6/20/2018

Temas Poéticos: BÍBLIA - I


O Dilúvio
“E caiu a chuva sobre a terra quarenta
dias e quarenta noites.”
Gênesis — cap.7, vers. 12

MACHADO DE ASSIS
“Crisálidas” (1863)

Do sol ao raio esplêndido,
Fecundo, abençoado,
A terra exausta e úmida
Surge, revive já;
Que a morte inteira e rápida
Dos filhos do pecado
Pôs termo à imensa cólera
Do imenso Jeová!

Que mar não foi! que túmidas
As águas não rolavam!
Montanhas e planícies
Tudo tornou-se um mar;
E nesta cena lúgubre
Os gritos que soavam
Era um clamor uníssono
Que a terra ia acabar.

Em vão, ó pai atônito,
Ao seio o filho estreitas;
Filhos, esposos, míseros,
Em vão tentais fugir!
Que as águas do dilúvio
Crescidas e refeitas,
Vão da planície aos píncaros
Subir, subir, subir!

Só, como a ideia única
De um mundo que se acaba,
Erma, boiava intrépida,
A arca de Noé;
Pura das velhas nódoas
De tudo o que desaba,
Leva no seio incólumes
A virgindade e a fé.

Lá vai! Que um vento alígero,
Entre os contrários ventos,
Ao lenho calmo e impávido
Abre caminho além...
Lá vai! Em torno angústias,
Clamores e lamentos;
Dentro a esperança, os cânticos,
A calma, a paz e o bem.

Cheio de amor, solícito,
O olhar da divindade,
Vela os escapos náufragos
Da imensa aluvião.
Assim, por sobre o túmulo
Da extinta humanidade
Salva-se um berço; o vínculo
Da nova criação.

Íris, da paz o núncio,
O núncio do concerto,
Riso do Eterno em júbilo,
Nuvens do céu rasgou;
E a pomba, a pomba mística,
Voltando ao lenho aberto,
Do arbusto da planície
Um ramo despencou.

Ao sol e às brisas tépidas
Respira a terra um hausto,
Viçam de novo as árvores,
Brota de novo a flor;
E ao som de nossos cânticos,
Ao fumo do holocausto
Desaparece a cólera
Do rosto do Senhor.

 ★★


OLAVO BILAC
“Alma inquieta” (1902)

Maldito aquele dia, em que abriste em meu seio,
Cruel, esta paixão, como, ampla e iluminada,
Uma clareira verde, aberta ao sol, no meio
Da espessa escuridão de uma selva cerrada!

Ah! três vezes maldito o amor que me avassala,
E me obriga a viver dentro de um pesadelo,
Louco! por toda a parte ouvindo a tua fala,
Vendo por toda a parte a cor do teu cabelo!

De teu colo no vale embalsamado e puro
Nunca descansarei, como num paraíso,
Sob a tenda aromal desse cabelo escuro,
Olhando o teu olhar, sorrindo ao teu sorriso.

Desvairas-me a razão, tiras-me a calma e o sono!
Nunca te possuirei, bela e invejada vinha,
Ó vinha de Nabot que tanto ambiciono!
Ó alma que procuro e nunca serás minha!

 ★★

Dalila
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)

És como o mar, és como o céu, és tudo
Que se parece com o abismo, e o finge:
És formidável como a antiga esfinge;
És obra para o sonho, e para o estudo.

Às vezes cravo em ti olhar tão rudo
Como um machado, que mordendo ringe:
À lua dos astros, e o luar que o cinge,
Teu rosto é belo, ó deusa! — E não me iludo.

Preferes os Sansões, que amam chorando,
E ajoelham quando o teu olhar cintila:
Dos cílios, tens a grande sombra, orlando...

Mas... também tens, no fundo da pupila,
Uns raios fulvos, trêmulos, pingando
Sangue, que coalha em tuas mãos, Dalila!...

 ★★

Canaã

LUÍS DELFINO
“Posse absoluta” (1941)

Hoje, amanhã, depois, sempre após a esperança
Coluna chamejante em frente ao pobre hebreu:
A cerrada corte em marcha, e que não cansa,
De quimeras gentis, e a conduzi-las eu...

Preciso de chegar a essa terra fecunda:
É por ela que me ergo à primeira manhã
É por ela que marcho até a noite funda,
Ó Ofir do meu sonho! Ó minha Canaã.

Pobres, quimeras, vós buscais seu seio olente:
Pobres sonhos gentis, buscais o seio seu;
Vós ides, podeis ir dormir lá; eu somente
Posso mandar-vos, sem poder ir também eu.

Entre o céu azulado, e os esplendentes lagos
Com colares iguais ao colar da manhã,
Sem nunca poder ter um só dos teus afagos,
Hei de ver-te sorrir, terra de Canaã.

Como o sol de ouro puro a fronte te engrinalda!
Que selvas! que vergéis, que força em tudo teu!
Só eu hei de morrer no fogo que me escalda,
Sem nunca mitigá-lo em teu seio!... só seu!...

Voltarão para ti formosas primaveras;
E eu estarei a dormir e fora a vida e o afã...
Ficam-te os sonhos meus e as minhas vãs quimeras,
Mulher, Ofir de amor, e minha Canaã!

***
Tu, que lês descuidado o meu poema morno,
Como quem para um poço a cabeça estendeu,
Vês muita água no fundo, e muita sombra em torno.
Um dia terás sede, e morrerás como eu.

Morrerás vendo o poço e o ouro vão das quimeras,
Lançarás aos milhares lá dentro: — e em louco afã,
Hás de morrer de sede e vendo a água que esperas,
Como eu morro de amor em frente à Canaã.

 ★★

Babel

AUGUSTO DE LIMA
“Símbolos” (1892)

Humanidade, elevas teu lamento
como uma torre de Babel maldita:
tens sobre a fronte a abóbada infinita;
mas tens preso na terra o pensamento.

Tua alma aberta ao sideral assento,
debalde geme e chora e clama e grita;
há de a torre blasfema que ela habita
ruir num grande desmoronamento.

Será no dia em que, de todo, a crença
compreender que a vastidão imensa
já não encerra as ilusões divinas.

A razão, sobreviva ao cataclismo,
levantará nova Babel do abismo...
– Feliz quem perecer sob as ruínas!


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