11/24/2018

Sedento de glória (Conto), de Iba Mendes


SEDENTO DE GLÓRIA 

Todos os que o conheciam, o consideravam um homem lúcido, íntegro e fiel cumpridor de seus deveres. O único defeito que se lhe atribuíam era sua mania de grandeza, algo que se contrastava com sua posição social, sendo ele um simples funcionário público. Estava solteiro, mas não pela falta de pretendentes, mas por livre escolha, o que ele jocosamente justificava invocando o velho jargão popular “antes só do que mal acompanhado”. Contava então com trinta e cinco anos de idade, gozando de perfeita saúde e muita disposição para o trabalho e outras coisas.

De um dia para o outro, porém, acordou bradando o Grito do Ipiranga, declarou a Independência do Brasil e se autoproclamou Dom Pedro I. Seguiram-se alguns barulhos, como se estivesse a bater panelas, os quais vieram acompanhados de mais um estridente grito: “independência ou morte!”

A balbúrdia que se ouvia na casa, chamou a atenção dos vizinhos, que a estranharam, visto que, desde que para ali se mudara, ele sempre se mostrou uma pessoa ordeira e não dada a escândalos.

Apreensivos e tomados de espantosa curiosidade, um grupo de quatro amigos deliberou investigar o caso,  e foram até sua casa, a fim de ver se descobriria alguma novidade. Chamaram-no algumas vezes, mas tudo ali agora estava em absoluto silêncio.

— Deve ter sido coroado imperador e está repousando em seu trono — brincou um senhor gordo e bonachão, que, naquela vila, era muito conhecido por suas pilhérias e pelo seu humor politicamente incorreto.

Passados alguns minutos a porta abre-se, e eis que aparece “Dom Pedro I”, que trazia a fronte coberta por uma espécie de coroa, confeccionada de papelão e tingida com tinta amarela. Também segurava em uma das mãos um cabo de vassoura, que parecia representar o bastão imperial.

— Está decretada a Independência do Brasil! — vociferou como que se estivesse se dirigindo a seus súditos e soldados.

Embaraçados, os homens não sabiam o que dizer. Limitaram-se apenas a perguntar-lhe se estava tudo em ordem, se precisava de alguma coisa, entre outras semelhantes cortesias. Entretanto, o imperador sentia-se tão eufórico com sua façanha, que os ignorou completamente, retornando sem demora ao conforto de seu palácio.

— Perdeu completamente o juízo — disseram.

— É caso de Pinel — gracejou o gordo piadista.

No dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, ele apareceu na rua ao simples estilo dos mortais. Cumprimentou a todos que viu e saiu para trabalhar como de hábito, a passos largos e de cabeça erguida.

Os vizinhos permaneciam sem entender nada e, para evitar constrangimentos desnecessários, mantiveram-se reservados quanto ao ocorrido no dia anterior.

— É melhor assim — concordaram entre si.

Porém, um mês depois ouviu-se novamente novos rumores na casa, os quais vieram seguidos de um novo e vibrante grito:

— Viva a República!

Era o marechal Deodoro da Fonseca, que acabava de proclamar a república brasileira, destronando o velho imperador e dando fim à Monarquia.

Instantes depois apareceu ele na janela trajado de uma jaqueta escura, toda ela repleta de penduricalhos, que pareciam imitar os distintivos militares. O gordo ria às escâncaras, de maneira que chamou a atenção do líder republicano, enfurecendo-o.

Nisso a porta abriu-se e o marechal saiu gritando, desatinado, cavalgando sobre um cavalo de pau, cuja cabeça fora confeccionada com uma garrafa de Biotônico Fontoura. Os moradores dispersaram-se assustados e confusos, enquanto o gordo dava pulinhos de alegria. Principiou-se então uma correria. Nisto o obeso tropeçou na calçada e caiu de bruços com a barriga no chão. Foi o tempo do alto oficial da República pegar um pedaço de madeira e acertar-lhe em cheio numa das pernas. Os outros correram para acudir o pobre homem, o qual mesmo sangrando, ria sem parar.

No outro dia, como sucedera antes, ele saiu para trabalhar sem se dar conta da desordem em que se envolvera e que tanta confusão causara na vizinhança. O homem gordo, mancando da perna, olhava-o de soslaio; esperava uma retratação pela pancada que levara. Mas o outro limitou a perguntar-lhe o que acontecera com a perna.

— Caí à toa — disse o adiposo rindo pelos cantos da boca.

Desde que se deu este episódio, passou ele agir de maneira ainda mais estranha ao habitual. Tornou-se taciturno e retraído. Doravante o semblante transparecia severidade, fazendo realçar umas pregas de frustração ou coisa do gênero.

Era um domingo do mês de agosto, quando ele amanheceu exclamando chavões de Getúlio Vargas:

— Trabalhadores do Brasil!... Hoje estais com o governo; amanhã sereis o governo...

Os vizinhos, que já anteviam o desfecho daquela comédia, correram até lá curiosos. Desta vez, porém, não o chamaram, nem bateram na porta. Observaram-no pela janela da casa. Lá estava ele, em pé, todo imponente e muito bem vestido de um terno preto, sobre o qual sobressaía uma tira de pano verde, que lhe servia como faixa presidencial.

— Para trás legalistas malditos, para trás! — berrou como se estivesse na iminência de ser atacado. E logo depois: — Avante revolucionários! Vamos à luta!...

Notando a agressividade do coronel gaúcho, a vizinhança dispersou-se rapidamente, já prevendo alguma reação ainda mais ofensiva do que a anterior. Todavia, ao contrário das outras vezes, agora ele se mantinha aparentemente sereno, permanecendo trancafiado dentro de casa num silêncio profundo e assustador. E assim esteve durante o resto do dia até à tarde do dia seguinte, quando o gordo e mais outros três bisbilhoteiros determinaram ir aos aposentos do eminente ditador. Desta vez, porém, foram precavidos e atentos a qualquer movimentação.

A casa continuava num silêncio sepulcral. Bateram palmas à porta, mas nenhum som se ouviu; gritaram o seu nome, mas ele não respondia. Notaram então que a porta estava entreaberta. Empurram-na devagarinho e seguiram pelo corredor na ponta dos pés. Súbito, pararam estupefatos. Ali estava ele caído bem no meio da sala. Sobre a parte inferior do corpo havia uma enorme bandeira do Brasil, cuja inscrição “Ordem e Progresso” havia sido substituída por outra, que provavelmente ele mesmo criou: "Deixo a vida para entrar na glória."

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