11/17/2018

O Velho e o Mancebo (Conto), de Iba Mendes


O VELHO E O MANCEBO

O velho, sentado numa rústica cadeira e de punho à bengala, fixou seu olhar penetrante no mancebo, que se mantinha sobressaltado, na expectativa da iminente repreensão. Alguns o reconheciam como profeta; outros como vidente ou curandeiro; havia ainda os que o tomavam por um anjo em forma humana, enviado por Deus a terra para alertar os homens de seus pecados.

O ancião calmamente iniciou sua admoestação:

Permanecerás escravo daquilo que tua própria mente concebeu, e que tu continuamente alimentas com a própria alma...

Terás a momentânea sensação de liberdade. À noite, porém, sozinho em teu quarto, sentirás um clamor oculto a invadir teu ser e a corroer tuas mais profundas entranhas. Então teu coração implorará por socorro, mas será em vão, pois não resistirás à força dos grilhões que te tornaram cativo. Serás como aquele escravo, o qual, vendo a superioridade de seu senhor, teme reagir, e por isso mesmo, prefere a comodidade do açoite.

Sabes que precisas reagir, mas teu espírito está desprovido de ânimo e não tens alento para seguir avante. Limita-te a sonhar, a te alimentar de quimeras, de ilusões que se dissipam tão rapidamente como a fumaça de teu próprio cigarro. “Tenho ainda muitos anos pela frente, posso tentar depois...” E assim vais seguindo na certeza de que a vida, por si mesma, há de te mostrar uma saída. Contudo, ao fim desta curta estrada, perceberás que fez deste “depois” a tua única esperança, e desta esperança, tua própria e fatal ruína.

Então procuras distrair tua mente, acreditando por breves instantes que és senhor absoluto de ti mesmo. Fumas teu cigarro e pensas na vida e nas mulheres que deverás amar, todavia não és capaz de perceber que tua existência está se esvaindo lentamente e que, assim como os vapores que expeles de tuas dilatadas narinas, logo ela desvanecerá nas trevas da noite.

Voltas ao passado e te concentras naquilo que te fez feliz. Rapidamente, porém, esquece aqueles bons momentos, afinal, sabes que o passado não volta nunca mais. Precisas viver o momento, o teu eterno momento, e com tal intensidade investes nele que te sobra pouca energia para encarares a realidade. O teu momento é tua eternidade.

Não consegues distinguir liberdade de prisão. Tua liberdade é o cárcere que tu próprio criaste e no qual aprisionaste teus sonhos infantis, quando eras uma borboleta recém saída do casulo. Agora precisas avivá-los o tempo todo em tua mente, pois só assim te esqueces por instantes das mãos que te estrangulam e dos grilhões que te atravancam os pés.

Pensas que não és o único a seguir o caminho errante e que não estás sozinho na trilha deste purgatório. Muitos são os que te seguem, os quais também erguem este mesmo estandarte... Não podes ficar sozinho... Necessitas a todo o tempo ficar com a mente ocupada, mesmo que seja com a fumaça de teu cigarro.

Lá em cima está um par de algemas, e logo te deixarás prender por elas, as quais já são partes intrínsecas de ti e, por isso, não podes erguer os teus punhos contra o opressor.

Sente-te sagaz demais e às vezes acreditas que tens a experiência de um ancião, quando na verdade, és como aquela criança que por birra rejeita o afago do pai, porém tão logo preludiam os trovões e brilham nos céus os clarões dos relâmpagos corre desesperado para abraçá-lo. Mas tu não tens pai para abraçar, nem tens mãe para sentir suas carícias. Fugir não pode... Correr não consegue... O mundo lá fora é por demais impiedoso... Precisas acostumar-te com isso...

Mal sabes tu que ali bem perto há um lugar deveras aconchegante, onde um anjo qualquer te espera com um macio cobertor e uma chávena quentinha do mais saboroso chá.

O túnel do teu pesadelo parece não ter fim, e, se vislumbras nele alguma centelha de luz, preferes usá-la para acenderes teu cigarro e para avivares tuas utopias fantasmagóricas.

Teu corpo frágil fala, suplica e reage, mas sempre cede. A dor é forte demais. Às vezes cessa por um lapso de tempo, mas logo retorna mais forte e mais dilacerante. Então aumentas a dose da tua loucura, numa tentativa desesperada de dirimir seus nefastos efeitos.

Sabes que de uma hora para outra a corda pode arrebentar, mas acreditas que sempre restará o último fio para te agarrares, que terás tempo suficiente para clamares por socorro pela última vez. Mas, e se o resgate atrasar? E se teus amigos estiverem dormindo quando os chamares? E se o fio já estiver partido?

Daqui a pouco alguém há de anunciar o teu nome... É preciso que te aprontes, pois se não fores ficarás sozinho. Virá então a noite e com ela os teus pesadelos, os tormentos soturnos de tua alma cativa. Tanta gente ao teu lado e tão renegado à solidão!!!

Eia!... O carrasco já bate à tua porta e te chama para o abismo... Não queres ir, mas precisas ir. Ele é forte demais, suas mãos são enormes, seus olhos ameaçadores, seus pés ligeiros, seus atos perspicazes. Vai, acompanha-o! Necessitas cantar para distrair teus medos. Canta mancebo, canta!...

Se tentares correr, os teus pés estarão presos entre correntes de ferro; se tentares esbofeteá-lo, tuas mãos estarão presas entre correntes; se tentares clamar por socorro, tua voz não se ecoará, e se tentares sonhar, tua mente, sempre desperta, roubará de ti a possibilidade do sono e dos sonhos.

Vai, mancebo, segue para tua guilhotina, mas leva contigo teus amigos e teus cigarros, afinal, teus pais não estarão lá, lembras? Teu carrasco, ansioso, já te espera. Observa bem o seu sarcástico sorriso. Saiba que ele te comprou por um preço muito elevado. Leva teus amigos, leva também teu cigarro, mas não precisas levar as chaves. A porta não tem fechadura. Esta noite não vai acabar tão cedo e teus pesadelos apenas começaram. Vai mancebo, vai...

Neste instante o moço desaba entre prantos e lamentos convulsos. Ajoelhando, implora-lhe por socorro. O velho, erguendo sua bengala, aponta-a para o sol, que naquele instante alagava tudo com sua luz. Em seguida levanta-se e sai andando, sendo logo ofuscado pelo brilho do Astro Rei. O jovem segue no seu encalço e também desaparece na confusão da claridade.

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