2/26/2019

Um juiz a Salomão (Conto), de Leon Tolstoi


Um juiz à Salomão

(Apólogo)

O emir de Argel, Bauakas, quis averiguar por si mesmo se era certo que na capital da sua província havia um juiz dotado de tão extraordinária habilidade, que, infalivelmente, descobria a verdade, não existindo tratante algum que houvesse logrado vender-lhe gato por lebre.

Bauakas disfarçou-se em mercador e se dirigiu à cidade em que residia o juiz. Ao acercar-se dela, um mendigo aproximou-se do emir e pediu-lhe uma esmola.

Bauakas deu-lhe algumas moedas, e dispunha-se a seguir o seu caminho, quando o mendigo o deteve.

— Que me queres? já não te dei uma esmola?

— Sim já ma deste. Porém, faze-me o favor de levar-me sobre o teu cavalo até a praça da cidade, para que os camelos e os cavalos não me estropiem.

O emir o fez subir para a garupa e assim chegaram ambos à praça. Bauakas fez parar o cavalo, e vendo que o mendigo não se apeava:

— Então, que esperas? Desce, que já somos chegados.

— Por que me hei de eu apear — bradou o mendigo, em voz alta — se o cavalo é meu? Vamos ao juiz e lá decidiremos a questão, se de bom grado não mo queres entregar.

A multidão que os rodeava, ouvindo a discussão, bradava:

— Sim, sim! Ide onde está o juiz, que porá tudo às claras.

E não houve remédio: o emir e o mendigo compareceram diante do juiz.

Antes que lhes chegasse a vez, o juiz chamou à sua mesa um sábio e um mercador. Ambos disputavam a mesma mulher, dando se cada qual o direito de propriedade sobre ela.

Depois de ouvi-los, o juiz disse:

— Deixai a mulher aqui, e voltai amanhã.

Seguidamente, entraram um açougueiro e um fabricante de azeite, aquele coberto de sangue e este de manchas de azeite. O açougueiro tinha dinheiro em uma das mãos e o vendedor de azeite agarrava-o pelos pulsos.

Dizia o açougueiro:

— Eu comprei azeite a este homem, puxei a bolsa para pagá-los, quando ele me travou da mão para furtar-me, e viemos à tua presença, eu segurando a minha bolsa, ele agarrando-me o pulso.

— Não é verdade, contestou o outro; este açougueiro veio comprar-me azeite, pediu-me que lhe trocasse uma moeda de ouro, subtraiu-me o dinheiro que pôde, e dispunha-se a fugir, quando eu o agarrei e trouxe aqui.

Ao que respondeu o juiz:

— Deixai o dinheiro e voltai amanhã.

Bauakas, por sua vez, contou o que lhe havia acontecido com o mendigo. O juiz, como fizera com os outros, escutou-os a ambos, e, ordenando-lhes que deixassem o cavalo, disse-lhes que voltassem no dia seguinte.

À hora marcada, grande era o concurso do povo curioso por conhecer as decisões do juiz.

Chegaram primeiro o sábio e o mercador.

Disse o juiz ao sábio:

— Retira-te e conduz tua mulher. E ao teu adversário, que lhe deem cem açoites.

Depois, ao açougueiro:

— O dinheiro é teu.

E apontando para o vendedor de azeite:

— A este, que lhe deem cinquenta açoites.

Chegou a vez a Bauakas e o mendigo.

— Reconhecerias o teu cavalo entre outros vinte?

— Sim.

— E tu? — perguntou ao mendigo.

— Também.

— Então, sigam-me.

Dirigiram-se à praça. O emir reconheceu imediatamente o cavalo e o indicou. O mendigo assinalou o mesmo animal.

Voltando os três à sede do magistrado, mandou ele que o emir levasse o cavalo, e que ao mendigo aplicassem cinquenta bastonaços.

Quando se retirou toda a turba e ficaram sós Bauakas e o juiz, perguntou-lhe este:

— Que mais queres? Não ficaste satisfeito com a minha sentença?

— Completamente. Somente desejaria que me dissesses como averiguaste que a mulher era do sábio e não do mercador, o dinheiro do açougueiro e o cavalo meu.

— Satisfarei a tua curiosidade. Esta manhã chamei a mulher do sábio e lhe ordenei que deitasse tinta no meu tinteiro. Ela tomou o tinteiro, lavou-o muito bem e o encheu sem sujar os dedos e derramar o líquido na mesa. Logo, estava habituada a esse serviço. Se fosse mulher do reles mercador, ou ficaria perplexa ou sujaria as mãos, e poria tinta por toda a parte. Deduzi daí que o sábio tinha razão.

Quanto ao dinheiro, fi-lo depositar em uma caixeta cheia d'água para verificar se sobrenadava algum azeite. Se o dinheiro fosse do vendedor de azeite, forçosamente ele haveria de ter deixado vestígios do líquido nas moedas; e não o tendo deixado, claro que o dinheiro era do açougueiro. O teu caso era mais difícil, porque ambos reconheceram o cavalo, mas notei que, quando o avistaste, o cavalo virou-se para ti festivamente e deu sinais de alegria, o que não fez quando mirou o mendigo. Logo, o cavalo não conhecia a este, e ele mentia, chamando-se à propriedade dele.

Então Bauakas disse-lhe:

— Não sou o mercador, sou o emir Bauakas. Vim até aqui averiguar se era certo o que de ti diziam: estou convencido de que és um juiz honrado e sábio, pede-me o que quiseres.

— Nada quero, emir. As tuas recompensas valem menos do que a certeza que eu tenho de que cumpro o meu dever.


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Folha da Noite, 19 de abril de 1897.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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