Se todos os poetas fossem
botânicos, naturalistas...
Houve um deles e dos nossos
melhores, que muito bem conhecia botânica. E fez justiça às rosas. Desmentiu o
injusto e popular provérbio de que não há rosas sem espinhos. Foi Emílio de
Menezes.
Outro dos nossos vates imortais e
que aí o temos em pleno esplendor do seu estro, cantou e defendeu as cigarras,
tão mal vistas na célebre fábula em que se faz o elogio da formiga.
Emílio de Menezes não teria ignorado
que a não ser a rosa inocente e suas irmãs, assim, sem malícia, são, às vezes,
as flores perversas e traiçoeiras. Iguais a mulher, há as que têm sempre
seguidas intenções quando se perfumam e se enfeitam de cores fascinantes.
Não sei se La Fontaine fora
realmente naturalista. Mas as suas relações com as formigas, a ponto de
apresentá-las como exemplo do trabalho honesto, menosprezando as pobres
cigarras cantadeiras, não foram muito exigentes. E teve muita razão Olegário
Mariano quando colocou a formiga no seu devido lugar. O assalto à propriedade alheia,
à seara dos agricultores, às flores tenras das árvores indefesas, é obra das
formigas. Na família há até as que atacam o homem.
E o poeta dizia da formiga:
...geralmente malquista,
Faltam-lhe uns sentimentos nobres.
É em demasia egoísta,
E odeia as raparigas que são pobres.
E a seguir, da cigarra:
Dona Cigarra, por exemplo, alheia
A tudo, vive como pode, à toa...
Tem a garganta quase sempre cheia
E quase sempre o estômago vazio.
Entretanto, coitada! É humilde e boa.
Não há longo tempo, as formigas
atacaram um povoado.
Já há muito, conheciam-nas o
homem do interior. João Decker, naturalista patrício, em seu magnífico livro
“Aspectos Biológicos da Flora Brasileira", fala-nos a respeito, referindo-se
a imbaúba. O tronco é formado de anéis e oco, dividido em grandes câmaras por
meio de diafragmas transversais, onde habitam as formigas astecas. São extremamente
belicosas.
O matuto conhece a imbaúba pelos
nomes de “pau com formiga" ou “pau do novato”, e a razão de assim chamá-la
está ligada à história divertida do que sempre acontece ao sertanista
começante. Arma a rede presa a seu tronco. De súbito, em meio da noite, caem-lhe
sobre o corpo milhões de astecas e o novato acorda quase devorado.
O nome de “pau com formiga” passou
para a gíria popular com variados significativos. É, por exemplo, qualquer tarefa
perigosa, uma temerária aventura galante, algo difícil ou arriscado. Pouca
gente, porém, sabe de sua origem.
Emílio de Menezes falou das rosas
sem espinhos no seu memorável discurso quando ingressou na Academia Brasileira
de Letras. Não se referiu, no entanto, talvez por ser mais poeta que botânico, às
suas irmãs perigosas.
É mesmo às flores que desejo aludir...
Há as traiçoeiras, que aprisionam
os seus apaixonados. E só os libertam quando não precisam mais deles.
Armam-lhes verdadeiras ciladas com o fascínio do colorido, a tentação do aroma.
Há uma numerosa família dessa espécie em que se destaca a aristolochia inibria, vespas pequeninas e moscas silvestres. E, é
ainda João Decker quem nos conta, o cheiro não agrada o homem, mas seduz os
namorados da flor, em que o limbo é, todavia, de bonito colorido, em roxo púrpura
sobre amarelo fosco.
Um namorado pousa nervoso,
agitando as asas douradas. Rodopia sobre a flor e penetra imediatamente na
fauce, no tubo cololíneo, coberto de pelos em posição oblíqua. Cedem os pelos ao
toque leve do inseto, consentindo livre caminho, mas dificultando qualquer
movimento de retorno porque se erguem em seguida e formam barreira
intransponível. Ao mesmo tempo, secretam óleo escorregadio para faltar o apoio
ao prisioneiro que vai fatalmente cair num abismo onde não entra a luz. O tubo
cololíneo tem uma certa claridade que faz o inseto prosseguir na ânsia de
enganadora liberdade.
Debate-se ele agora. Agita as
asas. Vai de encontro às paredes. Os estigmas da flor estão estendidos. As anteras
fazem, então, cair sobre ele uma verdadeira chuva de pólen. A prisão dura o
tempo necessário para os estigmas serem polinizados. Depois, a entrada estreita
da prisão relaxa-se na sua rigidez inicial. Um raio luminoso mostra-lhe o
caminho da saída. E se assim o quis, saboreou ainda o inseto, o néctar que lhe
foi oferecido em compensação.
Um ou outro apaixonado fica, no
entanto, exausto, na tentativa para libertar-se e paga com a vida a aventura
amorosa.
Emílio de Menezes, conhecedor de botânica,
defendeu as rosas, mas não disse nada quanto às flores traiçoeiras. Foi poeta,
antes de tudo. La Fontaine não teria conhecido bem as formigas... E Olegário
Mariano, não sendo naturalista, defendeu com brilho as cigarras cantadeiras,
mas não traçou o libelo completo contra as burguesas e tremendas formigas. Podê-las-ia
chamar, ainda, de assassinas e até de antropófaga!
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MAURO CARMO
Jornal "A
Noite", 8 de setembro de 1953.
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