

As confissões do Pastor Matias
Tinha Matias vinte
e cinco anos quando se converteu à religião evangélica, tornando-se logo um
fervoroso pentecostal e um rígido defensor do que chamava de “sã doutrina”. Não
usava bermuda nem outras roupas que tomava por “mundanas”. Desfez-se da
televisão e quebrou todos os seus velhos LPs de rock, incluindo sua tão
cobiçada coleção de Pink Floyd.
— É o diabo
encaixotado! dizia, referindo-se ao aparelho de TV.
Parou de fumar
e não frequentava mais os botecos. O futebol, que sempre fora sua grande
paixão, também foi deixado de lado, e o sexo ficou só para depois do casamento.
Debalde tentou
converter a namorada, que temia abandonar o terreiro de Umbanda e ser punida
pelos orixás. Em consequência disso rompeu ele o namoro, alegando que não podia
haver comunhão entre a luz e as trevas. Ia procurar uma mulher santa e submissa
à palavra de Deus.
— O Senhor vai
preparar outra, tentava legitimar assim sua atitude aos parentes, que não se
conformavam com tão brusca e extremada conduta.
Dois anos
depois de convertido, foi consagrado ao posto de Diácono. A essa altura já
tinha encontrado sua “Rebeca”, termo que, no jargão evangélico, identificava a
mulher “preparada por Deus”. Seu nome era Sabrina.
Sabrina era
virgem e orçava pelos seus trinta anos de idade. Foi Matias seu primeiro
namorado. Conheceram-se num culto de vigília. Oraram, olharam-se e amaram-se.
Casaram um ano depois, com a bênção de Deus e do pastor Jaime.
Já no início
do consórcio Matias mostrou-se obstinado e exigente para com a mulher,
proibindo-lhe o uso de qualquer roupa ou objetos considerados por ele como
vaidosos ou mundanos, incluindo aí calças, brincos, pulseiras, colares, anéis e
outras bijuterias. Não lhe permitia ainda que fizesse uso de anticoncepcional
ou seja lá qual fosse o método contraceptivo, e justificava tudo recorrendo à
Bíblia.
— Ora, não diz
a Palavra de Deus “crescei e multiplicai?”
Pela rigorosa
doutrina do Matias, não era ainda permitido à mulher depilar as pernas ou fazer
as sobrancelhas. O uso de esmaltes também não era tolerado. A estas regras
seguiam-se outras, como a proibição do salto alto e das botas até o joelho.
— A mulher de
Deus tem de ser santa. Está na Bíblia!
Concomitantemente
ao nascimento do primeiro filho, foi ele por fim ordenado pastor. Consta dessa
data seu estranho hábito de dormir de paletó e tomar banho de camiseta e
bermuda. Os outros cinco filhos vieram logo a reboque, num espaço quase linear
de dez anos. Completava-se aí o mandamento bíblico da procriação.
Aos cinquenta
anos Matias decidiu fundar sua própria denominação, construindo um pequeno
salão num terreno cedido pelo sogro, o qual fora erguido em mutirão pelos
próprios membros, cujo número, à época, chegava a quarenta pessoas, entre
homens e mulheres.
Foi num culto
de domingo que Matias apresentou os primeiros sintomas de uma grave enfermidade
que rapidamente o levaria a morte. Sentiu um calafrio na espinha, que veio
acompanhado de uma dor intensa e um desmaio alucinante.
O médico
deu-lhe o diagnóstico e o tempo que lhe restava de vida:
— Dou-lhe num
máximo um mês de vida. Aproveite-a da melhor forma. A medicina não poderá
curá-lo. Lamento!...
Foram dias
difíceis e angustiantes. Não obstante acreditasse e buscasse por meio da fé a
cura para seu corpo, sentia este definhando lentamente aos poucos. Nem sequer
podia pregar. Ficava quase todo o tempo numa cama, orando e lendo a Bíblia.
Sentindo a
proximidade da morte, deliberou escrever uma carta. Chamou então a companheira
e recomendou-lhe em prantos que esta fosse aberta e lida apenas no seu velório,
mas não por ela.
— Promete-me,
promete?
Comovida e
visivelmente abatida, ela o abraçou e, entre lágrimas, prometeu-lhe tudo que
quisesse.
Morreu Matias
aos cinquenta e cinco anos de idade, de terno e gravata e com a Bíblia aberta
no Salmo 91 sob o peito.
Deu-se o
velório na igreja, às nove horas de uma fria noite do mês de junho. Realizada a
cerimônia fúnebre, tem-se a leitura da carta, que se encontrava devidamente
lacrada e em cujo verso se via escrito: “Minhas confissões”.
— Prezados irmãos,
a pedido do meu querido esposo não abrir esta carta nem sei absolutamente nada
do seu teor. Desta forma, para cumprir sua vontade e para selar a promessa que fiz
com ele, entrego-a ao nosso irmão Jônatas, a fim de que proceda sua leitura.
Peço silêncio e reverência a todos os presentes.
Ela chora. O
homem então começa a leitura da carta:
“Pequei,
Senhor! Sim, pequei!...
E foi a
gravidade dos meus pecados que fez dissipar de mim toda disposição em querer
confessá-los ainda em vida. O perdão de Deus eu já o obtive, agora só peço o
vosso.
Perdoai-me
irmãos!
Não me
condenai pelos meus pecados, pois Davi também pecou e ainda assim vós o amais
com todo o vosso ímpeto. Eu não fui Davi, mas fui humano.
Perdoai-me
irmãos!”
A esta altura
nota-se muitas faces apreensivas e outras completamente tomadas de angústia e
pavor. Algumas mulheres buscam sair às ocultas do templo, mas de pronto são
impedidas pelos seus maridos. Uma senhora aparentando lá seus cinquenta anos
sente um mal-estar, fazendo cessar momentaneamente a leitura da misteriosa
epístola.
Os ânimos são
acalmados e dá-se prosseguimento à leitura da carta:
“Qual de vós
não cometeu pecado atire a primeira pedra neste defunto que vos escreveu. Se a
minha carne foi fraca, lembrai-vos de que sois também carne e de que sereis
também defuntos.
Perdoai-me
irmãos!
Se fui um
descomedido amante da vida e dos prazeres, e se para usufruí-los servir-me do
vosso suado dízimo e ofertas, lembrai-vos que em troca recebestes palavras de
conforto e abundantes conselhos.
Perdoai-me
irmãos!
Quantos de
vós, no mais íntimo de vossos corações, não daríeis tudo por uma delirante
noite de excitação e prazer? Se exerceis restritivas ações sobre vossos
impulsos e desejos, certamente não o fazeis por deliberado amor a Deus. Em vez
disso, porém, fazeis porque temais o julgamento final e as labaredas ardentes
do inferno.
Perdoai-me
irmãos!
Fui ator de
uma comédia trágica. E vós que assistis a este fúnebre espetáculo e que vedes
temerosos este desagradável esquife, contai vossos anos, calculai vossos dias,
pois são como a sombra de um pássaro que nos sobrevoa. O que é a vida senão uma
peça de teatro em que cada um, sob sua própria máscara, vive seu próprio
personagem até que o supremo diretor o venha tirar da cena?
Perdoai-me
irmãos!
Fui santo e
devasso; fui crente e profano; fui sincero e hipócrita; fui humano,
demasiadamente humano...
Perdoai-me
irmãos!
Confesso,
minha doce e querida Sabrina, que não fostes tu minha única mulher, nem foram
únicos os nossos três filhos. Em várias camas deitei e com muitas mulheres fiz
gerar outros filhos, alguns dos quais aqui estão a velar o pai defunto. Olhai
bem o Giovane, o Miguel e a Selma... Vede bem as cores de seus olhos, suas
testas largas, seus cabelos pretos e, principalmente, os narizes aduncos de
todos eles. Sim, são todos filhos meus, de outras mulheres que muito amei...
Lúcia, Márcia e Valéria. Não as condenem irmãos, pois seus maridos de tudo
tinham conhecimento e tudo aprovavam.
Perdoai todos
nós, irmãos!”
Grande
burburinho se faz ouvir no recinto. Algumas mulheres choram; outras desmaiam e
agridem-se com tapas e puxões de cabelos. A confusão é generalizada. Homens
batem-se corpo-a-corpo e insultam-se mutuamente. Enquanto isso, um grupo de cerca
de vinte pessoas aproxima-se do caixão e encara o morto como se lhe quisesse
trazer de volta sua alma, apenas para ter o prazer de mandá-la às profundezas
do inferno.
Em meio ao
imenso alvoroço, chegam dois agentes funerários devidamente acompanhados de uma
viatura policial. Acalmam-se novamente os ânimos. Metem-se o féretro no
rabecão, que é conduzido imediatamente ao cemitério.
Prosseguem-se
as confissões do pastor Matias...
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