Foi Almeida Garrett uma das mais altas
expressões do romantismo português. Ao lado de Alexandre Herculano e de
Castilho, desempenhou um significativo papel, não só como poeta, mas também
como prosador. Já houve quem igualasse Garrett a Camões.
Garrett, sem dúvida, distinguiu-se
enormemente em todos os ramos da atividade intelectual. Foi, ao mesmo tempo,
filósofo, poeta, romancista, dramaturgo, orador. Em seu tempo, chamavam-no de
“Divino”. E com razão, pois Garrett soube primar como um semeador maravilhoso de
ideias e de imagens.
Eça de Queirós, que foi um crítico
rigoroso e imparcial muito parco em matéria de elogio, disse, certa vez, numa
carta inédita de Mendes Fradique, que “Frei Luís de Souza”, o famoso drama de
Garrett, era verdadeiramente, “uma obra prima, uma das mais belas que existem em
todas as literaturas da Europa”. E acrescenta: “Cada frase contém apenas as
palavras necessárias e tem contudo dentro de si todo um mundo de coisas
profundas.” Tratava-se de um julgamento de todo insuspeito, já que Eça de
Queirós pertencia à escola naturalista e combatia abertamente a literatura
romântica.
Apesar de ambos pertencerem
literariamente a campos opostos, podemos dizer que Garrett foi o Eça de Queirós
do Romantismo, assim como Eça de Queirós foi o Garrett do Naturalismo, Ambos,
ousadamente, se insurgiram contra o despotismo do convencionalismo, e meteram
debaixo do joelho, segundo a expressão de Ramalho Ortigão, o monstro da ênfase
atávica, da hereditária retórica, que por mais de dois séculos resfolegara
apopleticamente no fundo de toda a nossa evolução artística.”
Além do homem de pensamento e de
letras, temos também que ver em Garrett o “elegante”, Isto é, o Brumel
português. Garrett era, de fato, em seu tempo, um dos homens que melhor se
vestia e quando esteve em Bruxelas foi tal o seu sucesso nesse sentido que logo
apareceram as “capas à Garrett”, os “chapéus à Garrett”, as “joias à Garrett”.
Bulhão Pato descreve os trajos com que
Garrett se mostrava no parlamento ou nos suntuosos salões das altas rodas de
Lisboa: “casaca verde bronze com botões de metal amarelo recortado sobre veludo
verde; colete branco, deslumbrante, de brandas bandas, calça de flor de
alecrim; camisa finíssima, encanudadas; luvas amarelas.” Quando Garrett ocupava
a tribuna, as galerias do Parlamento ficavam completamente cheias. O público
feminino estava sempre disposto a ouvia a ouvir a sua palavra fascinadora. A
oratória de Garrett era um dos mais belos espetáculos de seu tempo. A eloquência
de suas palavras ainda mais se destacava em virtude de sua admirável pronúncia
de declamador e da harmoniosa elegância de seus gestos.
Mas nem sempre a elegância é uma
virtude recomendável. Bastante apreciado pelas mulheres, Garrett se envolveu ou
se viu envolvido em vários escândalos, pondo a vida em perigo em consequência
da justa revolta dos amantes ou dos maridos enganados.
Todavia, como diz Júlio Dantas,
“Garrett não era belo. Garrett, lutava com a falta de dotes naturais. O milagre
de sua elegância foi, sobretudo, uma obra de arte, de paciência, de gênio. Tudo
nele era postiço, desde o espartilho até o achinó, desde os dentes até as
ancas, desde o chumaço dos ombros até ao bucho das pernas. Quando à noite
recolhia à casa, depois de um baile ou de uma recepção desmanchava-se como um
puzzle."
Há em torno da “elegância” de Garrett
uma série de admiráveis anedotas. O próprio Garrett, como homem de gênio, era o
primeiro a zombar de seu próprio esforço para bem se apresentar, Conta-se que,
certa vez, o criado de quarto de Garrett adoeceu subitamente. Foi substituído
por um novato, rapaz ingênuo, recentemente chegado à Lisboa. Quando Garrett, de
madrugada, regressou de um baile dos Marqueses de Viana, ouçamos Júlio Dantas,
encontrou o provinciano preparado para ajudá-lo a se despir. “Começamos pelo
chinó, percebe?” — disse-lhe Garrett, tirando a cabeleira postiça e enfiando-a
na boneca. O pobre rapaz, que nunca tinha visto arrancar os cabelos da cabeça
com tanta facilidade, ficou varado espanto. Depois o poeta tomou um pequeno
espelho, abriu a boca, fez saltar a dentadura e deu-a ao criado: — “Tome lá os
dentes. Meta-os num copo de água”. O assombro do pobre homem subiu de ponto.
Imperturbável, Garrett despiu a casaca em “busto de abelha”, o colete de
reflexos de prata, o espartilho e apontou os chumaços das espáduas: — “Tire-me
os ombros”. Em seguida, puxou uma cadeira, sentou-se: — “Agora, tire-me as
barrigas das pernas”. O criado, muito pálido, coberto de suores frios, teve
naquele instante a impressão de que o amo ia desfazer-se de todo. Garrett percebeu, levantou-se, avançou para ele e disse-lhe, olhando-o fixamente: —
“Agora, desatarraxe-me a cabeça, devagarzinho”. O pavor do ingênuo provinciano
foi tal que abalou pela porta fora e nunca mais ninguém o viu.
Era assim a elegância na época do
Romantismo. Mas se havia multa “blague” na elegância de Garrett, o mesmo não
vamos encontrar em sua obra literária, que é, para nós um verdadeiro tesouro da
Língua Portuguesa.
Luiz
Vidal
Revista Carioca, 22 de agosto de 1942.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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