5/07/2018

A poesia de Cesário Verde (Crítica), por Zeferino Brazil



A poesia de Cesário Verde
Texto publicado originalmente no jornal "A Federação", em edição de 1926. Transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2018)
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Cesário Verde foi-se aos 33 anos, com a mocidade no espírito, com a inteligência em flor e com o coração transbordando de bondade. Porque dizem que Cesário Verde era de uma bondade sem exemplo em poetas que fazem timbre de ser originais e atípicos.

Ele viveu tempo suficiente para ter deixado uma obra vasta — e apenas deixou um livro.
Há homens assim: idealizam mais do que produzem. São geralmente os que têm uma concepção exagerada de arte, o que para mim não passa de falta de imaginação, de “vis” criadora. O artista é todo nervo, vibração, impressionabilidade e, portanto, fecundo. Tudo para ele é motivo de arte, e os temas lhe acodem a cada passo, a cada volver de olhos, a cada vibração que o sacode. Não há futilidade que a seus olhos não tenha facetas inéditas, e a sua superioridade está precisamente em descobrir nas coisas mais vulgares aspectos sempre novos.
Assim, quando o tempo sobrou o trabalho, não admito o pretexto de ser artista requintado para desculpar a obra restrita, embora ótima.
Mas com Cesário Verde isto pouco importa.
O seu valor é indiscutível, e é preciso que ele fosse realmente extraordinário, para poder ter sido admirado até ao fanatismo, como foi, por dois dos escritores mais amargos, violentos e parcos de elogios que floresceram e escreveram em terras de Portugal — Fialho de Almeida e Silva Pinto.
O primeiro, quando foi convidado por um amigo para prefaciar o livro póstumo do poeta, assim abre o prefácio — que não chegou a concluir:
“A folha que você requer sobre Cesário Verde não pode ter em si um estudo técnico donde a talhe doce ressurja essa personalidade que foi na minha vida literária um dos poucos altares a que genuflecti com fervor cristianíssimo.”
Por quê? perguntarão.
Fialho di-lo, linhas adiante: “Se te contar que há quatro noites redijo notas para elucidar este prefácio, sem que até agora nenhuma explique cientificamente o sonho por onde eu visionava o seu talento, farás ideia talvez da fascinação que esse extraordinário rapaz lançou no meu juízo, e da angústia rude que o teu pedido derrama, amigo, num infeliz prosternado e a dizer como na missa: — Senhor! Senhor! eu não sou digno... Certo, não sou, para exprimi-lo na luminosidade austera dum mármore, donde tivesse chama o seu gênio, e a sua benevolência cesárea, riso e voz — no sou, decerto, porque a minha pena é violenta, porque a minha língua é grosseira...”
Assim, Fialho se julgava indigno de escrever sobre o poeta, que, pela sua vida e o seu engenho, só merecia encômios do uma pena habituada a só traçar coisas doces, suaves e excelsas.
E Fialho, de fato, não terminou o prefácio — de que foi encontrada, depois de sua morte, apenas uma dezena de tiras entre os seus inéditos.
Silva Pinto, que pôs ombro em publicar o Livro de Cesário Verde, diz ele: “É indispensável ter conhecido intimamente Cesário Verde para conhecê-lo um pouco. O que apenas lhe ouviram a frase rápida, imperiosa, dogmática, mal podem imaginar o fundo de tolerância expectante daquele belo e poderoso espírito.”
E na sua admiração pelo poeta, o terrível panfletário dos Combates e críticas, ao vê-lo morto, exclama, coberto de lágrimas: “Ah, santo! ah, meu santo! Ah, meu puro e meu grande! Ah, meu forte, — forte, bom, generoso, nobre, sempre bom — e todavia sempre justo!”
Cesário Verde apareceu na literatura portuguesa, quando, como diz Fialho, na sua linguagem única, “a mocidade coimbrã fruiu na Ciência Nova de Vico e nos trabalhos de Hegel, de Kant e do Ficht, as diretrizes filosóficas da sua insubordinação contrarromântica; o primeiro acendera-lhe curiosidades para os assuntos de sistematização histórica, para a ciência das origens, ensinando-lhe a dissecar, através dos mitos e das lendas, o caráter de certas civilizações e raças recuadas; e quanto aos restantes, se é certo haverem ginasticado os cérebros para as cogitações da crítica científica, determinaram nas gerações acadêmicas duas correntes quase antitéticas: uma impregnada da nebulosidade metafísica, soante de germanismo, de que foi representante e nevropata Antero, o agremiou em si o maior número; outra, positiva, que reverberava Comte através das vulgarizações pacientíssimas de Littré, e do que foi chefe poucos anos depois o beneditino Teófilo Braga. No campo da arte, franceses como Hugo, Michelet, Balzac o Flaubert, trouxeram às influências da nova geração modelos de poesia, história e romance, sobre que descalcar, como é costume entre portugueses, as exuberâncias literárias que lhes iam brotoejando das leituras. Hugo, apesar de ultrarromântico incorrigível, era para esses revolucionários coimbrãos, o semideus; os seus vazios sibilinos, o seu visionismo do crepuscular, a sua aptidão de voz enorme, as suas fúrias do estilo comprazendo-se na repetição, na imagem, na antítese, eram o delírio dessa mocidade que se dizia naturalista.”
Dizia-se naturalista, começando por criar um estilo aberrante da naturalidade, e a si mesmo se chamava original, imitando servilmente os modelos importados da França.
Pois bem, Cesário Verde apareceu por esse tempo, espantando, pela sua originalidade, os próprios que se tinham em conta de mais “originais”. O original Guerra Junqueiro macaqueava Baudelaire, refletindo no seu alexandrino a técnica, o linguajar e o anticlericalismo do relampejante alexandrino de Guilherme Braga... Cesário Verde surgiu inédito e original, sem imitar qualquer poeta de Portugal ou de França.
Ele é Ele, e único.
Inteligência inquieta o curiosa, iluminada por uma extensa cultura, esse lavrador-poeta se preocupa com todos os problemas que interessam os intelectuais do seu tempo: “as vitórias da Justiça absoluta — da Justiça iluminada e serena; as vistorias do Trabalho, da Razão, da Ciência, da Sinceridade, do Amor: os homens reconciliados, esclarecidos; a Natureza convertida em Progresso, Deus explicado, o Futuro iluminado, a Vida possível, a Mulher fortalecida, o Homem abrandado, as lutas suprimidas, o concerto da Terra desentranhando-se em harmonias reconhecidas, a Bondade convertida em norma, os Direitos e os Deveres suprimidos pela Igualdade” — enfim, uma Humanidade perfeita, vivendo, num mundo melhor, o mesmo sonho de Beleza e Pureza.
Em terno de tudo isto girava o espírito inquieto de Cesário Verde, lavrador e homem prático. O poeta, porém, este se comprazia em voejar sobre as coisas ambientes, correr os bairros, as ruas o ver a vida que passa a seu lado, em suas sublimidades e os seus grotescos sem lhe perder um só detalhe.
E nisso é inconfundível.
Quem não conhece aquela luminosa aquarela que ele intitulou Num bairro moderno. Abro com estas quintilhas:
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

E assim vai ele descrevendo ou antes aquarelando, a tintas exatas, a vida flagrante do bairro, a essa hora antemeridiana, quando para uns o dia ainda não começou e para outros a faina já vai de cansaço e cuidado no repasto.
O impressionismo de Cesário Verde é sempre de cores vivas e reais e do um naturalismo vívido e sem falhas.
Veja-se, por exemplo, este trecho do Ave Maria:
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
E assim por diante.
Por vezes, surpreende-se-lhe um galanteio, cuja poesia é mais para se imaginar que se ver no verso, como no De tarde:
Naquele "pic-nic" de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampamos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro de papoulas!
De resto, aprofundado bem, vê-se que Cesário Verde, mesmo verificando é sempre o lavrador imbuído de vindimas e de searas fartas. O extraordinário poema Nós, melhor que nenhuma outra produção sua no-lo revela sob este aspecto. Leiam-se estas quadras:
Fecho os olhos cansados, e descrevo
Das telas da memória retocadas,
Biscates, hortas, batatais, latadas,
No país montanhoso, com relevo!

Ah! que aspetos benignos e ruais
Nesta localidade tudo tinha,
Ao ires, com o banco de palhinha,
Para a sombra que faz nos parreirais!

Ah! quando a calma, à sesta, nem consente
Que uma folha se mova ou se desmanche,
Tu, refeita e feliz com o teu lunch,
Nos ajudavas, voluntariamente!...

Era admirável – neste grau do Sul! –
Entre a rama avistar teu rosto alvo,
Ver-te escolhendo a uva diagalvo,
Que eu embarcava para Liverpool.

A exportação de frutas era um jogo:
Dependiam da sorte do mercado
O boal, que é de pérolas formado,
E o ferral, que é ardente e cor de fogo!

Em agosto, ao calor canicular,
Os pássaros e enxames tudo infestam.
Tu cortavas os bagos que não prestam
Com a tua tesoura de bordar.
Destarte, ia Cesário Verde narrando em quadras magníficas os seus cuidados e afazeres rurais. Nas ruas e nos bairros, entre tudo
o que via e observava, nunca deixava de ver e notar frutos e hortaliças.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho da horta aglomerada
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
Depois, vem a nota original, nunca como que alucinação da vista:
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que lembrou um ventre.
Ora, aí têm.
Foi ele o poeta das usinas, do movimento rueiro, da azáfama dos cães e das gares, do operário, do ruído das máquinas, e tendo falecido em 1886, fazia Cesário Verde, de criação sua, sem nenhum modelo, em versos límpidos e de ritmos estranhos,— o futurismo que Martinetti inventou, e que faz girar a bola à petizada “originalíssima” da Pauliceia e alhures...
ZEFERINO BRAZIL
Jornal “A Federação”, 25 de fevereiro de 1926.

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