10/31/2018

O romance do chupim (Conto), de Monteiro Lobato



O romance do chupim

Ouvíamos no cine a música precursora da prime ira fita, quando entrou na sala um curioso casal. Ela, feiarona, na idade em que a natureza começa a recolher uma a uma todas as graças da mocidade, como a lavadeira recolhe as roupas do varal. Tirara-lhe já a frescura da pele e o viço da cor, deixando-lhe em troca as sardas e os primeiros pés de galinha. Tirara-lhe também os flexuosos meneios de corpo, a garridice amável, os tiques todos que, somados, formam essa teia de sedução feminina onde se enreda o homem para proveito multiplicativo da espécie. Quase gorda, as linhas do rosto entravam a perder-se num empaste balofo. Certa pinta da face, mimo que aos dezoito anos inspiraria sonetos, virara verruga, com um sórdido fio de cabelo no píncaro. No nariz amarelecido o pince-nez clássico da professora que se preza. Em matéria de vestuário, suas roupas escuriças, mais atentas à comodidade do que à elegância, denunciavam a transição do “moda” para “fora da moda”.

Ele, bem mais moço, tinha um ar vexado e submisso de “coisa humana”, em singular contraste com o ar mandão da companheira. O estranho do casal residia sobretudo nisso, no ar de cada um, senhoril do lado fraco, servil do lado forte. Inquilino e senhorio; quem manda e quem obedece; quem dá e quem recebe. Ela falava do alto; ele ouvia de baixo e mansinho; caso evidente em que cantava a galinha e o galo chocava os pintos.

Meu amigo apontou o homem com o beiço e murmurou:

— Um chupim.

— Chupim? — repeti interrogativamente, estranhando a palavra que ouvia pela primeira vez.

— Quer dizer, marido de professora. O povo alcunha-os desse modo por analogia com o passarinho-preto que vive à custa do tico-tico. Conheces?

Lembrei-me da cena tão comum em nossos campos do tico-tico a pajear um graúdo filho de chupim, e pus-me a observar o casal com maior interesse, mormente depois de começada a fita, relíssima salgalhada francesa. Já eles não tiravam os olhos da tela, salvo o marido, que para melhor ouvir algum comentário da esposa não se limitava a dar-lhe ouvidos, dava-lhe olhos também.

— Os chupins — prosseguiu o meu cicerone — são homens falhos, ratés da virilidade — a moral, está claro, que a outra lhes é indispensável para o bom desempenho do cargo.

— Cargo?

— Cargo, sim. Eles desempenham o cargo importantíssimo de maridos. Em troca as esposas ganham-lhes a vida e dirigem os negócios do casal, desempenhando todos os papéis normalmente atribuídos aos machos. Tais mulheres apenas fazem aos maridos a concessão suprema de engravidarem por obra e graça deles, já que é impossível a revogação de certas leis naturais.

“Quando a mulher vai à escola, fica o chupim em casa cocando os filhos, arrumando a sala ou mexendo a marmelada. Há sempre para eles uma recomendaçãozinha à hora da saída para a aula.

“— As vidraças da frente estão muito feias. Você hoje, quando as Moreiras saírem, passe um pano com gesso. (As Moreiras são as vizinhas da frente.)

“O chupim acostuma-se à submissão e acaba usando em casa as saias velhas da mulher, para economia de calças.”

— Para aí, homem de Deus! Do contrário acabas contando a história de um que chegou a dar à luz um crianço!...

A fita chegara ao fim. Surgiu o galo vermelho da Pathé, que boleou o pescoço num coricocó mudo e sumiu-se para dar lugar ao reacender das lâmpadas.

A mulher ergueu-se, espanejou-se e saiu, seguida do chupim solícito. Acompanhamo-los de perto, estudando o caso, e na rua, depois que os perdemos de vista, o meu amigo retomou o assunto.

— Em matéria de chupins conheço um caso interessante. Que segui desde os primórdios.

“Eduardinho Tavares, filho de tio e sobrinha, nascera sem tara aparente, a não ser extrema dubiedade de caráter, uma timidez de menina do tempo em que a timidez nas meninas era moda. Espécie de criatura intermediária entre os dois sexos.

“Em criança brincava de boneca, de preferência às nossas touradas, ao jogo dos ‘caviúnas’, ao ‘pegador’. Em meninote, enquanto os da sua idade descadeiravam gatos pela rua, lia Paulo e Virgínia à sombra das mangueiras, chorando sentidas lágrimas nos lances lacrimogêneos.

Fomos colegas de escola, e lembro-me que um dia lá nos apareceu Eduardo com um pagagaio de miçanga verde, obra sua. Eu, estouvado de marca, ri-me daquilo e escangalhei com a prenda, enquanto o maricas, abrindo uma bocarra de urutau, rompia num choro descompassado, como choram mulheres. Irritado, dei-lhe valentes cachações. Eduardo não reagiu; acovardou-se, humilhou-se, feito o meu carneirinho. Só procurava a mim dentre cem companheiros. Acamaradamo-nos daí por diante, o que não me impediu de o fazer armazém de pancadas. Por qualquer coisinha, uma cacholeta. Ele ria-se, meigo, e cada vez mais me rentava. Pus-lhe o apelido de Maricota. Não se zangou, gostou até, confessando achar mais graça nesse nome do que no seu.

“Hoje eu estudaria esse tipo à luz de Freud, como caso deveras notável; naquele tempo feliz de sadia ingenuidade limitava-me a tirar partido da sua submissão, transformando-o em peteca, em escravo, em coisa de que a gente põe e dispõe.

“Saídos do colégio continuamos camaradas, de modo que pude acompanhá-lo por um bom pedaço da vida afora. Nunca perdeu a timidez donzelesca. Fugia às meninas, sobretudo se eram românticas, ou acentuadamente mulheris — o meu gênero.

“Fez-se misógino.

“Por essas alturas casei-me — casei-me com a moça mais feminina da época, uma romântica escapulida a Escrich, dessas que têm medo às baratas e caem de fanico se um rato lhes corre pela sala — o meu gênero, enfim.

“Eduardo permaneceu solteiro, sempre às sopas do pai, até que este morreu e lhe deixou de herança uns prédios, mais uns títulos. Sem tino comercial, passaram-lhe a perna, comeram-lhe casas e apólices; quando o pobre rapaz abriu os olhos estava a nenhum. Recorrendo a mim para um bom conselho de arrumação de vida, vi que não dava para coisa nenhuma — e receitei-lhe a professora.

“— Casa-te. Incapaz de ação como és, tua saída única se resume em tirar partido da tua qualidade de macho. Casa com moça rica, ou, então, com mulher trabalhadeira.

“Nada valeu o conselho. Eduardo não tinha jeito para requestar mãos femininas, quer bem aneladas, quer muito calejadas. Embaraçava-o a irredutível timidez.

“Mas o diabo as arma.

“Um belo dia apareceu na terra uma professora nova, mais ou menos ao molde desta de há pouco. Tipo de mulheraça máscula, angulosa, ar enérgico, autoritária. Gostava de discutir política, entendia de cavalos, lia jornais, tinha ideias sobre a seca do Ceará e o saneamento dos sertões. Apesar de bem conservada, andava perto dos quarenta, não fazendo nenhum mistério disso. Se não se casara até então, não é que fosse infensa ao matrimônio: não achara ainda o seu tipo de homem, dizia.

“Pois não é que o raio da pedagoga vê Eduardo e se engraça dele? Examina-o fulminantemente, como quem examina um cavalo; mira-o de alto a baixo, interpela-o, dá-lhe balanço às ideias e aos sentimentos, pesa-lhe o valor monetário, pede-lhe, ou, antes, toma-lhe a mão, leva-o à igreja e casa-o consigo.

“Foi um relâmpago tudo aquilo. Em três tempos namorado, noivado, casado e metido no gineceu, o pobre moço, quando abriu os olhos, estava chupim para todo o sempre.

“Dona Zenóbia sabia avir-se com a vida. Ganhava-a folgadamente. Além da escola particular que dirigia, tinha a juros um pequeno capital que não cessava de crescer, colocado a quatro ou cinco por cento ao mês, sob garantias de toda ordem. Casada, continuou à testa dos negócios; o marido, se aparecia nominalmente nalguma transação, era proforma.

“Encaramujado em casa da professora, Eduardinho foi sonegado ao mundo e o mundo acabou esquecendo Eduardinho. Nunca mais o viram na rua, ou nas festas, sem ser pelo braço da mulher, na atitude encolhida daquele chupim do cinema.

“Um filho nasceu-lhes nesse entretempo, e começa aqui o mais engraçado da comédia.

“A tantas, dona Zenóbia deu de gabar as qualidades artísticas do esposo.

Eduardo era um grande talento literário, capaz de obras deveras notáveis.

“— Vocês — dizia ela às professoras do colégio — não sabem que tesouro perderam. Eduardo saiu-me uma verdadeira revelação. É dessas criaturas privilegiadas que possuem o dom divino da arte, mas que às vezes passam a vida inteira sem se revelarem a si próprias. Aqueles seus modos, aquela timidez: gênio puro, minhas amigas! Vocês hão de vê-lo um dia aparecer qual meteoro, alcançar a glória e cair como um bólide dentro da Academia. Está escrevendo um romance que é um suquinho! Lindo, lindo!...

“Esse romance levou meses a compor-se. Todos os dias, no quarto de hora de folga que juntava as professoras na saleta de espera, dona Zenóbia vinha com notícias da obra.

“— Está ficando que dá gosto! O capítulo acabado esta manhã parece uma coisa do outro mundo!

“E desfiava o enredo. Era o caso dum moço loucamente apaixonado por uma donzela de cabelos loiros e olhos azuis. A primeira parte do romance ia toda na pintura desse amor, lindo como não havia outro, puro poema em prosa. E dona Zenóbia revirava os olhos, em êxtase.

“As outras professoras acabaram por interessar-se a fundo pelo romance de Eduardo — Núpcias fatais —, o qual virara folhetim vocalizado aos pedacinhos, dia a dia, pela pitoresca dona Zenóbia.

“A notícia correu pela cidade e isso acabou reabilitando Eduardo da sua fama de Zé-faz-formas, pax-vóbis e mais apelidos deprimentes de que é fértil o povo.

“— Como a gente se engana! — diziam; — Parecia uma lesma de pernas, ninguém dava nada por ele e no entanto é um romancista!...

“As professoras davam à trela e o enredo das Núpcias fatais corria de boca em boca pela cidade, os lances de efeito gabados, com citação das melhores tiradas. O Popular, noticiando o aniversário do moço, consagrou-o — ‘festejado homem de letras’.

“Dona Zenóbia sabia dosar a narração de modo a manter as professoras suspensas nos lances mais comoventes. Houve um trecho que as pôs pálidas de espanto. Era assim: Lúcia fora pedida pelo rival de Lauro, o galã infeliz. O pai de Lúcia e toda a família queriam o casamento, porque o monstro era riquíssimo, tinha casa em Paris, iate de recreio e um título de conde prometido pelo papa. Já o triste do Lauro, coitado, para cúmulo de desgraça, perdera uma demanda e estava mais pobre que Jó. As cartas em que ele contava isso a Lúcia eram de chorar! Todos contra o mísero e tudo a favor do monstro...

“O pai fizera uma cena horrível.

“— Antes ver-te morta do que ligada a esse miserável... poeta!

“E a coitadinha, alanceada no mais dolorido do coração, doida de amor, chorava noite e dia, encerrada no fundo de escura cela.

“— Pobre mártir! — exclamavam com um nó na garganta as compassivas professoras. — Por que não há de sair a sorte grande para um desditoso destes? Peça ao seu marido, dona Zenóbia, que lhe faça sair a sorte, sim?

“— Não pode. Prejudicaria o desfecho e, ademais, não é estético — respondeu preciosamente dona Zenóbia.

“E assim corria o tempo.

“O romance era à moda antiga, em vários volumes, sistema Rocambole. Já tinha acontecido o diabo. A moça fugira de casa, raptada em noite de tempestade pelo cavaleiro gentil; mas o dinheiro do monstro vencia tudo: foram presos e encarcerados, ela num convento, ele num calabouço infecto.

“Mas quem pode vencer o amor? O cavaleiro conseguira, iludindo os guardas, abrir um subterrâneo que ia ter ao convento. Que tarefa ingente! Como as professoras deliraram acompanhando a obra desesperada do homem - toupeira, a escavar com as unhas em sangue a terra fria!

“Venceu, porém; alcançou o pavimento da cela onde Lúcia chorava de amor e conseguiu falar-lhe. Que lance este, quando Lúcia percebe o estranho murmúrio da voz subterrânea que a chamava! Era a redenção, afinal!

“Entendem-se e combinam a fuga. Um barqueiro esperá-los-ia em tal lugar, à meia-noite etc. etc.

“Dona Zenóbia parava nos trechos mais empolgantes, deixando a assembleia ora em lágrimas, ora em arroubos de indizível êxtase. Às vezes, quando estava de saia preta, em seus dias de azedume, não adiantava a novela um passo sequer.

“— Hoje, descanso. Eduardo está com um pouco de dor de cabeça e não escreveu uma linha...

“As professoras ficavam pensativas...

“Chegou por fim o dia da fuga, ponto culminante da obra. Dona Zenóbia, perita na arte de armar efeitos, anunciou-o de véspera.

“— É amanhã o grande dia!

“— Mas escapam, dona Zenóbia? — indagou uma torturada do romantismo, com a mão no seio palpitante.

“— Não sei...

“— Pelo amor de Deus, dona Zenóbia! Eu não posso mais! Se o monstro ganha a partida ainda esta vez, diga logo, porque eu tiro umas férias e vou para a roça esquecer este maldito romance que já me está deixando histérica.

“— Paciência, filha! Como posso saber o que lá se passa na imaginação do artista?

“— Mas peça a ele, peça por nós todas, que desta vez não deixe os espiões do monstro descobrirem os fugitivos. Pelo menos agora. Mais tarde vá, mas agora eles precisam de uns meses de recompensa. Arre, que também é demais!...

“No dia seguinte dona Zenóbia apareceu sorridente. As professoras em ânsias, ao vê-la assim, criaram alma nova.

“— Então? — exclamaram palpitantes.

“Dona Zenóbia fez um muxoxo.

“— Esperem lá. A coisa não vai a matar. Eduardo neste momento atinge o ponto culminante da obra. Deixei-o com o olhar em fogo — o fogo da inspiração! —, os cabelos revoltos, a cabeça febril. É o momento supremo do fiat! Toda obra depende deste fecho de abóbada. Como a solução do caso vem das profundas do subconsciente estético, e ainda não viera até a hora de eu sair, pedi-lhe que me comunicasse o resultado pelo telefone. Esperemos...

“As moças puseram os olhos no céu e as mãos no peito.

“— Meu Deus! — disse uma. — Estou com o coração aos pinotes! Se Lauro é preso, se os emboscados o matam... O monstro é capaz de tudo!

“Nisto vibrou a campainha do telefone. Dona Zenóbia piscou para as amigas estarrecidas e foi atender.

“Ficaram todas no ar, imóveis, trocando olhares de interrogação, enquanto no compartimento vizinho dona Zenóbia conversava com o grande artista.

“— Ele não para de chorar, Zenóbia. A meu ver é cólica o que ele tem. Desde que você saiu que é um berro só. Já fiz tudo, dei chá de erva-doce, dei banho quente — nada! Berra que nem um bezerro!

“— Você já cantou o Guarani?

“— Cantei tudo, o Guarani, o ‘Tutu já lá vem’, o ‘Somos da pátria a guarda’... Mas é pior.

“— Deu camomila?

“— A camomila acabou. Quis mandar a negrinha buscar um pacote na botica, mas não achei o dinheiro...

“— Lerdo! E aqueles dois mil-réis de ontem? Não sobrou metade? “— É que... é que comprei um maço de cigarros...

“— Sempre o maldito vício! Olhe, atrás do espelho, perto da saboneteira azul, está uma pratinha de quinhentos. Mande buscar a camomila, mas no Ferreira, que a do Brandão não presta, é falsificada. Ferva uma pitada numa xícara d’água e dê às colherinhas. Dê também um clister de polvilho. Mudou os paninhos?

“— Três vezes, já.

“— Verde?

“— Verde carregado, como espinafre.

“— Bem. Eu hoje volto mais cedo. Faça o que eu disse, e fique com ele na rede. Cante a ária da Mignon, mas não berre como daquela vez, que assusta o menino. Em surdina ouviu? Olhe: ponha já as fraldas sujas na barrela. Escute: veja se tem água no bebedouro dos pintos. A marmelada? Ora bolas! Deixe isso para amanhã. Bom, até logo!

“Dona Zenóbia largou o fone e voltou às companheiras, que continuavam suspensas.

“— Estes artistas!... — começou ela. — Que é que vocês pensam que Lauro fez?

“— Fugiu! — disse uma.

“— Deixou-se prender! — aventou outra.

“— Suicidou-se! — declarou a terceira.

“— Ninguém adivinha. Lauro rompeu o pavimento, entrou na cela e depois de uma grande cena resolveu fazer-se frade!...

“Foi um oh! geral de desapontamento. Aquele fim imprevisto decepcionara a todas. Protestaram, e dona Zenóbia, condoída, voltou atrás.

“— Estou brincando. Eduardo está hoje com uma dor de cabeça danada e eu o aconselhei a descansar um bocadinho. Ficou para outro dia o fim. Esperemos.

“O romance do chupim tem hoje onze anos. Já é menino de escola. Chama-se Lauro e, para reabilitação do sexo barbado, puxou o caráter da mãe.”


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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