Sarah... Sarah... toma o teu
anel enfeitado de coral e guarda-o.
Abre uma cova na terra, tão
funda como os meus sofrimentos e negro como os teus olhos; tira esse vestido vermelho
e tuas anáguas de seda azul e veste o sujo farrapo da boemia errante; desfaz
tuas tranças de ébano desatando o fio de moedas falsas que as enovelam; despe
teus pezinhos das chinelas trançadas; desapareça de ti a formosura das filhas
do Tyrol, para tornares-te uma tzigana ruim, transeunte, adereçada com os vistosos
atavios da aldeia, e segue-me; foge comigo, vamos sem demora. Iremos... iremos
ao meio-dia, ali onde a laranjeira floresce e o horizonte formoso não se reduz
aos céus opacos e aos álamos brancos das montanhas de Voralverg. Quero-te tanto!
Não sabes que queimaram o
nosso lar? Onde o teu berço te acalentou o vento de amanhã varrerá cinzas. Já
não temos teto que detenha os espanadores nevados do inverno, nem ao calor do
lume do lar cantaremos as endechas das histórias do país natal. Nós outros não
devemos ter pátria nem lar! Melhor, melhor... nosso lar é nômade; hoje será a
cova dum caminho, amanhã o umbral duma porta estranha, passado... será um palmo de terra capaz só para cobrir um
corpo! Por pátria o mundo, por que não?
o mundo inteiro! Sim, o mundo todo! até
que a minha raça acabe! Vem, Sara,
vem... segue-me, não volvas atrás o rosto, que ali ficam os que nos lançam à intempérie;
se te conhecessem virgem e formosa te ultrajariam, e isso nunca, enquanto Ivan
tenha sangue em suas veias e um bordão rijo como um bastão!
Estás cansada, coitadinha! de
andar descalça! Ouve, Sara, ouve cá. Não sabes o sonho de um homem agonizante
ao golpe dos que nos repelem? Escuta, vou referir-to, mas não te entristeças;
ri!... ri ao ouvi-lo, que é uma lição de moral.
Cansado um tzigano de fugir
sem rumo, sem um pedaço de pão no alforje, sem um ceitil no lenço sentou-se numa
pedra, à entrada duma rica cidade. Daí a pouco tempo uma formosa mulher de tez
branca, não morena como a tua, passou por ele. A sua formosura pasmou-o e em
lugar de pedir-lhe dinheiro, o louco pediu-lhe amor.
Amor! e a quem? Ela respondeu-lhe
rindo, e apartando-se com asco de seus farrapos, disse-lhe “ali me esperam; ali
estão os que eu amo!" E assim dizendo foi beijar nos carrinhos as crianças
que brincavam atirando-se bolas de neve numa praça vizinha. Era a felicidade! Outra
mulher passou, mais formosa ainda, por seus ricos vestidos e trem faustoso. — E tu amar-me-ás? perguntou-lhe o tzigano.
"Afasta-te importuno, afasta-te e não estorves o meu caminho; não vês que
me esperam os que eu amo?" E fugiu até uma mansão que a luz inundava e onde
deitavam as cartas homens imensamente ricos. Era a Fortuna. Outra mulher
surgiu, bela também e cantando e rindo, como uma jovem ébria. — Tu, sim, me amarás disse-lhe o tzigano — mas
ela viu-o andrajoso, riu de desdém e disse-lhe: "Eu não amo em verdade
senão aquele que escreve façanhas ou versos em letras de câmbio." E seguiu
até chegar ao átrio de soberbo palácio. Era a Glória. O tzigano chorava por
ver-se desdenhado, com a cabeça caída entre
as mãos, até que sentiu que alguém o tocava e ergueu-se. Eram três mulheres :
duas jovens, uma faladeira decidida, de ademanes risíveis e outra muda, com o
cabelo solto e vestida de preto; a terceira, velha e de olhar perscrutador. “Somos,
disse esta, Loucura, a Tristeza e a Morte, e amamos aos que nos amam; sou eu a última
que amo porque gosto de amar eternamente, por isso sou sempre a última a
caminhar; o que ama a Sorte, a Fortuna, ou a Glória, conclui por desdenhá-las e
amar a Loucura ou a Tristeza, enquanto eu chego. O amor destas condu-lo ao meu.
Só em mim está tudo; fora de mim tudo é nada; eu sou a negação inevitável e a inevitável
noiva. A Sorte ao infinito aflige; a Fortuna enfastia e a Glória cansa, nada
são sorte, fortuna e glória, enquanto não as altera a dor, o desejo ou a ilusão.
Com quem agora decides? a qual de nós tu amas?" E ele sentiu o beijo da
tristeza vagar em seus lábios, amando em segredo a noiva do eterno amor!
No dia seguinte um corpo meio oculto
pela neve, amanheceu nos arrabaldes da cidade!
Mas, vamos; vamos andando que eles
vêm!... Não me segues? Onde estás ... Já... já... já te hão colhido? Sara!...
Sara minha... perdi-te!
E Ivan, rindo, chorava detrás
da grade de ferro da seção de loucos do hospício, pensando em sua filha, enquanto
não chegava a noiva do amor eterno...
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Tradutor desconhecido.
Tradutor desconhecido.
O Pharol, 13 de maio de 1894.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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