B. Lopes foi, decerto, e cumpre dizer, do melhor modo, um poeta de boa fé. Fazia versos íntima e essencialmente, a valer. Pertencia à categoria dos prosadores e rimadores — bem menos numerosos do que parece — que o são, de verdade. A poesia “estava” nele, não por simples deliberação ou propósito da sua parte, mas pela mais espontânea das manifestações, quer do sentimento, quer da vontade. Os versos vinham-lhe de dentro quisesse ele ou não realizá-los. Aquilo tinha que ser assim e não podia ser de outra maneira. Não houve, por isso, poeta mais verídico, mais leal consigo mesmo. Por isso, também, ele devia sofrer terrivelmente. As tão apregoadas incoerências ou antagonismos declarados entre a veracidade prática, à vista de toda a gente e as que por força lhe queriam notar — e provar — sem dúvida lhe infligiriam contínuos e atrozes tormentos. Pretendiam fazê-lo passar nada menos que por hipócrita, mentiroso. Atiravam-lhe, como uma falsidade ignominiosa, o fato de usar gravatas à La Valliàre, abertas em borboleta, de cores espaventosas e que, de mais a mais, há bastante tempo ninguém gostava. Outra forma de anacronismo irritante vinha das polainas, como se Guimarães Passos devesse ter sido o último janota a ostentá-las. Não se permitia, não se tolerava semelhante atentado ao gosto, às leis efêmeras e, por isso mesmo, soberanas, da Moda. O que, sobretudo, se não admitia era a pretensão de se fazerem belos versos, andando-se tão mal vestido, isto é: aquela antiquada e singular maneira. Ou uma coisa, ou outra! E, ainda por cima, B. Lopes, com o seu ordenado de funcionário dos correios, levava uma existência noturnamente de aperturas, de privações... Laborioso e cumpridor das suas obrigações, nem boêmio chegava a ser.
O pior dano, portanto, era aquele que
as suas rimas, tão ricas, conforme a qualificação outrora dada aos cultores da
alta métrica e do ritmo de pura sonoridade, causavam ao desventurado artista de
“Sinhá Flor”. Todas as graças, todas as opulências lhe eram conferidas, menos aquela.
E assim B. Lopes, nem sempre, mas muitas vezes, só por trazer as solas um tanto
gastas e com biqueiras de feitio um tanto atrasado, sentiria pesar-lhe em cima
de todo o seu talento alguma coisa semelhante a uma condenação. Os poetas
mesmos — e só por isso — desprezavam ou faziam como se desprezassem a esbelteza
das suas estrofes e a desenvolta veemência da sua inspiração. Todos os seus
versos, sem exceção, fosse esta devida à carência de melodia, fosse à
indigência das palavras, cuidavam de coisas finas e caras, infalivelmente
preciosas. Falavam de toda sorte de joias, inclusivamente as heráldicas;
lidavam com sedas, veludos, rendas e, acerca destas, citavam os tipos mais
raros e mais leves, com as suas mais eruditas designações... O luxo mais refinado
passava por entre os seus decassílabos, tão familiar e asadamente, como se
nunca tivesse visto senão anéis de duquesa, brincando com aros refulgentes e
lavrados no metal mais puro. Não mentia, porém, B. Lopes, nem por um momento
lhe ocorreria a ideia do artifício existente em outros versos ou em outros
autores. É que intrínseca, autêntica, profundamente, de alma e de coração, B.
Lopes era sincero.
Por: João Luso
Revista
da Semana, 3 de setembro de 1949.
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