2/26/2019

Ingratidão (Conto), de Leon Tolstoi


Ingratidão
(Parábola)

Em tempos que vão longe, existiu um homem de avançada idade, cujo mais vivo desejo era fazer bem ao próximo. Então pôs-se a refletir na maneira de atingir esse fim, de modo que todos se beneficiassem. E assim pensava: “Se se dá de mão para mão, não se sabe a quem dar mais nem a quem dar menos; ademais, como se não pode dar a todos, os que nada tiverem dirão: por que deste aos outros e não a nós?”

Eis, então, o que o bom homem resolveu fazer...

Escolheu um espaçoso terreno por onde passava muita gente, e fez construir ali uma espécie de hospedaria, e nela juntou tudo o que poderia ser útil aos homens ou que lhes desse prazer... Havia grandes quartos, bons fogões, guarnecidas dispensas, cestas cheias de pães de todo o tipo e gôndolas onde estavam reunidos legumes, chá, açúcar, massas e grande variedade de alimentos. Ainda havia na casa leitos, vestidos, roupas brancas, tudo aquilo de que o homem pode ter necessidade. As provisões ali postas eram suficientes para mais de cem pessoas.

E o bom homem pensava: “Os viajantes viverão aqui o tempo que quiserem, comerão, levarão o que lhes for necessário e eu renovarei as provisões, à medida que se forem consumindo”.

Assim fez: organizou tudo ele próprio e afastou-se, esperando os acontecimentos.

Pessoas honestas começaram então a frequentar a hospedaria. Bebiam, comiam, passavam uma noite; algumas ficavam dois dias, outras uma semana. Muitos muniam-se de vestuário e punham as coisas restantes nos seus respectivos lugares para que outros delas pudessem fazer uso. E ninguém partia sem primeiro abençoar o desconhecido benfeitor.

Esse estado de coisas durou enquanto à hospedaria só vinha gente pacífica e ordeira. O benfeitor substituía o que se ia gastando ou iam levando os viajantes e se alegrava com as suas boas ações.

Um dia, porém, chegaram à hospedaria uns homens brigões, encrenqueiros e maus. Puseram-se logo a comer, a beber, a roubar tudo o que havia, e depressa surgiram desavenças entre eles — cada um queria tudo apenas para si. Das injúrias vieram as pancadas — arrancaram uns aos outros o que tinham pilhado e no seu furor se puseram a destruir tudo para que nada ficasse a ninguém.

Quando tudo foi destruído e tudo roubado, começaram a sentir frio e fome. E vieram então as reclamações contra o dono da casa, por ter arranjado as coisas sem a devida ordem. Por que não estabelecera um guarda no local? e por que deixara entrar a canalha? Falavam uns dos outros e havia entre eles quem afirmasse não ter dono a estalagem e ter ela se formado por si, sem auxílio de quem quer que fosse.

Toda essa gente viveu assim um dia, dois dias, três dias... Depois, esfomeados, tiritando de frio, foram-se embora, odiando-se mutuamente e amaldiçoando a hospedaria e quem a edificou.

***

Da mesma forma se comportam os homens neste mundo. Estragam as suas vidas e as dos outros, mas não se lembram de lançar as culpas sobre si — não veem que as suas próprias vidas são más, mas blasfemam uns dos outros e alguns de Deus, acusando-o de ter feito mal ao mundo.

Os homens precisam compreender que o mundo não se organizou de per si e que Deus o fez para o bem deles. O mundo é mau para os maus.

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Tradução: Erasmo de Tarso.
Illustração Pelotense, 1 de março de 1921.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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