6/27/2018

Temas Poéticos: ADÃO E EVA - I


O nascimento de Eva

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

Quando pediu, um dia, o homem primeiro,
Cansado de estar só no Éden fruindo,
Quando pediu a Deus, entressorrindo,
Para gozar consigo, um companheiro,

Deus quis mostrar-se excepcional obreiro,
E fez, então, o que houve de mais lindo,
Fez a Mulher, primor, que ele exibindo,
Pôs, mudado em seu eixo, o mundo inteiro.

Era demais aquela maravilha:
Mais do que o sol, mais doce que o sol, brilha;
Aparição assim jamais foi vista.

Viam-se estrelas mesmo à luz do dia;
E o cântico que em tudo então se ouvia,
Era um Te-Deum da natureza ao artista...

★★★

Adão e a companheira

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

Quase atônito Adão, e ebriado ao vê-la,
Deslumbrado, porém não satisfeito
Ficou desta obra augusta, em seu conceito
Melhor que a luz, mais bela que uma estrela;

Disse em si: — Por que fez tal obra? E fê-la
Mais do que lhe pedira com efeito:
E, inquieto o coração dentro em seu peito,
Foi de braços abertos recebê-la.

Oh! como o corpo tinha um suave cheiro!
Oh! que delícia penetrante e doce!...
Era o céu todo ante um pequeno argueiro!

Por que digno de a ter consigo fosse,
Lhe era preciso ser um deus primeiro...
E um terror vago na alma ao pasmo enleou-se.

★★★

Experiência de Eva

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

Quando Eva só ensaia algum caminho,
Há de alegria em tudo uma vertigem:
Quando ela um pé levanta, chilra um ninho;
Dá de um pássaro a um canto novo origem.

Do bosque as feras todas se dirigem,
Para vê-la passar, deixando o arminho
Escuro; a neve dele é só caligem,
Tanto ela esplende — Adão ficou sozinho...

Hoje é sua a apoteose — O Éden toma
Uma estranha beleza; — e maravilha,
O que de bom na natureza assoma:

Em cada galho de árvore um sol brilha:
Da selva vem mais novo e doce o aroma:
Mesmo, como aos seus pés, o céu se humilha!...

★★★

Adão e Eva

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

— Há só para o que é triste agora ensejo:
Hão de vir dias cheios de amargura:
Não nos bastava aqui tanta ventura?
Como sabe em teu rosto um casto beijo!

Eva, não quero mais, nem mais desejo:
Só mal — só mal a inveja te procura;
Só em pensares nisso, olha, criatura,
Ponho os olhos no chão, quando Deus vejo.

A que imprudência a serpe te convida!
Vê que podes mudar a nossa sorte,
Mudar tudo em nós, mulher querida.

Acautela-te tu de ti; sê forte:
Disse a cobra, que o fruto era o da vida:
Mas disse Deus que o fruto era o da morte. —

★★★

Repugnância de Adão

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

— Esta serpente esquálida e medonha,
De pele áspera, de escamas cheia, escura,
Que a sombra escusa dos moitais procura,
E que parece ter do sol vergonha;

Traiçoeira, sutil, de má figura,
Que faz que dorme e faz pensar que sonha,
Não tem ninguém no Éden que a suponha
Capaz de uma ação boa, uma ação pura;

É vil; ondeia, salta, o corpo arrasta:
Todos a fogem, como de um perigo,
No flóreo prado, na floresta vasta:

Ninguém a quer: não tem um só amigo.
Eva, foge também da serpe; — basta
O susto, em que ando; o horror que anda contigo.

★★★

A serpe só com Eva

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

— Gentil Princesa, se ainda vir eu ouso
Lembrar que tardas em colher o fruto,
É que, enquanto o não tens, eu não repouso,
E com visões aterradoras luto.

Ah! não demores meu supremo gozo:
Sem justas ambições te não reputo:
Sereis, tu só e teu sagrado esposo,
Donos disto: do próprio Deus o escuto.

Serão ordens somente os teus olhares,
E a natureza, em tudo obediente,
Dará vida ao que dentro em ti pensares.

Baixará aos teus pés o céu fulgente,
Anjos e sóis, escravos aos milhares
Virão servir-te, deusa onipotente!

★★★

A saída do Éden

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

Ao caírem os dois, tudo caía:
Belos ainda, vê-los já não ousas:
Havia em tudo as lágrimas das coisas;
Quem não chorava então, também não ria.

Do Éden de ontem nada mais havia:
Em cardume andam doidas mariposas:
Por ervas mortas só teus olhos pousas:
Tudo é total, tudo é melancolia.

Sabem: — fizeram jus à sua ruína:
E vão, perdoando aos anjos, que se excedem,
Ao pô-los fora da mansão divina.

Já não podem querer; já nada pedem.
E Adão, beijando-a: — Esposa peregrina,
O amor nos resta; e o amor resgata um Éden.

★★★

Adão à porta do Éden

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

— Anjos, saímos já: nada queremos:
Das mãos nos escorrega o paraíso,
Como o irradiamento de um sorriso,
Que está perto de nós, e nós não vemos.

Isso, que nosso foi, já foi, não temos:
Tudo, ó Eva, perdemos de improviso;
Saibamos bem deixar o que perdemos:
O orgulho do vencido hoje é preciso.

Mas em te possuindo, Eva querida,
Tenho o gozo infinito em minha vida:
Não vale a nossa perda um grão de areia.

Deus não soube pesar o cruel castigo:
Tenho flores, jardins, vergéis contigo:
De Edens contigo está minh’alma cheia.

★★★

Eva

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

Surge Adão; Eva após; Deus os exorta:
Tinham no paraíso eterno encanto:
Roubam o fruto, que é vedado, e entanto
Deles toda a ventura é logo morta.

Vê-os Deus... Deus agora os não suporta,
E envolve a face irada em rubro manto:
Cai-lhes dos olhos o primeiro pranto:
Rangeu, o Éden fechando, a brônzea porta.

Tinha lá dentro sândalos, e nardos:
De cada lado um anjo a espada eleva:
O sol golpeia-os com seus áureos dardos.

Urram leões em torno, ao pé, na treva,
Eriça-lhes a terra urzais e cardos...
Mas junto a si Adão inda tem Eva.

★★★

Eva ante a serpente

LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)

Eva vendo-a morrer, só teve nojo,
Mesclando em tudo um pouco de piedade:
— E isto é obra de um Deus?!... Pensar quem há de!
Ele dar vida a um ser, que anda de rojo!

Que habita as urzes, que procura o tojo,
Para estar lá em mais seguridade,
Que é hipócrita e falsa, e a todo arrojo,
Não opõe força, opõe sagacidade.

Finge às vezes letárgico repouso,
Para atrair a si os passarinhos,
Que amam a luz do seu olhar choroso:

Ou abandona o seu moital de espinhos,
Para enroscar-se ao sândalo odoroso,
Ou dormir dentro, em paz, nalgum dos ninhos...

★★★

A raça de Adão

LUÍS DELFINO
"Esboço de uma epopeia americana" (1939)

O céu, ó minha doce virgem pura,
Minha Helena gentil, és tu somente:
Ver o céu através da sepultura,
Quer minha alma, a razão só não consente.

A morte há tantos séculos que dura;
A morte durará eternamente:
E eu, que te amo, esplêndida criatura,
Hei de esperar a morte, e um céu que mente,

Para que Deus nos una então, Helena?
Quem abandona em vida, há de ter pena
De dois mortos perdidos na amplidão?

O céu é cá na terra, Helena amada,
Porque a raça de Adão foi condenada
À dor eterna, à eterna maldição...

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