4/02/2018

História do Brasil: Condições da colônia pelos fins do século XVIII (Ensaio), de Rocha Pombo


Inconfidência mineira: Condições da colônia pelos fins do século XVIII

Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

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1 - Chegamos à época em que, tendo atingido à sua plena maioridade, começam as populações da colônia a pensar gravemente no problema do seu destino. Já vimos em lições anteriores, como desde o segundo século se revela, por sintomas irrecusáveis, o espírito da terra em colisões com o regime colonial. Foi primeiro no Maranhão em 1684 - Depois, na região das minas, durante os dois primeiros decênios do século XVIII. Quase ao mesmo tempo, em Pernambuco (1710-1714).

Mas as causas de semelhantes manifestações, não só se agravam, como se fazem cada vez mais penosamente sentidas, ao passo que se põem com a alma dos colonos em contraste mais rude.

Pelos fins do século XVIII, havia em todo o país um espírito de povo que aspira a ser nação. A grandeza de território tornava difícil o concerto, entre populações tão distanciadas, no sentido da emancipação; mas esse desejo era latente em toda parte.

Nunca se sentiram mais pesados os gravames do regime colonial do que em Minas e nesta fase em que, ao lado da riqueza, se via lavrar a miséria, e numa terra de proverbial munificência.

Não eram só as classes humildes que experimentavam as angústias da situação a que se havia chegado. Mais, talvez, do que a massa, empobrecida e aviltada, aqueles próprios que tinham adquirido alguma fortuna sentem os extremos a que toca uma ordem de coisas que se exagera continuamente, à medida que um senso mais claro lhes desvenda as iniquidades.

As camadas inferiores, na sua ignorância e na sua penúria, vivem ali como num completo segregamento do mundo: para essa gente desventurada, o destino só pode ser aquilo mesmo e o horizonte da vida será sempre aquele que se fecha entre as montanhas. No seu triste fatalismo, resigna-se com a sua desgraça, como se esta fosse inevitável, ou como inerente à sorte dos que nasceram deserdados.

As classes ricas, porém, que melhor sabiam avaliar os proveitos da riqueza, não se consolavam de ver como a maior porção dos cabedais, que se arrancam das minas, vai para Lisboa.

Além disso, melhor que as desvalidas, podiam as classes ricas instruir-se, ao menos para saber que há no mundo, fora daquelas estâncias, alguma coisa preferível ao que ali se tem.

2 - Bastaria isto para explicar como é mesmo na capitania de Minas Gerais que se deviam dar as manifestações mais vivas desse espírito de independência que se vinha criando. Em parte alguma do país era tão forte como ali a colisão em que se punha, com a opressiva tutela da metrópole o orgulho do colono enriquecido nas minas.

Essa competição tornou-se mais sensível, e de violência crescente, no último quartel do século XVIII.

Para isso, concorriam múltiplas causas, cada qual de natureza mais propícia a dar-lhe vulto.

Desde meados do referido século, começara a declinar a produção das lavras. Como se devia reservar para a Coroa uma quantidade de ouro certa (regulada ainda pela soma que se recolhia na época de mais abundância) foi o déficit anual crescendo, ao ponto de se verem logo insolváveis os contribuintes.

Outro coeficiente da situação excepcional da colônia, e este de ordem geral, foi o desvalimento do grande ministro de D. José I, cuja política em relação ao Brasil, bem poderia ter, pelo menos, atenuado aquele espírito de rivalidade que vinha desde muito separando portugueses e brasileiros.

E entre as várias outras causas que ainda poderiam  citar-se como fatores do ânimo geral com que em Minas (e em todo o Sul do país) se foi sentindo, agora mais que nunca, como a consubstanciar todos os males, a mão de ferro da metrópole — a mais poderosa foi, sem dúvida, aquela como súbita eclosão da alma da terra a entrar em contato com o mundo.

Os homens de certa cultura que vinham da Europa, e visitavam a capitania; os próprios funcionários, e principalmente os magistrados, todos mostravam-se maravilhados daquela natureza; e pondo em confronto, com o que havia no estrangeiro, as condições em que ali se vive, nada dissimulavam do seu espanto aos próprios filhos da terra; e pontuando de comentos as notícias que referem, e as misérias que estranham a par das maravilhas, vão vertendo na alma daqueles povos o filtro que tem de agitá-la.

3 - Em Vila Rica, e em todos os centros mais notáveis de Minas, havia já bom número de homens que se distinguiam pela inteligência, e muito principalmente pelo interesse com que aventam ideias e estudam questões que entendam com o futuro do país.

Desde muito que as famílias mais abastadas faziam educar os filhos na Europa. Esses moços voltavam do velho mundo para aumentar o número dos que pensam já em pátria, e cogitam do destino, a ansiar por novo dia. É assim que se ampliavam por ali os círculos da vida colonial, onde, agora mais decisivamente, se ia elaborando o pensamento da nacionalidade futura.

Pelas vésperas do que se vai passar na capitania de Minas, em alguns países da Europa havia muitos estudantes brasileiros. Imagina-se como deviam andar por lá aquelas almas, no momento em que o povo norte-americano se apresentava no cenário do mundo; e em que a França, preparada para o seu papel, sentia os sinais do cataclismo que vem.

Em Coimbra, doze rapazes, que cursam a Universidade, entram em concerto, e assumem, por um pacto de aliança, o compromisso de levantar a ideia da independência logo que voltem ao Brasil.

Em França (Montpellier) estudavam também muitos jovens brasileiros; e entre eles, só de Minas e do Rio, contavam-se José Joaquim da Maia, José Alvares Maciel, Domingos Vidal de Barbosa, José Mariano Leal, José Pereira Ribeiro e outros. Estes moços acompanhavam com avidez o movimento de ideias que se fazia na Europa, e sobretudo em França. Entusiasmados com os sucessos da América do Norte, consolavam-se das coisas da pátria, observando e discutindo tudo quanto pudesse interessar-lhe.

De um deles, José Joaquim de Maia, sabe-se até que chegou a tratar formalmente do assunto com o grande Jefferson, então embaixador dos Estados Unidos em Paris.

Com a serena confiança de quem se afoita pela mais nobre das causas, escreveu ele ao célebre diplomata e estadista uma carta, que é como um verdadeiro clamor de angústia que saísse já da alma da pátria. Era tal a firmeza com que lhe falava o desconhecido, que o embaixador prontamente lhe respondeu, com a discrição própria do seu ofício, emprazando-o para uma entrevista. É o próprio Jefferson que nos conta o que se passou nessa entrevista, cuja importância se sente em cada palavra do resumo que entregou à história.

4 - Esse documento expõe, com uma concisão admirável, todas as condições do problema; e conquanto se estenda a todo o Brasil, deixa bem claro que é na capitania de Minas que se põe a força principal, os grandes elementos com que se tem de contar.

A situação da colônia desenha-se com tão vivas cores, e é tão magistralmente sintetizada, e apresenta um caráter de verdade tão impressiva que seria preciso admitir, para tanta segurança, algum espírito muito alto, e de uma capacidade política excepcional a falar pela voz daquele moço. Chegou-se, talvez por isso, a pensar que José Joaquim da Maia tivesse mesmo ido à Europa comissionado por homens de muita importância do Rio de Janeiro e de Minas. Ele próprio, aliás, em sua segunda carta a Jefferson, diz que foi especialmente à França "para desempenhar esta comissão".

O embaixador, que ouvira atentamente a palavra sincera, concisa e brilhante do patriota brasileiro, ponderou-lhe que não tinha do seu governo instruções que o autorizassem a dizer uma só palavra a tal respeito; e que se limitaria, portanto, a comunicar-lhe ideias pessoais sobre a causa que via sustentada com tanto ardor e convicção. Fez-lhe sentir que os americanos do Norte não estavam em circunstâncias de comprometer a nação em uma guerra com Portugal, cuja amizade desejavam especialmente cultivar; tanto assim, que com ele acabavam de fazer um tratado de comércio; mas que, não obstante essas considerações, podiam estar certos os brasileiros de que uma revolução feliz no sentido da sua independência só poderia excitar interesse e simpatia nos Estados Unidos; que a esperança de consideráveis vantagens, naturalmente atrairia para o Brasil muita gente em seu auxilio; que por motivos mais nobres não deixariam de vir até muitos oficiais; e que os cidadãos americanos, podendo sair de sua pátria livremente, sem necessidade de licença do governo, poderiam da mesma sorte dirigir-se para outro qualquer país.

Despedindo-se do embaixador, partira Joaquim da Maia para a capital portuguesa. Conquanto o êxito da tentativa não fosse tão completo como esperava, muito longe de desanimar saiu de Nimes aquele nobre e grande coração. Nem seria decerto porque se tivesse desiludido dos seus sonhos que ele resolveu logo voltar para o Brasil.

Preparava-se, no entanto, para embarcar, quando caiu enfermo, e em poucos dias faleceu.

5 - Os esforços daquele homem na Europa não foram, porém, estéreis. De quanto lá fazia dava ele informações para a terra; e tanto em Minas, como no Rio, os que nutriam a mesma esperança de que ele vivera, exultavam com as notícias que lhes vinham.

Aquele fogo que o incenderá e exaltara, e que se não extinguira com aquela vida, teria de vir ainda aquecer corações na terra desventurada, para ela transportado em outras almas a que soubera comunicá-lo o malogrado patriota.

Tão grande vulto chegou a tomar no velho reino a ação daqueles brasileiros na Europa, e tão exageradas principalmente eram as versões, que depressa se espalharam sobre a audaciosa tentativa de Joaquim da Maia, que em Lisboa, e noutros grandes centros portugueses, começaram logo a correr, alarmando a quantos tinham interesses no Brasil, os boatos mais estranhos, dando como perdida para a Coroa, ou em vésperas de grandes sucessos, a mais valiosa porção dos domínios ultramarinos.

Além de tudo isso, andavam naquele tempo os espíritos tão impacientes e agitados lá na Europa, que não se hesitava em arquitetar, em relação às colônias americanas, os planos mais disparatados. Aventou-se até,  em chancelarias, a ideia de constituir na América, para a família de Bragança, um vasto patrimônio formado pelo Brasil e por uma parte das províncias espanholas do Prata ou do Pacífico, desde que incorporasse à Espanha o território continental do reino.

Mas é curioso que só num ponto, e este da mais alta importância no caso, fosse omisso, ou pelo menos mal definido, o quadro com que procurou Joaquim da Maia impressionar o espírito do grande político americano: é aquele que devia figurar como causa imediata e atual do levantamento dos colonos, e que era a situação em que se encontrava a capitania de Minas — o núcleo onde, pelas suas condições peculiares, mais instante era o clamor contra o governo da metrópole.

Ali, sob o peso de imposições descomunais, sentiam-se os povos esmagados. Para agravar todos os despotismos que os oprimiam, os quase cinco anos da administração de Luís da Cunha Menezes foram uma série ininterrupta de vexações e tiranias. Foi este homem que preparou, com a sua política odiosa, os elementos da conjuração. Os seus erros, excessos e crimes, provocaram em toda a capitania uma verdadeira insurreição moral: e só o terror do escarmento podia ir contendo aquele protesto de almas, que na sua amargura só se confortam de abominar o tirano.

6 - Quando em 1788 chegou a Minas o novo governador. Visconde de Barbacena, aquela ansiedade geral já se concretizava, nos corações mais sensíveis, em um franco pensamento de repulsa contra a causa de todas aquelas misérias. Tão veementes eram já os impulsos de sacudir o jugo da metrópole, que ninguém pôde ter alívio com a retirada de Luís da Cunha. O grupo de homens, em cujo espírito está mais viva a ideia de  independência, sente antes agora motivos mais fortes para não esquecer que a desgraça não está nos homens, senão no regime.

Em nenhuma outra capital da colônia se encontraria talvez tão grande número de homens notáveis que se associassem e se unissem tão depressa, dir-se-ia pelo instinto da grande causa.

Não se poderia dizer a qual daquelas figuras se deve atribuir a iniciativa, o primeiro movimento de que decorreu o concerto decisivo. Crer-se-ia que o mesmo sentimento, a mesma aspiração, nascera simultaneamente naquelas almas.

O mais que se pode avançar é que o pensamento da revolução nascera entre os três grandes poetas da até hoje sonhada Arcádia Ultramarina: Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Inácio José de Alvarenga Peixoto.

Era o Dr. Cláudio da Costa, além de notável espírito e insigne cultor das letras, um advogado de nomeada. Tinha feito mesmo na advocacia a sua fortuna. Vivia em abastança. Nascido em Mariana, e dispondo de vastas relações, gozava de geral estima e muito prestígio na capitania. Era o mais idoso dos três. Formara-se em Coimbra, e alcançara na Europa "a fama de delicadíssimo poeta da escola italiana, sendo admitido na Arcádia de Roma, sob o nome pastoril de Glauceste Satúrnio".

Tomás Gonzaga era poeta e magistrado. Como poeta é hoje o mais popular dos três. Nascido em Portugal, mas de família brasileira; homem de espírito meio tíbio, mas de boa índole, muito generoso, delicado e afável, cercou-se logo de muitas simpatias em Vila Rica, onde exercia a judicatura. No momento da conjuração, preparava-se para ir tomar posse do seu lugar na Relação da Bahia.

Alvarenga Peixoto, também poeta e advogado, era fluminense; mas estava em Minas havia uns dez ou doze anos, tendo ido para ali, ao voltar da Europa, como ouvidor da comarca do Rio das Mortes. Casara-se em São João d'El-Rei com uma senhora distintíssima, D. Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira, cujo nome entrou na história tanto pela sua grandeza moral, como pela enormidade da desgraça que a feriu.

7 - É entre estes três homens que primeiro lampejou a ideia de fazer de Minas um Estado independente. Seria mais exato talvez dar como concebida pelos dois primeiros, ou por um deles, e afagada logo por ambos, essa ideia; pois o que se sabe é que Alvarenga Peixoto entrou na maquinação atraído por aqueles, já conspirados.

Gonzaga e Cláudio eram amigos íntimos; viviam sempre juntos, lidando com os livros, compondo poemas, numa profunda e inalterável solidariedade de alma. A eles associava-se, com os mesmos fervores, o outro poeta, sempre que estava em Vila Rica.

É na casa de Cláudio, ou na de Gonzaga (mais ordinariamente na deste) que se faziam as encantadoras palestras, quase ao ar livre, em ampla varanda aberta para o jardim; um recitando versos, outro lendo uma composição que ultimara, ou algum trecho de novidades chegadas da Europa.
Àquele grêmio foram pouco a pouco associando-se outros fiéis; como o cônego Luís Vieira da Silva (que passava como orador sacro de alto mérito); o padre Miguel Eugênio da Silva Mascarenhas; o Dr. Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos; Francisco Gregório Pires Monteiro Bandeira, e outros, até de outras vilas, que se não esqueciam de visitar ao menos o cenáculo, de quando em quando, já que não podiam ter a assiduidade dos que exercem o sacerdócio.

É daquele doce convívio espiritual que a política vai tirar aqueles homens, que tão embevecidos andavam dos seus sonhos de glória literária. Talvez até que sem que se apercebessem, foram eles, do culto das Musas, passando ao de outra divindade menos serena e mais tremenda: quando despertaram daquela quase inconsciência, em vez de poetar, conspiravam.

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