelos portugueses ao franceses em antes de passados três lustros do século XVII, era desde 1624 o Maranhão constituído em Estado, separado do Brasil, aumentado do Grão-Pará, do Piauí e do Ceará. Como o Brasil, teve o seu governador particular, geralmente fidalgo de boa linhagem, sua legislação e administração privativa. A posição geográfica aproximava-o mais da metrópole que o Brasil, tornando-lhe as comunicações com ela mais prontas. Não seria pouco motivo para lhe atrair a imigração que se não desenraiza de todo da pátria e que é talvez, como qualidade de gente, a melhor. Nota o insigne historiador maranhense que o Maranhão recebeu menos degradados que o Brasil. Desde 1655, como galardão dos seus serviços na expulsão dos holandeses, foram pelo rei concedidos aos "cidadãos" de São Luís (e de Belém do Grão-Pará) os privilégios dos do Porto. "Qualquer que fosse, pondera o mesmo historiador, a importância destes privilégios, todos (os moradores) faziam muito empenho em alcançá-los, e nesta matéria, como em tudo o mais, se introduziram pouco a pouco graves abusos. Soldados, criados de servir, mercadores degradados, cristãos novos; uns simplesmente inábeis, outros até infames pela lei, achavam maneiras de introduzir os seus nomes nos pelouros, obtendo assim por uma parte as qualificações de nobreza e o exercício dos cargos da governança, e por outro a isenção do serviço militar na infantaria paga, e nas ordenanças". Desde os seus começos, foi o Maranhão país agrícola, de cultura de gêneros da terra e mais de algodão. Nesta cultura, também desde os seus princípios, empregou numerosa escravaria negra e indígena. A grande propriedade agrícola, mormente quando baseada no trabalho escravo, sempre e por toda a parte criou presunções ou fumos de fidalguia, vida ou aparências de grandeza. Excetuado talvez Pernambuco, foi o Maranhão, em todo o Norte do Brasil, o lugar de mais numerosa escravatura negra, e pela mesma situação de trabalhadores agrícolas onde esta mais maltratada e desprezível se achou. Por motivo ainda daquela real ou supositiva prosápia, foi ali mais vivo do que soía ser no resto do país o preconceito de cor. Mais porventura do que em outra parte do Brasil se conservou estreme acolá a branca, predominando na sua capital até a Independência, e querendo predominar ainda depois dela, o elemento português. Talvez sejam estes os motivos do sotaque maranhense aproximar-se mais do que nenhum outro brasileiro do português, o que explicaria também, sabida a influência da fonética na sintaxe, que ali se tenha falado e escrito melhor do que algures. Por que são os escritores maranhenses os que menos praticam a colocação brasileira dos pronomes pessoais oblíquos, senão porque a sua pronúncia se avizinha mais da de Portugal? Não se pode mais duvidar que este fato linguístico é em suma produzido por um fenômeno prosódico.
O Maranhão foi no Brasil um dos bons centros da cultura jesuítica, toda ela particularmente literária. Ali viveu alguns anos da sua vida, pregou vários dos seus sermões, escreveu muitas de suas cartas, participou das suas lutas e contendas o padre Antônio Vieira. Que desde o século XVII havia em São Luís poetas, embora nenhum nome tenha chegado até nós, mostra-o o fato da existência de devassas contra os homens versistas, autores de sátiras contra os governantes. Bequimão, o cabeça dos motins de 1684, possuía e lia livros de histórias de revoluções. Mais de um dos fidalgos portugueses que governaram o Maranhão, além de Berredo, o autor dos seus Anais, era homem culto e ainda de letras; e de outros funcionários coloniais portugueses como Guedes Aranha, Henriarte, há documentos preciosos do que chamo neste livro literatura de informação. Fosse qual fosse a constituição da sociedade maranhense nos tempos coloniais, tivesse ela no extremo norte a primazia da prosápia, da riqueza ou da cultura, e demais um sentimento cívico mais apurado pelas suas lutas com o estrangeiro invasor, ou brigas intestinas que muitas foram e que, bem como aquelas, poderiam concorrer para lhes aguçar o entendimento, o certo é que nesse período não concorreu o Maranhão sequer com um nome para engrossar o nosso cabedal literário. Não há com efeito um só maranhense entre os escritores brasileiros do período colonial.
Entretanto, mal acabado este, estreiam os maranhenses em a nossa literatura e da maneira mais brilhante. Efeito demorado daqueles antecedentes ou simples acaso, isto é, evento, fortuito, cujas causas não podemos deslindar? Antes de ter imprensa, teve o Maranhão, em 1821, um jornal manuscrito, como os faziam os rapazes nos internatos, o qual, em cópias tão numerosas quanto possível, corria a capital. Ainda nesse ano passou a folha manuscrita a impressa, sob o mesmo título de Conciliador maranhense, que revê o generoso intuito de empecer as demasias da agitação nacionalista, já bem começada, contra os reinóis. A partir daí multiplicam-se os jornais na província. Desde 1825 aparecem como publicistas, à frente de jornais, dois daquele grupo de intelectuais, Odorico Mendes e Sotero dos Reis. Outro, quiçá o maior dos quatro, João Francisco Lisboa, é jornalista desde 1832 e o será, com intermitências e sem fazer disso estado, pelo resto da vida. Desde o princípio foi escritor mais zeloso do seu estilo do que costumam ou podem ser jornalistas. Com a Revista aparecida em 1840, inicia Sotero dos Reis o jornalismo literário na sua Província. Era uma "folha política e literária" não só pela declaração do seu subtítulo, mas pela sua matéria e linguagem. "Quando se lhe deparava ensejo, não deixava passar uma obra literária de cunho sem dar dela notícia, assinalando-lhe as belezas e reproduzindo trechos de originais brasileiros ou portugueses ou traduzindo-os que eram em língua estranha". O jornalismo destes homens de letras, talvez nele deslocados, era doutrinal, de alto tom e boa língua.
Quaisquer que tenham sido as suas determinantes, existia já na época da Independência o gosto literário no Maranhão. Prova-o o apuro com que ali se estudava e escrevia a língua nacional em contraste com o desleixo com que era tratada no resto do Brasil e a parte que ali se dava no mesmo jornalismo político à literatura. Provam-no mais outros fatos. Em 1845, uma sociedade literária, composta de nomes não de todo obscuros nas nossas letras, funda um Jornal de instrução e recreio, que, além de versar assuntos didáticos e pedagógicos, "era revista de literatura amena". Outro grupo de homens de estudo e letras, no qual se encontram alguns do primeiro, fundou no ano seguinte uma Sociedade filomática, a qual também publicou uma Revista e iniciou, antes de ninguém mais no Brasil, as conferências literárias. Caso talvez mais notável, desde 1847 tinha o Maranhão uma imprensa capaz de imprimir com decência que lhe podia invejar a Corte, obras volumosas como os Anais de Berredo. Nessa oficina aprendeu Belarmino de Matos, talvez o melhor impressor que já teve o Brasil, e dela saiu para montar uma própria, onde nitidamente imprimiu bom número de obras, com acabamento então único e ainda hoje raro excedido. Não é menor testemunho deste pendor maranhense a possibilidade ali de livros como os de Sotero dos Reis e de publicações como o Jornal de Timon.
Neste ambiente, por qualquer motivo que nos escapa, literário, apareceu a bela progênie de jornalistas, poetas, historiadores, críticos, eruditos, sabedores que desde o momento da Independência até os anos de 1860, isto é, durante cerca de quarenta, ilustraram o Maranhão e lhe mereceram a alcunha gloriosa de Atenas brasileira. Beneméritos de mais demorada atenção e maior apreço pela sua importância literária e parte em a nossa literatura, são os já mencionados.
Manoel Odorico Mendes, nascido em São Luís em 1799 e falecido em Londres em 1864, é porventura o mais acabado humanista que já tivemos. À ciência das línguas clássicas, e da sua filologia e literatura, de que deixou prova cabal e duas versões fidelíssimas, embora de custosa leitura, de Virgílio e de Homero, juntava estro poético original, se bem que escasso. Foi também um erudito de coisas literárias castiças e exóticas. Coube-lhe reivindicar definitivamente para Portugal a composição original do Palmeirim de Inglaterra, pretendida pela Espanha, já com assentimento de erudição portuguesa. Mas sobretudo foi um tradutor insigne, se não pela eloquência e fluência, pela fidelidade e concisão verdadeiramente assombrosa, dada a diferente índole das línguas, com que trasladou para o português os dois máximos poetas da antiguidade clássica, não raras vezes aliás emulando-os em beleza e vigor de expressão. Também traduziu Mérope (1831) e o Tancredo (1839), de Voltaire. Assevera o clássico D. Francisco Manuel de Melo que "no pecado de traduções não costumam cair senão homens de pouco engenho". Que não era grande o de Odorico Mendes parece mostrá-lo o fato de não nos haver ele deixado, benemérito de citação e leitura, mais que um poema original, ele que tanto trabalhou e produziu em traduções. Esse poema é o Hino à tarde. Escrito em Portugal e publicado pela primeira vez na Minerva Brasiliense, em 1844, mesclam-se nesta composição o clássico e o romântico, uma inspiração ainda arcádica e europeia e sentimentos brasileiros e estilo moderno. É, nada obstante, um dos melhores produtos poéticos do tempo e merece ainda estimado. Já porventura prenuncia Gonçalves Dias pelo tom sentimental do seu lirismo mais subjetivo que o de Magalhães.
Francisco Sotero dos Reis, um ano mais moço que Odorico Mendes, mas seu condiscípulo de humanidades, sem ter tão completa cultura clássica deste, o sobrelevou pela maior amplitude e originalidade de sua obra. Principiou como Odorico Mendes e João Lisboa por jornalista político, conforme era necessário em época em que todo o brasileiro de alguma instrução e capacidade de expressão era solicitado, se não constrangido pelas circunstâncias, a dizer da coisa pública e a tomar parte na refrega política. Jornalista com letras e professor delas, foi-lhe fácil a transição para autor de livros, principalmente didáticos, Postilas de gramática geral aplicada à língua portuguesa pela análise dos clássicos (1862), Gramática portuguesa (1866), tradução dos Comentários de César (1863), e finalmente o Curso de literatura portuguesa e brasileira (1866-1868, 8.º gr., 4 vols.). Não obstante ainda didático e composto para uso dos seus discípulos do Instituto de humanidades, onde lecionava a matéria, é por este livro que Sotero dos Reis pertence à literatura e particularmente à história da nossa.
À crítica de Sotero dos Reis, não obstante informadíssima e alumiada por uma boa cultura literária clássica e moderna, falta porventura, com um mais justo critério filosófico ou estético, a necessária isenção de preconceitos escolásticos e patrióticos. Deriva por muito ainda das regras e processos quintilianescos e da crítica portuguesa de origem acadêmica. Não esconde ou sequer disfarça o seu empenho em engrandecer o nosso valor literário, aumentando o dos autores por eles estudado, muito além da medida permitida. Equiparar, por exemplo, o Marquês de Maricá a La Rochefoucauld é um despropósito que por si só bastaria para desqualificar a capacidade crítica e a inteligência literária de Sotero dos Reis, se a sua obra não desmentisse este conceito. Como quer que seja, o Curso de literatura, de Sotero dos Reis, é, no seu gênero, com a História do Brasil, de Varnhagen, e o Jornal de Timon, de João Lisboa, uma das obras capitais da fase romântica.
João Francisco Lisboa, nascido no Itapicurumirim, no Maranhão, em 1812, e falecido em Lisboa, em 1863, é das mais singulares figuras da nossa literatura. Com grande aproveitamento estudou as poucas letras que era possível aprender na capital de sua Província, tendo por mestre de latim e latinidade o seu futuro êmulo e rival Sotero dos Reis, treze anos mais velho do que ele. Fez-se homem quando os acontecimentos do 7 de abril de 1831, alvorotando o país, provocaram em todo ele as lutas e conflitos, não raro mais que de opiniões e de imprensa, entre brasileiros e portugueses ou caramurus, conforme a alcunha que lhes davam os nossos. Estreou nas letras como jornalista político com o Brasileiro, título que na época era um programa, em meados de 1832. Já havia então na capital da Província quatro jornais, "todos quatro muito exagerados e descomedidos na linguagem e desarrazoados nas doutrinas".
Os trechos desse jornal, reproduzidos na biografia de Lisboa pelo autor do Panteon maranhense, testemunham já no novel jornalista de vinte anos o reflexivo pensador, e diserto e vernáculo escritor do futuro Jornal de Timon. Como aos homens de verdadeiros talento literário e alta compostura moral, a política em que entrara como jornalista e com legítimas ambições de repúblico, não quis a João Lisboa. Ele despicou-se-lhe da recusa auspiciosa consagrando-se às letras. Mas no literato sentir-se-á sempre o repúblico malogrado que, sem amesquinhar-se em recriminações, se desforra com humor e ironia do desdém ou da boçalidade do povo soberano e dos seus dignos diretores. Na política e no jornalismo fora sempre um liberal, no mais alto e melhor sentido da palavra, mais adiantado e desabusado até que o comum dos liberais do seu tempo. Também o foi em literatura romanticamente, apesar da gravidade do seu feitio mental, sem temor do sentimentalismo, como quem sabia que, razoado, é ainda o sentimento o melhor estímulo da inteligência e da ação humana. Antes de conhecer pessoalmente a Herculano, e do seu comércio com o maior dos portugueses contemporâneos, já tinha João Lisboa no pensamento e na escrita o estilo em que se tem querido enxergar a influência do grande escritor português. O feitio e isenção do seu caráter deu-lhe a forma tersa, límpida, em que juntou com discernimento e garbo o casticismo português aos naturais influxos do brasileirismo. É menos purista do que Sotero dos Reis e Odorico Mendes, que aliás também, em rigor, não o são. Põe muitas vezes os pronomes à brasileira, porque lhe soariam melhor e ainda se não havia inventado a cerebrina teoria de fazer de um uso geral a constante de doutos e indoutos da nossa terra, erro crasso da língua. Não refoge de todo ao neologismo pertinente nem recua ao estrangeirismo expressivo e necessário. Encontra-se-lhe por acaso uma ou outra impropriedade ou sacrifício ao uso comum. Estes senões, se é certo que o sejam, e em todo caso raros, não lhe chegam a macular a escrita ou sequer a lhe empanarem a geral formosura. Tais e maiores se nos deparam nos melhores dos chamados clássicos da língua. Esta é nele portuguesa de lei pela correção gramatical e mais pelo torneio da frase, índole, número e propriedades do vocabulário, sem indiscretas escavações arcaicas e apenas com uma ou outra afetação impertinente de classicismo. Com alumiado entendimento leu e meditou os clássicos, o que não era costume aqui, e se lhes apropriou da língua, com exata inteligência da sua evolução e fino tato de escritor de raça.
A sua obra principal, começada a publicar em 1852, é o Jornal de Timon, obra sem precedentes na nossa língua e uma das mais originais da nossa literatura. No pensamento do autor devia o Jornal de Timon ser uma espécie de revista dos "costumes do tempo" vistos através do seu temperamento, cuja austeridade lhe valia dos seus concidadãos o apodo de misantropo ou mais vulgarmente casmurro, e descritos e comentados com o seu natural humor e veia literária. Dá-se antes como "amigo contristado e abatido" do que presenciava, que como "inimigo cheio de fel e desabrimento". O "seu fim primário", porém, ficaria "sendo sempre a pintura dos costumes políticos". Mas como na nossa terra, segundo observa perspicazmente, "a vida e atividade dos partidos se concentram principalmente nas eleições, transformando assim um simples meio, em princípio e fim, de todos os seus atos, as cenas eleitorais descritas sob todas as suas relações e pontos de vista imagináveis" lhe ocuparam grande parte do Jornal. De fato este se veio a dividir em três partes, a primeira sobre as eleições nos tempos anteriores ao nosso, a segunda sobre partidos e eleições no Maranhão, e a terceira e última relativa à história desta Província e por extensão à do Brasil. Sem muita regularidade apareceu o Jornal de Timon de 1852 a 1858, sendo recebido no país, não obstante o seu tom praguento, com merecida estimação e grandes louvores. Chegou esse apreço à negação epigramática de que fosse obra de brasileiro.
A primeira parte é um bom estudo histórico, em estilo ameno e humorístico, feito não sobre expositores de segunda mão, mas das mesmas fontes originais, das eleições nos tempos antigos, médios e modernos, não só com a ciência dos documentos, mas com a intuição e sentimento da vida pública dessas épocas. O estilo é o mais adequado ao gênero de que era o autor o criador aqui, natural, prazenteiro, bem-humorado e irônico. São as mesmas, com maior personalidade, mais ironia, até mais acrimônia que às vezes chega ao sarcasmo, as qualidades de estilo da segunda parte. Esta modificação de tom lha impunha o próprio assunto, por mais de perto lhe importar. Vibram-lhe na pena por mais que o contenha o seu bom gosto e natural compostura, e lhas disfarce a ironia, as paixões que lhe agitaram a mocidade e não estavam de todo extintas nem na sua alma, nem na sociedade que lha formara. Por isso é talvez essa parte a sua obra não só mais original, porém, do puro aspecto literário, mais curiosa e mais viva. Conquanto aplicada no Maranhão, fez João Lisboa nela um comentário perpétuo do que é entre nós a vida política, cifrada como ele argutamente reconheceu, nas lutas dos partidos e nas brigas eleitorais. Tem o seu opúsculo o sinal das obras que por virtudes de pensamento e de forma não envelhecem e ficam contemporâneas de todas as eras. Refere o seu citado minudencioso e fidedigno biógrafo que, horrorizado da escravidão (a qual na sua terra, justamente mais do que em outras do Norte, apresentava mais execrando aspecto), começou João Lisboa a escrever um livro, meio história, meio romance, da escravidão no Brasil, como propaganda contra ela. Foi isto nas vésperas de 1850 ou à entrada desse decênio. Em todo caso antes do Jornal de Timon. O aparecimento da Senzala do Pai Tomé, como castiçamente vertia o Uncle Tom's Cabin, de Beecher Stowe, onde parece achou semelhanças com o seu principiado trabalho, fizeram-no desistir de continuá-lo. Havia, entretanto, em João Lisboa um romancista, e esta intenção prova que ele próprio o sentia. Provam-no, porém, melhor As eleições e os partidos no Maranhão, ruim título de uma excelente porção do Jornal de Timon, onde há cenas, diálogos, invenções, descrições, criações de tipos, figuras e situações fartamente reveladores de que não carecia João Lisboa, antes as tinha em grau relevante, das qualidades de imaginação, sem falar nas de expressão, de um bom romancista. As duas primeiras partes do mesmo Jornal, revelam em João Lisboa um pensador político e um moralista, no sentido literário dado hoje a este vocábulo, como não temos talvez outro. Os seus Apontamentos, notícias e observações para servirem à história do Maranhão, que constituem a terceira porção da obra, confirmando-lhe as qualidades literárias, descobrem-lhe peregrinos dotes de investigador, de erudito e de crítico, e fazem lastimar que como historiador não nos deixasse mais que essa curta obra fragmentária e a Vida do padre Antônio Vieira. À história do Brasil, como ela vinha sendo feita aqui, até, se não mormente, pelo mesmo Varnhagen, história burocrática e oficial, ainda com o feitio de crônicas ou anais, sem imaginação, filosofia ou estilo, desanimada e tediosa, dava João Lisboa nova feição com a sua arte de fazer viver as personagens e os sucessos, aproveitando algum rasgo mais saliente deles com que os caracterizasse, descobrindo-lhes algum aspecto mais pitoresco ou lhos engenhando com bom gosto e justo senso das coisas históricas. Mas sobretudo com um sentimento brasileiro mais íntimo e perfeito que o de Varnhagen, muito maior sensibilidade artística e capacidade literária de expressão, e, também, compreendendo melhor do que nenhum dos seus predecessores os aspectos sociais e psicológicos da História e a importância do povo nela. Certos rasgos ou questões da nossa, como o respeitante aos índios, processos de colonização portuguesa, feições e caracteres diversos da vida colonial, ninguém aqui ainda os encarara com igual compreensão da sua importância, com tanta sagacidade e inteligência como João Lisboa. Com alumiado entendimento viu a questão dos índios sem as aberrações realistas de Varnhagen, nem o sentimentalismo romântico da época, sendo muito para notar em favor da sua inteligência a isenção com que apreciou o indianismo, em seu tempo tão vigoroso, e lhe viu a falácia: "Esse falso patriotismo caboclo, espécie de mania mais ou menos dominante, escreveu ele, leva-nos a formular quanto ao passado acusações injustas contra os nossos genuínos maiores; desperta no presente antipatias e animosidades, que a sã razão e uma política ilustrada aconselham pelo contrário a apartar e adormecer; e ao passo que faz conceber esperanças infundadas e quiméricas sobre uma reabilitação que seria perigosa, se não fora impossível, embaraça, retarda e empece os progressos da nossa pátria, em grande parte dependente da imigração da raça empreendedora dos brancos, e da transfusão de um sangue mais ativo e generoso, único meio possível já agora de reabilitação". Brasileiro de origem e nascimento, brasileiro pelas mais íntimas fibras de sua alma e pelo mais profundo do seu sentimento, João Lisboa é um dos nossos primeiros europeus, pelas lúcidas qualidades do seu claro gênio, tento da civilização e desdém dos nossos parvoinhos preconceitos nativistas e ainda patrióticos.
Não obstante carecer-lhe da última demão, é a Vida do padre Antônio Vieira ainda o que de melhor se escreveu sobre o famoso jesuíta, com mais exata inteligência do homem e da sua obra de missionário e de político, e de sua época. Não fora algum exagero de liberalismo, é uma obra que se poderia dizer atual.
Nada adiantaria considerar João Lisboa sob outros aspectos do seu variado engenho. Em nenhum desmereceu, quer pela força ou destreza do pensamento, quer pelo vigor ou beleza da expressão. Mesmo como orador, que dizem fora notável, deixou no seu discurso sobre a anistia magnífico testemunho de uma viril eloquência e da mais bela, sóbria e comovida linguagem oratória. É incontestavelmente um dos escritores que mais ilustram a nossa literatura, dos poucos que hão de viver quando, na seleção que o tempo vai naturalmente fazendo, houverem desaparecido grande parte de nomes ontem e hoje mais celebrados que o seu.
Outros nomes, menos ilustres, mas ainda estimáveis conta o grupo maranhense. São quase todos, se não todos, produto manifesto da influência destes, geração criada na sua admiração e pelo seu estímulo. Dos que têm o seu medalhão no pedestal da estátua de Gonçalves Dias, é Gomes de Sousa o único sem jus à história da literatura. Gomes de Souza (Joaquim) é de 1829 a 1863. Os seus contemporâneos tiveram-no em conta de gênio. Aos dezenove anos, já formado em medicina, foi nomeado, após brilhante concurso, professor da Escola mais tarde denominada Politécnica, e, parece, deu outras provas da sua extraordinária inteligência, rara capacidade de estudo e variedade de aptidões. Morrendo aos 34, não deixou mais que uma pequena obra fragmentária de matemática e uma antologia de poemas líricos das principais línguas cultas. Foi apenas uma bela e porventura legítima esperança malograda, mas de fato sem importância literária.
Lisboa Serra (João Duarte, 1818-1855). Contemporâneo em Coimbra de Gonçalves Dias e seu amigo dedicadíssimo, a quem este deveu amparo quando se achou isolado e sem recursos em Portugal. Poetou com longos intervalos e parcamente, mas com bastante sentimento e correção. Galvão de Carvalho (Trajano, 1830-1864). Andou sucessivamente a estudar por Portugal, S. Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, onde afinal se formou e ficou. Havia nele a massa de um bom, talvez excelente poeta, com muita sensibilidade e facilidade de expressão. Foi um dos primeiros que aqui cantou compassivamente o escravo. Cantou igualmente a paisagem, a vida campesina e coisas brasileiras, com sentimento e graça. Franco de Sá (Antônio Joaquim, 1836-1856). É poeta de grande sensibilidade e sinceridade de emoção e rara facilidade e singeleza de expressão, qualidades que a morte, colhendo-o aos vinte anos, lhe não deu tempo de cultivar.
Desvanece-se ainda o Maranhão com os nomes de Almeida Braga (Flávio Reimar), Celso de Magalhães, Marques Rodrigues, Dias Carneiro, Augusto Colin, Frederico Correia, Frei Custódio Ferrão, Vieira da Silva, Sousa Andrade, Antônio Henriques Leal, homens de letras ou de saber, todos que com obras de vários gêneros e mérito continuaram até perto de nós o movimento literário da sua província pelo grupo primitivo iniciado.
Este grupo é contemporâneo da primeira geração romântica toda ela de nascimento ou residência fluminense. O que o situa e distingue na nossa literatura e o sobreleva a essa mesma geração, é a sua mais clara inteligência literária, a sua maior largueza espiritual. Os maranhenses não têm os biocos devotos, a ostentação patriótica, a afetação moralizante do grupo fluminense, e geralmente escrevem melhor que estes.


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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital

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