12/08/2018

Aspectos biográficos de Almeida Garrett



Aspectos biográficos de Almeida Garrett


João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett, primeiro visconde de Almeida Garrett, e primeiro poeta peninsular depois de Luís de Camões, nasceu na cidade do Porto a 4 de fevereiro de 1799, — segundo a sua certidão de idade, e a confissão de alguns escritores vivos e falecidos, aos quais se deve prestar toda a consideração, e os quais trataram diretamente com ele, na infância e na adolescência, nas terras mais notáveis do reino e ilhas adjacentes, como Angra do Heroísmo, Lisboa, Porto e Coimbra, onde estudou até os princípios do ano de 1822; e também no estrangeiro durante os desterros que sofreu, pela simples culpa de pugnar pela causa da liberdade, quando viu seu brilho quase ofuscado pela nuvem pavorosa do despotismo, que se desdobrava rápida sobre ela, e a toldou por fim completamente; perseguindo sanhuda e temível, os seus dignos apóstolos, e arremessando-os pelo direito da força, além dos marcos da pátria.

Entre os diferentes literatos que têm publicado retalhos da vida do grande poeta (porque completa não me consta que se tenha publicado até hoje) encontram-se tantas divergências na data do nascimento, que hesitei fortemente para me decidir a encher as linhas, que deixara em branco ao principiar estes insignificantes estudos. São tais esses anacronismos como os que vou citar; uns assinados por penas vantajosamente respeitadas no campo das letras, outros anônimos, que asseveram ter nascido Almeida Garrett em 1798, 1801, 1802, e ainda em 1804; datas absurdamente imaginadas ou tiradas de documentos duvidosos, e não escritas à vista da certidão do batismo do poeta, que está exarada num documento histórico, concebido nestes termos:

João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett nasceu no Porto a quatro de fevereiro de mil setecentos noventa e nove, e foi batizado na igreja Paroquial de Santo Ildefonso, no dia dez do mesmo mês e ano.

Os escritores que estão em verdadeira harmonia com a citada certidão, aos quais aludi acima, são os senhores Latino Coelho num esboço da infância de Garrett, que publicou em espanhol no primeiro volume da Revista Peninsular, Gomes de Amorim, nos seus Cantos Matutinos, e Inocêncio Francisco da Silva, no terceiro volume do seu Dicionário Bibliográfico, que veio engrandecer imensamente a erudição dos constantes ledores do antigo Barbosa Machado.

Foram pais de João Baptista de Almeida Garrett, Antônio Bernardo da Silva Garrett, fidalgo cavaleiro da Casa Real, fiscal-mor da selagem da Alfândega do Porto, e D. Ana Augusta de Almeida Leitão, filha dum abastado negociante, acionista e deputado da poderosa companhia dos vinhos do Alto Douro. Sua família era oriunda dum condado de Irlanda e de mui remota ascendência, que tendo sido perseguida por seus naturais por causa de questões de política ou de religião, andou peregrinando muitos anos sem pão nem abrigo certo, por várias terras da Europa, como tantas famílias desgraçadas, a quem os partidos políticos e seitas religiosas tem feito morrer ao desamparo entre corações estranhos.

Experimentando sempre a mais inconstante fortuna durante essa larga e dolorosa peregrinação, e achando-se finalmente em Espanha, a desolada família resolveu-se a transpor as fronteiras de Portugal, e veio no séquito que acompanhou a Lisboa a rainha D. Mariana Vitória, esposa de el-rei D. José primeiro, e filha de D. Maria Ana de Áustria, e de D. Philippe V. Pouco depois de entrar em Portugal, foram estes infelizes residir para o Porto.

Depois passou esta família às ilhas dos Açores, guiada não sei porque felicidade ou desventura, e aí nasceu então Antônio Bernardo, pai do nosso poeta. Voltando Antônio Bernardo para o Porto, aí foi contrair os laços matrimoniais com a virtuosa filha do respeitável negociante portuense. Adquirindo por esta vulgar circunstância uma fortuna sofrível, nasceu João Batista de Almeida Garrett no seio das melhores comodidades que podem ser ambicionadas pelo homem que surgiu no mundo, envolto num sudário de dores e agonias, como o que velara o nascimento de seu pai no íntimo de sua família, ainda pouco feliz, e fortemente magoada com a viva lembrança do querido ninho pátrio, de onde mãos traidoras a tinham rechaçado. Mas por fim os perfurantes esgalheiros do exílio haviam-se tornado suaves, para esse resto dos membros da estirpe irlandesa.

Quando João Batista começava a soltar dos lábios tenros e engraçados as primeiras modulações de criança, achava-se este pequeno torrão de Portugal, descansado sobre a mais plácida e firme tranquilidade, mas apenas principiou a pronunciar claramente as vulgaridades familiares, foi surpreendido por uma nuvem negra e aterradora, que se desdobrava sobre os horizontes portugueses, e por uns sons ecoantes, completamente ignorados pelos seus ouvidos de menino. Era o troar purificante dos canhões franceses, acesos pela raiva ambiciosa de Napoleão I, que já destruíra então os primeiros torreões erguidos nas fronteiras de Portugal, para derramar sacrilegamente o sangue de nossos avós, e coligado com a fanfarrona Espanha obrigá-los a fechar seus portos aos ingleses, prender os que habitassem em terras portuguesas e confiscar-lhes os bens que possuíssem; mas reagindo o governo português contra as despóticas medidas do César moderno, entrou em Portugal uma poderosa divisão do exercito francês e alguns espanhóis comandada pelo general Junot, obrigando o príncipe regente D. João, a sair as águas do Tejo com toda a família Real, demandando as terras de Santa Cruz. Avançando iracunda e sedenta sobre Portugal, essa legião destruidora de guerreiros esfaimados, pisando com o maligno coturno tudo que encontrava na passagem que operava nas veigas portuguesas, saqueando tudo aquilo a que podia lançar as garras ambiciosas, violando os santos lares das famílias, e cevando a bruta sensualidade à viva força nas donzelas, enquanto outros assassinavam seus desgraçados pais a ferro e fogo, foi acampando de monte em monte, de descampado em descampado, e de povoação em povoação, esperando que Portugal se resolvesse a dar apoio ao sistema continental, que Napoleão concebera criar naquele cérebro eivado de malvadez, avareza estulta e ambição de governar o mundo!

Tinham passado apenas dez anos sobre a cabeça jovem do nosso poeta, onde amadurecia um estro excepcionalmente fogoso que o devia levar mais tarde sobre suas asas possantes ao apogeu da glória, a esse término imensurável da imoralidade, onde subira já, havia perto de três séculos, o inspirado cantor do esforçado Gama, o grande capitão rival de Cristóvão Colombo, e parece que descendente dos cartagineses, os mais ousados navegadores da antiguidade, que como disse o nosso Homero, meteu frotas altaneiras

"Por mares nunca dantes navegados."

e erguendo seus olhos magnéticos e penetrantes onde fulgia o astro brilhante da inteligência, que reverberava no rosto azul do céu; ergueu-os para as alturas imponentes que se desenrolavam em dilatada extensão entre Minho e Douro, viu tremular ao som dos ventos pátrios a bandeira das águias imperiais, hasteada pelas tropas do orgulhoso e detestável Corso, que mandara abater a das Quinas de Ourique, outrora tão respeitada por todo o universo, como a imagem dum Deus de bondade, que rege os céus e a terra, empunhando na destra a compaixão divina para galardoar os seus eleitos, e a anátema na Sinistra para aniquilar os filhos dissolutos, depravados e avaros, renegadores da religião que Ele nos deixou escrita por seu próprio punho, e com o seu divino sangue.

Apoiado à mão de seu pai, que tremia da próxima perda da independência nacional, encarou sumamente admirado, esses horizontes afogueados e desconhecidos, que anunciavam uma tempestade horrorosa em todo o país, que o devia tornar num lago de sangue, e deixando escapar do peito inocente e frágil, um destes suspiros que parecem pretender arrancar o coração sofredor, e arremessá-lo ao lodo mundanoso, sobre o bafo indomável da íntima agonia, perguntou a Antônio Bernardo, o que simbolizavam tantos homens dum aspecto tão singularmente diferente daqueles que sempre vira, quando ainda conchegado aos seios de sua mãe, tão risonhos e pacíficos sob a fleuma da mais pura tranquilidade nacional; qual a sua procedência, e o motivo porque toda a cidade estava agitada. Antônio Bernardo chorou de gozo e de dor nessa ocasião; de dor, por ver a pátria do seu berço invadida por estrangeiros, e de gozo, ao escutar as discretas e aflitivas observações da criança. Como bom pai que era, elucidou João Batista o melhor que puderam conseguir os seus lábios trêmulos, com o susto que infundia em seu ânimo, a legião de invasores bárbaros. Contou-lhe que tal gente, com a fúria indomada espalhada nos rostos crestados pelos sóis ardentes, era inimiga da pátria; aquela cor denegrida que causava pânico e fazia lembrar as fúrias infernais, era produzida pelo fumo despargido nos acampamentos durante carniceiros combates e lambedoras fogueiras acesas no campo durante os dias de descanso e o traçar de planos de guerra desde o Sena até ao Douro caudal, e turvo, e mais pavoroso ainda com o sangue vertido em suas longas margens que logo se juntava ao séquito fúnebre de suas extensas águas. A criança começou a soluçar abraçada a seu pai, e ainda perguntou se lhe matariam a sua mãe; e recebendo a imprudente afirmação da pergunta inocente, correu a lançar-se nos braços da carinhosa Ana Augusta, sua mãe beijando-a e dizendo que fugisse porque a queriam matar, e a seu pai também. A mãe buscou tranquilizá-lo, abraçando-o e cobrindo-o de beijos, e contrariando bastante a seu pesar as palavras do esposo que amava em extremo, e assim pôde restituir-lhe o sossego habitual e tirar-lhe da lembrança a devastadora expedição, que abafava as palavras indignadas que os portugueses buscavam proferir contra o causador de tantas misérias que já vinham perto oprimi-los, após tanto sangue espadanado para se apossarem dos haveres daqueles que haviam empregado toda a sua vida nas penosas lidas que Deus nos deixou para tirarmos delas o sustento do corpo e do espírito. Até Garrett, havia tão pouco desprendido do berço que o vira nascer, já soluçava e vertia lágrimas sobre o profanado altar da pátria! Pobre inocente! Tão tenro ainda e já sofria tanto, de ver o seu berço calcado por tiranos useiros da força bruta! Era Deus que lhe iluminava o espírito infantil, e o fazia compreender as cruas dissensões dos homens; corações empedernidos, que intentam fechar na mão infame e avara as redondezas desse orbe incomensurável, e constituírem-se dominadores bárbaros de toda a humanidade.

Nestas horas de agonia
Grata consolação é ver unidos
No funeral da pátria, os que inda podem
Carpi-la bem sem remorso e sem vergonha.

Na tua idade
Respeitam-se os anciãos, ouve-se e aprende-se
Mancebo escuta. Libertar a pátria
E dar pelo resgate a própria vida
Não é mais que dever, grande heroísmo,
Ações de glória nisso não as vejo.

 
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Domingos Manuel Fernandes
Biografia político-literária do Visconde de Almeida Garrett (Lisboa, 1873)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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