4/02/2018

História do Brasil: Conjuração de Vila Rica (Ensaio), de Rocha Pombo



Conjuração de Vila Rica



Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

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1 - Àquele primeiro grupo de conjurados foram juntando-se grande número de pessoas das mais consideradas, tanto em Vila Rica, como nos outros vários municípios da capitania. Toda a gente que tinha alguma importância pela fortuna ou pela cultura, interessou-se mais ou menos solicitamente naquela aspiração, que era afagada por todo mundo, embora nem todos tivessem o mesmo desassombro. Um só sentimento estava em todos os corações; mas o rigor das leis, o medo do castigo só não reprimia esse sentimento nos mais indômitos e altivos.


Entre estes, a figura mais estranha é o alferes de cavalaria de linha Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes. Era este homem, nascido na terra de Minas, um tipo singular de criatura que se encontra com o mundo numa grande ânsia de ter o seu papel. A condição modesta em que se sentiu ali, no meio da riqueza, serviu-lhe de estímulo forte nos primeiros passos da vida. Experimentou várias profissões; de todas desenganou-se. Dir-se-ia que de todas as vicissitudes lograra apenas um proveito: sentira quanto o mundo era doloroso. Revolta-se então contra o seu meio, e contra o seu tempo.

Há naturezas assim, que parecem vir antes da sua hora e, por isso mesmo, sem saber como é que vêm...

E desde que se desgarra do seu caminho, o que tinha de suceder era fatal: pondo-se em contraste consigo mesmo, as complicações em que entra, só amparado da sua índole, deviam levá-lo ao sacrifício.

Já passava pelas regiões mineiras um vago sussurro precursor da tormenta que vinha, quando resolve o Tiradentes vir ao Rio, a pretexto de negócios. Já havia visitado a capital da colônia, e conservava dela, ainda, a mais viva impressão.

Mas o que ele procura agora, saindo para um centro mais vasto, não é a sua fortuna pessoal. Nunca teve, aliás, a dirigi-lo na vida, nenhuma preferência pelo seu próprio interesse. Tinha mesmo fama de abnegação, e desapego de bens materiais, ao ponto de ser tachado, se não de descuidoso, pelo menos de indiferente a confortos, nunca revelando impaciências por adquirir.

O que ele deseja agora é ter uma parte mais ativa, e entrar com um concurso mais eficaz na obra que se vai fazer na terra das Minas.



2 - É este o pensamento que o absorve quando se põe a caminho para o Rio, um pouco antes talvez de 1788, depois de haver obtido a necessária licença.

Vinha radiante de esperanças; e assim que chegou aqui apresentou-se ao Vice-Rei; e sem dar muito pela indiferença com que o recebera Luís de Vasconcelos, passados alguns dias, foi levar-lhe uns planos de melhoramentos que projetara fazer na cidade.

Parece que o Vice-Rei não deu muita importância ao que lhe requeria aquele simples alferes, que não dispunha de recursos nem de valimento para obras de certa monta; e que parecia mais um maníaco, meio estouvado e aventuroso, do que um legítimo especulador ou homem de negócios. Em todo caso, entendeu que não havia motivos para deixar de remeter os papéis do requerente para a corte.

Em Lisboa tomou-se mais a sério o que se propunha o peticionário executar; tanto assim que o Conselho Ultramarino devolveu os papéis, a fim de que sobre a matéria deles informasse o Vice-Rei.

Enquanto simulava preocupar-se com estas coisas, ia o Tiradentes, com muita prudência, sondando os ânimos, tanto nos quartéis, como entre o público em geral.

Estava ainda no Rio, quando passou para Minas o Visconde de Barbacena. Uns três meses depois chegava também da Europa o Dr. José Alvares Maciel, com quem se encontrou logo o conjurado. É fácil imaginar o que se passou entre aqueles dois corações incendidos da mesma fé, um falando das misérias da terra; outro, das grandezas que vira no estrangeiro.

Segue o Dr. Maciel para Minas, e vai lá encontrar as provas de quanto lhe dissera o Tiradentes. Os povos da capitania estavam todos como em grande alarma: as condições em que ali se vive há longos anos, parece que vão tocar agora ao seu extremo. Viera o Visconde de Barbacena encarregado especialmente de reparar os prejuízos que desde muito vem sofrendo a Real Fazenda; e trazia ordens formais de arrecadar, por meio de derramas e execuções, todas as dívidas em atraso.

O enorme ativo acumulado punha já os contribuintes, e demais devedores ao erário, em situação de absoluta insolvência. Só o quinto do ouro ascendia a perto de 540 arrobas. E isso fora dívidas de outras origens. Englobando só os compromissos do quinto, dos dízimos e das entradas, andava o alcance dos colonos, na capitania, em perto de seis mil contos.

3 - Assim que se empossou do cargo, cuidou Barbacena, com muita habilidade, de preparar o espírito geral para a escabrosa tarefa de que tinha de dar conta. Começaria por uma derrama com que se cobrisse o déficit do exercício corrente, até que da corte viessem ordens terminantes quanto aos atrasados.

E então não se imagina o que se dá em toda a capitania. O susto, o desvario, o terror em que caem aquelas populações, não se descrevem. No meio dos clamores, os alvitres mais absurdos, expedientes cada qual mais impraticável, todos os recursos do desespero se sugerem, com os quais se aumentam as aflições de todo o mundo. Aventou-se até a ideia "de fugir à desgraça por um êxodo geral, por uma retirada em massa para o fundo dos sertões, até onde não chegasse aquela voz terrível da derrama".

O núcleo de conjurados de Vila Rica, que não cessara de agir, entra agora numa fase decisiva. Só mesmo a revolução é o único apelo que resta na conjuntura em que se encontra todo o povo.

De volta do Rio, aparece por aqueles dias, na capital das Minas, o alferes Tiradentes (fins de 1788). Ao chegar, procura logo os companheiros; e nem reassumiu o seu posto no regimento, pretextando moléstia.

É agora que se organiza a conspiração, e que tomam corpo num projeto definitivo as ideias que agitavam aquelas almas.

Tratou-se primeiro de assegurar o concurso do chefe da força pública, que era o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, homem circunspeto e de grande influência na capitania.

A entrada desta figura na conjuração deu-lhe a garantia de uma vitória infalível, e arredou todas as dúvidas e receios. Nas casas dos vários chefes, e até mais ordinariamente na do próprio Freire de Andrada, faziam-se os conciliábulos. Aí tratava-se da revolução quase abertamente, como se ninguém mais sentisse necessidade de conservar em segredo uma causa de sucesso seguro, e que só aguarda o seu dia.

Tinha-se já certeza do socorro da França e dos Estados Unidos, desde o momento em que se levantasse o grito da independência. Quando às outras capitanias, nem era possível que por sua vez não se insurgissem com o exemplo da de Minas. E afinal, bastaria que, ao mesmo tempo que em Vila Rica, se proclamasse a separação no Rio de Janeiro e em São Paulo (como se espera), para que toda a colônia rompesse os laços que a prendem a Portugal.

4 - Ideou-se logo a nova república, dando-se-lhe como símbolo a figura de um gênio despedaçando grilhões. A bandeira seria toda branca, e nela se inscreveria como lema parte de um verso de Virgílio (da I écloga) — Libertas, quae sera tamen. A capital da república seria São João d'El Rei. Criar-se-ia logo uma Universidade em Vila Rica. Confiscar-se-iam, para o Estado, todos os valores que estivessem no erário, declarando-se extintas as dívidas dos contribuintes em atraso. Declarar-se-ia livre a entrada nos distritos mineiros e isentos de direitos os produtos das lavras. Fundar-se-iam fábricas de todos os artigos que até ali se importavam da metrópole. Reconhecer-se-ia o direito à proteção especial do Estado em favor dos pais que tivessem mais de cinco filhos. Abolir-se-ia a escravidão, dentro de certos limites ou condições. Criar-se-iam escolas para instrução do povo.

Por princípios de 1789, na chácara do Cruzeiro, residência de Freire de Andrada, concertou-se o plano do levante. Fez-se o inventário das forças de que se dispunha, e distribuiu-se a cada conjurado o seu papel. Não se marcou dia para o rompimento, ficando entendido que seria aquele em que se começasse a efetuar a derrama. O aviso seria dado a todos por meio de uma senha ("É tal dia o balizado").

No dia em que a Junta de Fazenda lançasse a derrama, deviam acudir à Vila Rica os conjurados, que por ele esperariam nas vizinhanças; e à noite entrariam em tumulto pelas ruas, aos gritos de — Viva a liberdade! Sairia então Freire de Andrada com as suas tropas sob o pretexto de abafar o motim, dissimulando as suas intenções até receber notícia de estar preso o Governador.

Estava Barbacena quase sempre no palácio da Cachoeira do Campo, distante umas três léguas da vila. Iriam ali prendê-lo os que estavam dessa diligência encarregados. A menos que tentasse resistir com risco para a escolta, seria ele conduzido até a fronteira das Minas, dizendo-se-lhe que se retirasse para Portugal, porque o povo mineiro já sabia governar-se. Se quisesse reagir, pagaria então, com a cabeça, semelhante veleidade.

Qualquer que fosse a notícia que se recebesse da Cachoeira, proclamar-se-ia a república em Vila Rica, decretando-se logo a pena de morte contra aqueles que à nova ordem de coisas não aderissem prontamente.

5 - Estava, pois, tudo previsto e ordenado no sentido de garantir o sucesso da conspiração. Tão segura confiança tinham no triunfo os conjurados, que não faziam mistério de coisa alguma.

Além de muito certos do golpe preparado, sabiam já que o Governador não era homem capaz de aguentar-se num grande momento. A sua têmpera de déspota, estúrdia como a de todos os áulicos, é a mais avessa possível ao sacrifício. Nem eram as da administração e do bem público as funções que estavam em correspondência com o seu caráter, e muito menos com os intuitos que o haviam trazido à América. Bem sabia ele o que é que se costumava buscar no Brasil; e não seria o exercício normal e tranquilo daquele cargo que havia de recomendá-lo perante a corte.

É assim que logo de começo parece a todo mundo um homem fechado e misterioso, esquivo e quase sinistro, metendo-se no seu retiro fora da vila.

Se se não esquece que devia ter vindo bem informado quanto a certos fatos ocorridos ali na terra das Minas, e muito prevenido contra a fama de turbulentos, atribuída lá no reino aos mineiros, é lícito suspeitar que Barbacena muito de propósito ficou ali, retruso, de atalaia, à espera do seu dia... Para confirmar esta suspeita, é só ver como se ufanou da sua "glória de haver descoberto a tempo e atalhado a grande maldade" como dizia ele próprio para a corte.

Aos olhos dos conjurados, porém, aquela circunstância de afastar-se da capital é antes um indício de negligência ou desapercebimento que lhes é favorável.

Chega-se, pois, ao momento em que só se espera pelo dia da derrama. Sem isso não se faria unânime a insurreição. Houve até quem procurasse apressar o lançamento; pois dessa medida agora depende tudo.

É por este tempo, seguro de que a revolução está iminente, que, de acordo com os outros chefes, resolve o Tiradentes vir outra vez ao Rio, na ânsia de levantar, simultaneamente com as de Minas, as populações da grande metrópole colonial.

Saiu de Vila Rica apenas acompanhado de um mulato, seu escravo, e certo de que vinha ser um núncio da grande nova que todos anseiam.

Mais ou menos por aqueles mesmos dias, no entanto, entrava Barbacena no "segredo" da conspiração. Dissimulado e ardiloso, cuidou antes de tudo de eliminar a medida que se considerava como o principal motivo do levante planeado: suspendeu a derrama, dando para esse ato razões muito naturais, de modo a não espantar os conjurados, e poder assim segurá-los todos.

Sem sair da Cachoeira, pôs em ação os próprios delatores: enquanto, sem açodamentos, ia cortando aos conjurados todas as veredas.

6 - A suspensão da derrama logo impressionou a muitos, que viram assim burlado todo o plano. Dentro de alguns dias, tinha-se plena certeza de que o Governador já estava agindo. E então é que se viu como naquelas mesmas almas, que há pouco se incendiam pelo nobre ideal, vai acordar a miséria dos instintos.

E, entrando francamente no seu papel, ufano daquele amplo horizonte que lhe abre o seu destino, sai agora Barbacena do seu mistério. Manda chamar à sua presença o primeiro delator; e Joaquim Silvério dos Reis, num grande terror de consciência, escreve e assina a denúncia formal.

Em seguida, entendeu o Governador que era tempo de dar conta de tudo ao Vice-Rei; e como soube da partida do Tiradentes para o Rio, fez imediatamente seguir para aqui também o próprio Joaquim Silvério, com ofícios para Luís de Vasconcelos.

Por todo o caminho do Rio, vinha agora, o Tiradentes, como um arauto do novo dia que vai suceder à longa noite colonial. Em toda parte, pelas fazendas, pelas casas de negócio, pelas estalagens, pelas estradas, ergue a voz desassombrado, proclamando a boa nova, como um visionário em delírio. A sua palavra inflamada espanta a toda gente. Os que o ouvem, ou ficam tomados de terror, ou vencidos da mesma insânia.

Como fizesse muitas digressões pelo caminho, foi a viagem muito retardada. Pôde, por isso, alcançá-lo Joaquim Silvério, conquanto muito depois dele tivesse partido de Vila Rica. Adiantou-se-lhe, no entanto, o Tiradentes na rota depois do encontro, e chegou ao Rio alguns dias antes dele.

Na capital da colônia não teve o revolucionário mais prudência e cautela que durante a viagem. Esqueceu-se de que no Rio as condições do ânimo geral eram muito diferentes do que em Minas. Aqui, mais do que lá, está-se mais perto da pessoa do soberano; e é, portanto, mais forte o supersticioso terror da autoridade. Aqueles mesmos com quem contava procuram evitá-lo.

Joaquim Silvério, que chegara depois do Tiradentes, apresentou-se logo ao Vice-Rei. Não quis Luís de Vasconcelos convencer-se da gravidade daqueles fatos que julgava exagerados. Por não parecer, no entanto, em caso de tal natureza, menos escrupuloso e solícito que o seu colega de Minas, deu a Silvério as instruções que devia este seguir para trazer sempre à vista o pobre alferes.

7 - Desesperava o Tiradentes vendo correr o tempo sem nenhum sinal do levante que deixara em vésperas de romper em Minas. Começou logo a ter suspeitas de que andava sendo seguido e vigiado. Deliberou então, ocultar-se até que viesse algum aviso. Deixou, pois, a casa onde se hospedara, e escondeu-se em outra que se lhe abriu na rua dos Latoeiros (hoje Gonçalves Dias). Tinha já tudo preparado para sair da cidade no caso em que o rompimento em Minas não se desse por aqueles quatro ou cinco dias.

Ao saber que o alferes havia subitamente desaparecido, alarmou-se o Vice-Rei. Expediu imediatamente aviso para Minas, e espalhou patrulhas pela cidade e por todos os bairros vizinhos.

Não custou descobrir o esconderijo do Tiradentes: ofereceu este próprio ao Vice-Rei o fio de Ariadne; e é afinal o mesmo Joaquim Silvério (como se andasse disputando tenazmente o seu triste lugar na história) quem entrega a vítima ao algoz.

Com grande aparato de força, efetua-se a prisão do conspirador, que é metido num dos calabouços preparados na ilha das Cobras.

Enquanto isto se passava no Rio, lá na terra das Minas ia Barbacena fazendo prender os chefes da abortada conspiração, sendo o primeiro que lhe caiu nas mãos o desembargador Tomás Antônio Gonzaga. Em seguida: Domingos de Abreu Vieira; o Dr. Inácio J. de Alvarenga Peixoto; o padre Carlos Correia de Toledo e Melo; o irmão deste, Luís Vaz de Toledo Pisa; o cônego Luís Vieira da Silva; o Dr. Cláudio Manuel da Costa; Francisco Antônio de Oliveira Lopes, e muitos outros, à medida que vai a devassa desvendando nomes.

No seu grande afã de descobrir "monstros de perfídia", emulam Barbacena e Vasconcelos, ao ponto de se porem logo em conflito de jurisdição, cada qual mais suscetível, e mais cioso do seu papel.

Entramos agora na fase dolorosa da Inconfidência. Desde o momento em que a desgraça se ergueu, como um fantasma, diante daquelas criaturas, abateu-se-lhes aquela mesma alma que andara rugindo e protestando; e em vez de sentir o velho inimigo contra o qual se haviam aliado, hostilizam-se agora e acusam-se mutuamente, julgando cada qual que tem a salvação na perda dos outros todos.


A insânia sagrada daquela causa esquecida refugiou-se apenas no coração de um homem — o Tiradentes! — a carregar, agora, com o repúdio de toda uma geração!

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