2/22/2019

Ivan, o louco (Conto), de Leon Tolstoi



Ivan, o louco

Sarah... Sarah... toma o teu anel enfeitado de coral e guarda-o.

Abre uma cova na terra, tão funda como os meus sofrimentos e negro como os teus olhos; tira esse vestido vermelho e tuas anáguas de seda azul e veste o sujo farrapo da boemia errante; desfaz tuas tranças de ébano desatando o fio de moedas falsas que as enovelam; despe teus pezinhos das chinelas trançadas; desapareça de ti a formosura das filhas do Tyrol, para tornares-te uma tzigana ruim, transeunte, adereçada com os vistosos atavios da aldeia, e segue-me; foge comigo, vamos sem demora. Iremos... iremos ao meio-dia, ali onde a laranjeira floresce e o horizonte formoso não se reduz aos céus opacos e aos álamos brancos das montanhas de Voralverg. Quero-te tanto!

Não sabes que queimaram o nosso lar? Onde o teu berço te acalentou o vento de amanhã varrerá cinzas. Já não temos teto que detenha os espanadores nevados do inverno, nem ao calor do lume do lar cantaremos as endechas das histórias do país natal. Nós outros não devemos ter pátria nem lar! Melhor, melhor... nosso lar é nômade; hoje será a cova dum caminho, amanhã o umbral duma porta estranha, passado... será  um palmo de terra capaz só para cobrir um corpo! Por pátria o mundo,  por que não? o mundo inteiro! Sim,  o mundo todo! até que a minha raça  acabe! Vem, Sara, vem... segue-me, não volvas atrás o rosto, que ali ficam os que nos lançam à intempérie; se te conhecessem virgem e formosa te ultrajariam, e isso nunca, enquanto Ivan tenha sangue em suas veias e um bordão rijo como um bastão!

Estás cansada, coitadinha! de andar descalça! Ouve, Sara, ouve cá. Não sabes o sonho de um homem agonizante ao golpe dos que nos repelem? Escuta, vou referir-to, mas não te entristeças; ri!... ri ao ouvi-lo, que é uma lição de moral.

Cansado um tzigano de fugir sem rumo, sem um pedaço de pão no alforje, sem um ceitil no lenço sentou-se numa pedra, à entrada duma rica cidade. Daí a pouco tempo uma formosa mulher de tez branca, não morena como a tua, passou por ele. A sua formosura pasmou-o e em lugar de pedir-lhe dinheiro, o louco pediu-lhe amor.

Amor! e a quem? Ela respondeu-lhe rindo, e apartando-se com asco de seus farrapos, disse-lhe “ali me esperam; ali estão os que eu amo!" E assim dizendo foi beijar nos carrinhos as crianças que brincavam atirando-se bolas de neve numa praça vizinha. Era a felicidade! Outra mulher passou, mais formosa ainda, por seus ricos vestidos e trem faustoso.  — E tu amar-me-ás? perguntou-lhe o tzigano. "Afasta-te importuno, afasta-te e não estorves o meu caminho; não vês que me esperam os que eu amo?" E fugiu até uma mansão que a luz inundava e onde deitavam as cartas homens imensamente ricos. Era a Fortuna. Outra mulher surgiu, bela também e cantando e rindo, como uma jovem ébria.  — Tu, sim, me amarás disse-lhe o tzigano — mas ela viu-o andrajoso, riu de desdém e disse-lhe: "Eu não amo em verdade senão aquele que escreve façanhas ou versos em letras de câmbio." E seguiu até chegar ao átrio de soberbo palácio. Era a Glória. O tzigano chorava por ver-se desdenhado, com a cabeça caída  entre as mãos, até que sentiu que alguém o tocava e ergueu-se. Eram três mulheres : duas jovens, uma faladeira decidida, de ademanes risíveis e outra muda, com o cabelo solto e vestida de preto; a terceira, velha e de olhar perscrutador. “Somos, disse esta, Loucura, a Tristeza e a Morte, e amamos aos que nos amam; sou eu a última que amo porque gosto de amar eternamente, por isso sou sempre a última a caminhar; o que ama a Sorte, a Fortuna, ou a Glória, conclui por desdenhá-las e amar a Loucura ou a Tristeza, enquanto eu chego. O amor destas condu-lo ao meu. Só em mim está tudo; fora de mim tudo é nada; eu sou a negação inevitável e a inevitável noiva. A Sorte ao infinito aflige; a Fortuna enfastia e a Glória cansa, nada são sorte, fortuna e glória, enquanto não as altera a dor, o desejo ou a ilusão. Com quem agora decides? a qual de nós tu amas?" E ele sentiu o beijo da tristeza vagar em seus lábios, amando em segredo a noiva do eterno amor!

No dia seguinte um corpo meio oculto pela neve, amanheceu nos arrabaldes da cidade!

Mas, vamos; vamos andando que eles vêm!... Não me segues? Onde estás ... Já... já... já te hão colhido? Sara!... Sara minha... perdi-te!

E Ivan, rindo, chorava detrás da grade de ferro da seção de loucos do hospício, pensando em sua filha, enquanto não chegava a noiva do amor eterno...


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Tradutor desconhecido.
O Pharol, 13 de maio de 1894.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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