

O Fausto de Capim Grosso
Tinha
acabado de completar vinte e oito anos de idade. Estava transbordando num verdadeiro
mar de felicidade e contentamento. Solteiro, jovem e bonito, sentia-se
indestrutível e transportado a todos os céus possíveis e impossíveis.
Encontrava-se, pois, naquele instante da vida em que se deseja que os ponteiros
do tempo cessem e que se congelem para sempre os belos dias de juventude.
Faustino
era o seu nome. Nascera em Capim Grosso, pequena cidade do interior da Bahia,
filho único de um próspero comerciante e proprietário de uma grande rede de
lojas do ramo de eletrodomésticos.
Ao
completar dezoito anos de idade, os pais o mandaram para Salvador, a fim de
concluir ali os seus estudos, e cinco anos depois, já bacharel em Direito,
retornou à sua cidade natal, onde passou a trabalhar nas empresas da própria
família.
Ali
chegou cheio de planos, sonhos e ambições.
É
preciso salientar, porém, que não se incluía aí o plano matrimonial. Ao
contrário, ensoberbecia-se no fato de nunca ter se apaixonado e esnobava
daqueles que diziam sonhar com um grande amor, com família e com filhos...
—
Amor? Ah, não! não nasci para essas coisas — dizia em tom de galhofa à roda de
amigos.
Não
obstante manifestasse imensa satisfação com o tipo de vida que levava, nutria
ele — secretamente dentro de si — de uma angústia vulcânica e avassaladora, a
única coisa que de fato o perturbava e que com frequência o fazia sentir-se
melancólico e infeliz: era o medo mórbido de envelhecer. Daria tudo, inclusive
toda a fortuna que viesse a herdar, a fim de manter-se jovem para sempre.
Apesar da idade e dos estudos, ainda não havia amadurecido o suficiente para lidar com as naturais leis da natureza, e
se alimentava às ocultas da mística de uma eterna juventude.
Com
andar do tempo, a preocupação com a idade dominou-o completamente, e de tal
modo que passou a se envolver com o ocultismo, algo que ele mesmo denominou de
“a ciência da arte e do mistério”, embrenhando-se nos conhecimentos secretos da
maçonaria, da cabala, da teosofia, da astrologia, da alquimia e das religiões
politeístas, como aquelas outrora praticadas no antigo Egito e em outras
civilizações da antiguidade. Dedicou-se ainda de corpo e alma aos estudos
acerca dos mistérios da vida, aprofundando-se no conhecimento da Bíblia, dos
livros apócrifos e demais obras consideradas sagradas, especialmente do famoso
“Livro de São Cipriano”, acreditando que encontraria nele, se não uma candeia,
ao menos uma pontinha de luz para a perpetuação eterna da sua mocidade.
***
Era
o dia de procissão de São Cristóvão, o santo padroeiro de Capim Grosso. Durante
toda uma semana, a cidade enchia-se de
visitantes, oriundos de localidades próximas, muitos dos quais ali compareciam
apenas para usufruírem dos atrativos a que muito excediam à simples
espiritualidade, tais quais as quermesses, os bingos, os leilões, as gincanas,
as bebidas e as comidas típicas, que os extasiavam. Dentre esses visitantes,
apareceu um por nome de Goethe, homenzarrão alto, loiro, elegantemente vestido
e com acentuado sotaque alemão. Este logo chamou a atenção das pessoas, não
propriamente pelos seus traços físicos, mas por seu sedutor carisma e pela
áurea de mistério que parecia lhe envolver. Faustino foi um dos que mais se
deixou impressionar pelos encantos deste ilustre visitador.
Foi
assim que, em consenso com a família, convidou-o para um jantar em sua casa no
domingo próximo. O homem acedeu com satisfação o convite, e retirou-se sorrindo.
No
dia aprazado, lá compareceu o misterioso alemão, que ali chegou todo
prazenteiro e falando muito discretamente. Pouco a pouco, porém, estabeleceu-se
intimidade entre os convivas, e todos riam como velhos e conhecidos amigos.
Durante
toda a ceia, Goethe mostrou-se de uma cortesia exemplar, que a todos encantou.
Faustino perguntou-lhe muitas coisas: de onde vinha, o que fazia, quem eram
seus pais, se era casado, se tinha filhos, enfim, uma chuva de perguntas. Ele,
por sua vez, contou várias histórias e discorreu ainda sobre ciência, religião,
filosofia e outros variados assuntos, os quais fizeram o coração do jovem
transbordar de curiosidade. Queria conhecê-lo melhor, e até aventou para si
mesmo a ideia de estar diante de um místico guru, o qual muito poderia
ensinar-lhe acerca dos mistérios da vida e, quem sabe, apontar-lhe um novo
horizonte para seu angustiante dilema.
Terminado
a refeição, foram ambos até a biblioteca, que era um elegante recinto anexo à
casa, e que constava de dez grandes estantes. Em três delas estavam os livros
sobre Direito, da história da jurisprudência e suas inúmeras ramificações pelo
mundo; outras duas continham os livros da Literatura Universal, os clássicos da
Literatura Portuguesa e Brasileira, dentre os quais se incluíam as obras de
Augusto dos Anjos e de Fernando Pessoa; nas demais estantes constavam os livros
sobre religião, misticismo, filosofia e sociedades secretas. Goethe examinou-os
bem, retirando entre eles o misterioso “Livro da Capa Preta”, aquele escrito
por São Cipriano, o bispo de Cartago. O rapaz estremeceu ligeiramente, enquanto
o homem, sorrindo, fixava-lhe um olhar penetrante e resplandecente.
—
Queres de fato saber quem eu sou? — perguntou-lhe ele sorrindo, como se já antecipasse
a resposta.
Agitado
e tomado de pavor, Faustino deixa-se cair, sem voz, sobre um velho sofá de
couro. Respira fundo e, após breves segundos, responde com a voz trêmula e os
gestos confusos:
—
Sim, sim, és Lucius!
—
Pois aqui estou — replicou-lhe este sorrindo com ar de triunfo e íntima
satisfação.
O
rapaz permaneceu imóvel por algum tempo. Queria falar, a voz, porém, sumiu-lhe
novamente da boca. Um frio desceu-lhe por toda a espinha, enquanto seus pelos
eriçaram-lhe por todo o corpo e o suor cálido caía-lhe em bagas pela testa.
O
misterioso homem acercou-lhe lentamente e balbuciou algumas palavras obscuras e
sedosas no seu ouvido. Estas pareceram revigorar-lhe os ânimos, fazendo com que
o moço se erguesse de súbito, como se estivesse preparando voo para as alturas.
Neste instante, as mãos deles apertaram-se com energia: entendiam-se e riam-se
como se fossem bons e velhos amigos.
Daí
em diante, por espaço de alguns anos, sucedeu-lhe uma enxurrada de acontecimentos:
o pai e a mãe faleceram num acidente de automóvel; de posse da herança, foi ele
passear na Europa, retornando meses depois, feliz e tão jovem quanto antes. Já
em sua cidade, assumiu o controle das empresas da família, expandiu os negócios
com a incorporação de outras sociedades e passou a encabeçar a lista dos homens
mais ricos do Brasil.
Quanto
ao seu dilema com a velhice, desde o diálogo da biblioteca, dissiparam-se-lhe
todos os medos e preocupações. Seus cuidados agora se dirigiam exclusivamente a
questões do amor. Casamento era assunto que não se via em sua agenda, apesar da
imensa procissão de pretendentes. Evitava falar disso e se enfadava com os que
insistiam em lembrá-lo.
—
O quê? casar? Não, não nasci para marido — repetia entediado aos que teimavam
em querer mandar-lhe ao altar.
Com
o passar do tempo, um fato começou a prender a atenção dos habitantes da
cidade. Apesar dos anos longos e desvairados, Faustino parecia não envelhecer.
Alguns atribuíam esta proeza a fartura de dinheiro que tinha, a qual lhe dava
acesso aos mais sofisticados avanços da medicina no âmbito da estética. Outros,
contudo, levantaram a suspeita de que ele havia feito um pacto com o diabo, e
que por isso não envelhecia.
Ao
completar cinquenta anos de idade, já um pouco mais gordo, porém mantendo a
mesma aparência de trinta, relaxou-se ele em suas preocupações com as coisas do
amor. Foi nessa época que conheceu Margarete, uma linda e fresca viúva de
trinta anos, que lhe cativou o coração e olvidou de sua mente todo o seu passado
tenebroso.
Naquela
noite sentia-se no auge da felicidade. A casa estava tomada por convidados
importantes, gente de todos os lugares, pessoas da alta sociedade
capim-grossense e de toda a redondeza, grandes fazendeiros, comerciantes,
artistas e políticos. Margarete, com seu belo vestido azul, era o centro de
todos os olhares. E ele extasiava-se ébrio de amor ao lado dela...
Terminada
a festa e dispersados os convidados, ele conduziu a amada até a casa dos pais,
retornando logo em seguida à sua bela mansão. Ali chegando dirigiu-se até à
sala da biblioteca, onde se sentou meditativo no velho e empoeirado sofá de
coro.
De repente,
como se lhe surdisse uma cobra, apareceu num vapor de fumaça, um homem alto,
loiro e com forte sotaque alemão. Era o mesmo e velho Goethe, que esboçava um riso largo e zombeteiro. Trazia nas mãos um
documento todo redigido em tinta rubra, ao fim do qual se via escrito com o
próprio sangue: Faustino Carneiro Rios.
— Vim
trazer-lhe a conta — disse-lhe o visitante soltando uma formidável gargalhada que
se fez ecoar pela casa inteira.
Faustino
ergueu-se sobressaltado do assento. Seus olhos pareciam saltar para fora, como se
estivesse na iminência da própria morte. Neste momento lembrou-se do antigo diálogo
que tivera na biblioteca, do livro da capa preta, do pacto que assinara...
Lembrou-se, enfim, de Margarete.
Goethe
soltou nova gargalhada e se esvaiu pelos ares, deixando para trás lágrimas e
fumaças.
Parabéns adorei o conto .
ResponderExcluirGrato, amigo(a)... Abraços...
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