

SEDENTO DE GLÓRIA
Todos
os que o conheciam, o consideravam um homem lúcido, íntegro e fiel cumpridor de
seus deveres. O único defeito que se lhe atribuíam era sua mania de grandeza,
algo que se contrastava com sua posição social, sendo ele um simples
funcionário público. Estava solteiro, não por falta de pretendentes, que foram
muitas, mas por livre escolha, o que ele jocosamente justificava invocando o
velho jargão popular “antes só do que mal acompanhado”. Contava então com
trinta e cinco anos de idade, gozando de perfeita saúde e muita disposição para
o trabalho e outras coisas.
De
um dia para o outro, porém, acordou bradando o “Grito do Ipiranga”, declarou a
Independência do Brasil e se autoproclamou Dom Pedro I. Seguiram-se alguns
barulhos, como se estivesse a bater panelas, os quais vieram acompanhados de
mais um estridente grito: “independência ou morte!”
A
balbúrdia que se ouvia na casa, chamou a atenção dos vizinhos, que a
estranharam, visto que, desde que para ali se mudara, ele sempre se mostrou uma
pessoa ordeira e não dada a escândalos.
Apreensivos
e tomados de espantosa curiosidade, um grupo de quatro amigos deliberou
investigar o caso, e foram até sua casa, a fim de descobrirem alguma novidade. Bateram
palmas e o chamaram algumas vezes pelo nome, mas não houve resposta.
—
Deve ter sido coroado imperador e está repousando em seu trono — brincou um
senhor gordo e bonachão, que, naquela vila, era muito conhecido por suas
pilhérias e pelo seu humor politicamente incorreto.
Passados
alguns minutos, porém, a porta abre-se, e eis que aparece “Dom Pedro I”, que
trazia a fronte coberta por uma espécie de coroa, confeccionada de papelão e
tingida com tinta amarela. Numa das mãos segurava em uma um cabo de vassoura,
que parecia representar o bastão imperial.
—
Está decretada a Independência do Brasil! — vociferou como que se dirigindo a
seus súditos e soldados.
Embaraçados
e constrangidos, os homens não sabiam o que dizer. Limitaram-se apenas a dar
bom dia e a perguntar se estava tudo bem. Entretanto, o imperador sentia-se tão
eufórico com sua façanha, que os ignorou completamente, retornando sem demora
ao conforto de seu palácio.
—
Perdeu completamente o juízo — disseram.
—
É caso de Pinel — gracejou o gordo piadista.
No
dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, ele apareceu na rua ao simples
estilo dos mortais. Cumprimentou a todos que viu e saiu para trabalhar como de
hábito, a passos largos e de cabeça erguida.
Os
vizinhos permaneciam sem entender nada e, para evitar constrangimentos
desnecessários, mantiveram-se reservados quanto ao ocorrido no dia anterior.
—
É melhor não falar nada — concordaram entre si.
Porém,
um mês depois se ouviu novamente novos rumores na casa, os quais vieram
seguidos de um novo e vibrante grito:
—
Viva a República!
Era
o marechal Deodoro da Fonseca, que acabava de proclamar a república brasileira,
destronando o velho imperador e dando fim à Monarquia.
Instantes
depois ele apareceu na janela trajado de uma jaqueta escura, toda ela repleta
de penduricalhos, que pareciam imitar os distintivos militares. O gordo ria às
escâncaras, de maneira que chamou a atenção do líder republicano,
enfurecendo-o.
Nisso
a porta abriu-se e o marechal saiu gritando, desatinado, cavalgando sobre um
cavalo de pau, cuja cabeça fora confeccionada com uma garrafa de Biotônico
Fontoura. Os moradores dispersaram-se assustados e confusos, enquanto o gordo
dava pulinhos de alegria. Principiou-se então uma correria generalizada. Nisto
o obeso tropeçou na calçada e caiu de bruços com a barriga no chão. Foi o tempo
do alto oficial da República pegar um pedaço de madeira e acertar-lhe em cheio
numa das pernas. Os outros correram para acudir o pobre homem, o qual mesmo
sangrando, ria sem parar.
No
outro dia, como sucedera antes, ele saiu para trabalhar tranquilamente como se
nada tivesse acontecido e sem se dar conta da desordem em que se envolvera e
que tanta confusão causara na vizinhança. O homem gordo, mancando da perna,
olhava-o de soslaio; esperava uma retratação pela pancada que levara. Mas o
outro limitou apenas a lhe perguntar o que acontecera com a perna.
—
Caí à toa — disse o adiposo rindo pelos cantos da boca.
Desde
o último e grotesco episódio, ele passou agir de maneira ainda mais estranha ao
habitual. Tornou-se taciturno e retraído, ficando a maior parte do tempo
enclausurado dentro de casa.
Era
um domingo do mês de agosto, quando ele amanheceu exclamando chavões de Getúlio
Vargas:
—
Trabalhadores do Brasil!... Hoje estais com o governo; amanhã sereis o
governo...
Os
vizinhos, que já anteviam o desfecho daquela comédia, correram até lá curiosos.
Desta vez, porém, não o chamaram, nem bateram na porta. Ficaram apenas
observando pela janela da casa. Lá estava ele, em pé, todo imponente e muito
bem vestido de um terno preto, sobre o qual sobressaía uma tira de pano verde,
que lhe servia como faixa presidencial.
—
Para trás legalistas malditos, para trás! — berrou como se estivesse na
iminência de ser atacado. E logo depois: — Avante revolucionários! Vamos à
luta!...
Notando
a agressividade do coronel gaúcho, a vizinhança dispersou-se rapidamente, já
prevendo alguma reação ainda mais ofensiva do que a anterior. Todavia, ao
contrário das outras vezes, agora ele se mantinha aparentemente sereno,
permanecendo num silêncio profundo e assustador. E assim esteve durante o resto
do dia. Na manhã do dia seguinte, o gordo e mais outros três bisbilhoteiros
determinaram ir aos aposentos do eminente ditador. Desta vez, porém, foram
precavidos e atentos a qualquer movimentação.
A
casa continuava num silêncio sepulcral. Bateram palmas à porta, mas nenhum som
se ouviu; gritaram o seu nome, mas ele não respondia. Notaram então que a porta
estava entreaberta. Empurram-na devagarinho e seguiram pelo corredor na ponta
dos pés. Súbito, pararam estupefatos. Ali estava ele caído bem no meio da sala.
Sobre a parte inferior do corpo havia uma enorme bandeira do Brasil, cuja
inscrição “Ordem e Progresso” havia sido substituída por outra, que
provavelmente ele mesmo criou: "Deixo a vida para entrar na glória."
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...