7/02/2018

Temas Poéticos: BÍBLIA - II



RAIMUNDO CORREIA

Quem vai passando, sinta
Nojo embora, ali para. Ao princípio era um só;
Depois dez, vinte, trinta
Mulheres e homens... tudo a contemplar o Jó.

Qual fixa boquiaberto;
Qual à distância vê; qual se aproxima altivo,
Para olhar mais de perto
Esse pântano humano, esse monturo vivo.

Grossa turba o rodeia...
E o que mais horroriza é vê-lo a mendigar,
E ninguém ter a ideia
De um só vintém às mãos roídas lhe atirar!

Não! Nem ver que a indigência
Em pasto o muda já de vermes; e lhe impera,
Na imunda florescência
Do corpo, a podridão em plena primavera;

Nem ver sobre ele, em bando,
Os moscardos cruéis de ríspidos ferrões,
Incômodos, cantando
A música feral das decomposições;

Nem ver que, entre os destroços
De seus membros, a Morte, em blasfêmias e pragas,
Descarnando-lhe os ossos,
Os dentes mostra a rir, pelas bocas das chagas;

Nem ver que só o escasso
Roto andrajo, onde a lepra horrível que lhe prui
Mal se encobre, e o pedaço
De telha, com que a raspa, o mísero possui;

Nem do vento às rajadas
Ver-lhe os farrapos vis da roupa flutuante,
Voando — Desfraldadas
Bandeiras da miséria imensa e triunfante!

Nem ver... Jó agoniza!
Embora; isso não é o que horroriza mais.
— O que mais horroriza
São a falsa piedade, os fementidos ais;

São os consolos fúteis
Da turba que o rodeia, e as palavras fingidas,
Mais baixas, mais inúteis
Do que a língua dos cães, lambendo-lhe as feridas;

Da turba que se, odienta,
Com a pata brutal do seu orgulho vão
Não nos magoa, inventa,
Para nos magoar, a sua compaixão!

Se há, entre a luz e a treva,
Um termo médio, e em tudo há um ponto mediano,
É triste que não deva
Haver isso também no coração humano!

Porque n'alma não há de
Um meio termo haver dessa gente também,
Entre a inveja e a piedade?
Pois tem piedade só, quando inveja não tem!

★★★

Sete anos de pastor Jacó servia

LUÍS VAZ DE CAMÕES

Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pretendia.
Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida

★★★

Babel e Sião

LUÍS VAZ DE CAMÕES

Sôbolos rios que vão
Por Babilônia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião
E quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E, tudo bem comprado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes
Na alma se representaram;
E minhas coisas ausentes
Se fizeram tão presentes
Como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
C’o rosto banhado em água;
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não é gosto mas é mágoa.

E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem,
O quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais vale,
Que então se entende melhor,
Quanto mais perdido for;
Vi ao bem suceder mal
E, ao mal, muito pior.
E vi com muito trabalho
Comprar arrependimento.
Vi nenhum contentamento,
E vejo-me a mim, que espalho
Tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas
Com que banho este papel;
Bem parece ser cruel variedade de mágoas
E confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo,
Dos transes em que se achou,
Depois que a guerra deixou,
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou;

Assim, depois que assentei
Que tudo o tempo gastava,
Da tristeza que tomei,
Nos salgueiros pendurei
Os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
Deixei da vida passada,
Dizendo: - Música amada,
Deixo-vos neste arvoredo,
A memória consagrada.

Frauta minha que, tangendo,
Os montes fazíeis vir
P’ra onde estáveis, correndo,
E as águas, que iam descendo.
Tornavam logo a subir,
Jamais vos não ouvirão
Os tigres, que se amansavam;
E as ovelhas que pastavam,
Das ervas se fartarão
Que por vos ouvir deixavam.

Já não fareis docemente
Em rosas tornar abrolhos
Na ribeira florescente;
Nem poreis freio à corrente,
E mais se for dos meus olhos.

Não movereis a espessura,
Nem podereis já trazer
Atrás vós a fonte pura,
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.

Ficareis oferecida
A Fama, que sempre vela,
Frauta de mim tão querida;
Porque, mudando-se a vida,
Se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
Prazeres acomodados,
E logo a maior idade
Já sente por pouquidade
Aqueles gostos passados.

Um gosto que hoje se alcança,
Amanhã já o não vejo:
Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança
E de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte?
Fraqueza de humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está recitando a morte!

Mas deixar nesta espessura
O canto da mocidade!
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que é força da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mim puderam tanto
Que, posto que deixe o canto,
A causa dele deixasse.

Mas em tristezas e nojos,
Em gosto e contentamento,
Por sol, por neve, por vento,
Tendré presente à los ojos
Por quein muero tan contento.’
Órgãos a frauta deixava,
Despojo meu tão querido,
No salgueiro que ali estava,
Que para troféu ficava
De quem me tinha vencido.

Mas lembranças da afeição
Que ali cativo me tinha,
Me perguntaram então:
Que foi daquele cantar
Das gentes tão celebrado?
Por que o deixava de usar?
Pois sempre ajuda passar
Qualquer trabalho passado?

Canta o caminhante ledo
No caminho trabalhoso,
Por entre o espesso arvoredo;
E de noite o temoroso,
Cantando, refreia o medo.
Canta o preso docemente,
Os duros grilhões tocando;
Canta o segador contente,
E o trabalhador, cantando,
O trabalho menos sente.

Eu, que estas coisas senti
Na alma, de mágoas tão cheias,
Como dirá, respondi,
Quem alheio está de si
Doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
Quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
Canta por menos cansar,
Eu só descansos enjeito.

Que não parece razão
Nem parece coisa idônea
Por abrandar a paixão,
Que cantasse em Babilônia
As cantigas de Sião.
Que, quando a muita graveza
De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes moura de tristeza
Que, por abrandá-la, cante.

Que, se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao tormento:
Que morrer de puro triste,
Que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
O que passo e passei já,
Nem menos o escreverei;
Porque a pena cansará
E eu não descansarei.

Que, se vida tão pequena
Se acrescenta em terra estranha,
E se Amor assim o ordena,
Razão é que canse a pena
De escrever pena tamanha.
Porém se, para assentar
O que sente o coração,
A pena já me cansar,
Não canse para voar
A memória em Sião.

Terra bem-aventurada,
Se, por algum movimento,
Da alma me fores mudada,
Minha pena seja dada
A perpétuo esquecimento.
A pena deste desterro,
Que eu mais desejo esculpida
Em pedra ou em duro ferro,
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de meu erro.

E se eu cantar quiser,
Em Babilônia sujeito,
Jerusalém, sem te ver,
A voz, quando a mover,
Se me congele no peito.
A minha língua se apague
Às fauces, pois de perdi,
Se, enquanto viver assim,
Houver tempo em que te negue
Ou que me esqueça de ti!

Mas, ó tu, terra de Glória,
Se eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
Senão na reminiscência.
Que a alma é tábua rasa
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina,
Que voa da própria casa
E sobe à pátria divina.

Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do Céu,
Daquela santa Cidade
De onde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
Que cá me pode alterar,
Não é quem se há de buscar:
É raio da Formosura
Que só se deve de amar.

Que os olhos e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita,
Não do sol, mas da candeia
É sombra daquela ideia
Que em Deus está mais perfeita.
E os cá me cativaram
São poderosos afeitos
Que os corações têm sujeitos;
Sofistas que me ensinaram
Meus caminhos por direitos.

Destes o mando tirano
Me obriga com desatino,
A cantar, ao som do dano,
Cantares de amor profano
Por versos de amor divino.
Mas eu, lustrado c’o santo
Raio, na terra de dor,
De confusão e de espanto,
Como hei de cantar o canto
Que só se deve ao Senhor?

Tanto pode o benefício
Da Graça, que dá saúde,
Que ordena que a vida mude:
E o que tomei por vício
Me faz grau para a virtude.
E fez que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular beleza
Para a Beleza geral.

Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,
Ó Jerusalém sagrada,
E tome a lira dourada
Para só cantar de ti;
Não cativo e ferrolhado
Na Babilônia infernal,
Mas dos vícios desatado
E cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.

E se eu mãos der a cerviz
A mundanos acidentes,
Duros, tiranos e urgentes,
Risque-se quando já fiz
Do grão livro dos viventes.
E, tomando já na mão
A lira santa e capaz
Doutra mais alta invenção,
Cale-se esta confusão,
Cante-se a visão da paz!

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mudo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.
A vós se me quero ir,
Senhor e grão capitão
Da alta torre de Sião,
À qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão.

No grão dia singular
Que na lira o douto som
Jerusalém celebrar,
Lembrai-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom.
Aqueles que tintos vão
No pobre sangue inocente,
Soberbos c’o poder vão,
Arrasai-os igualmente,
Conheçam que humanos são.

E aquele poder tão duro
Dos efeitos com que venho,
Que incendem alma e engenho;
Que já me entraram o muro
Do livre alvedrio que tenho;
Estes, que tão furiosos
Gritando veem a escalar-me,
Maus espíritos danosos,
Que querem como forçosos
Do alicerce derrubar-me;

Derrubai-os, fiquem a sós,
De forças fracos, imbeles;
Porque não podemos nós
Nem com eles ir a Vós,
Nem sem Vós tirar-nos deles.
Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se vós, santo Capitão,
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.

E tu, ó carne que encantas,
Filha de Babel tão feia,
Toda de misérias cheia,
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia,
Beato só pode ser
Quem com a ajuda celeste
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste;

Quem com disciplina crua
Se fere mais que uma vez,
Cuja alma, de vícios nua,
Faz nódoas na carne sua,
Que já a carne na alma fez.
E beato quem tomar
Seus pensamentos recentes
E em nascendo os afogar,
Por não virem a parar
Em vícios graves e urgentes;

Quem com eles logo der
Na pedra do furor santo
E, batendo os desfizer
Na Pedra, que veio a ser
Enfim cabeça do Canto;
Quem logo, quando imagina
Nos vícios da carne má,
Os pensamentos declina
Àquela carne divina
Que na cruz esteve já;

Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visível,
Quanto ao homem for possível,
Passar logo o entendimento
Para o mundo inteligível:
Ali achará alegria
Em tudo perfeita e cheia
De tão suave harmonia,
Que nem, por pouca, escasseia
Nem, por sobeja, enfastia.

Ali verá tão profundo
Mistério na suma Alteza,
Que, vencida a Natureza,
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
Minha pátria singular,
Se só com te imaginar
Tanto sobe o entendimento,
Que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão penitente,
Que, depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente.

★★★

A rainha de Sabá
OLAVO BILAC
“Tarde” (1919)

"O rei Salomão deu à rainha de Sabá o que ela lhe desejou, e lhe pediu, afora os presentes que ele mesmo lhe deu com liberalidade real. A rainha voltou, e se foi para o seu reino com os seus servos."
REIS, L. III, cap. X, 13.

"Que mais queres? Sião? e, entre os bosques sombrios,
O meu colar de cem cidades deslumbrantes?
O Líbano, pompeando em paços, em mirantes,
Em cedros, em pavões, em corças, em bugios?
O povo de Israel, em tribos formigantes
Do Eufrates ao mar Morto e o Egito? Os meus navios,
As esquadras de Hirão, coalhando o oceano e os rios,
Atestadas de prata e dentes de elefantes?
O meu leito, ainda olente e morno do teu sono?
O cetro? O gineceu, e a guarda, e as mil mulheres
Como escravas, rojando aos teus pés? O meu trono?
Os vasos do holocausto? O templo de ouro e jade?
A ara, em sangue e fulgor, ante Jeová?... Que queres?"
.............................................................
— "O teu último beijo... o deserto... e a saudade..."

★★★

Criação
OLAVO BILAC
“Tarde” (1919)

Há no amor um momento de grandeza,
Que é de inconsciência e de êxtase bendito:
Os dois corpos são toda a Natureza,
As duas almas são todo o Infinito.
É um mistério de força e de surpresa!
Estala o coração da terra, aflito;
Rasga-se em luz fecunda a esfera acesa,
E de todos os astros rompe um grito.
Deus transmite o seu hálito aos amantes:
Cada beijo é a sanção dos Sete Dias,
E a Gênese fulgura em cada abraço;
Porque, entre as duas bocas soluçantes,
Rola todo o Universo, em harmonias
E em glorificações, enchendo o espaço!


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