2/15/2019

O Corvo, de Edgar Allan Poe (Tradução de 1883)

O Corvo, de Edgar Allan Poe
Tradução anônima de 1883.
Uma vez, lá para a lúgubre meia-noite, enquanto eu meditava, débil e fatigado, acerca de já não sei mais que precioso e curioso livro de uma ciência olvidada, — enquanto reclinava-se-me a fronte, quase que adormecida, de improviso houve um reboliço, como se alguém batesse devagar, à porta do meu quarto: — É alguma visita, disse entre mim, que bate à porta do meu quarto.... Só é isso, e nada mais.

 Ah! distintamente me lembro de que era no glacial mês de dezembro, e cada um dos tições ao apagar-se deitava o seu fantástico reflexo no soalho. Ardentemente eu almejava pela aurora; debalde eu forcejara por tirar dos meus livros algum lenitivo à minha tristeza — à minha tristeza pela minha Lenora perdida, pela preciosa e radiosa virgem a que os anjos chamam Lenora.... E que na terra ninguém chamará nunca mais.

E o aveludado, triste, vago remexer das cortinas purpúreas fazia-me estremecer, enchia-me de terrores até então desconhecidos, de tal sorte que, a fim de acalmar as pulsações do meu coração, ergui-me repetindo: — É alguma visita que quer entrar a porta do meu quarto, alguma visita atrasada que quer entrar a porta de meu quarto... Só é isso, e nada mais.

Naquele momento sentiu-se mais valente a minha alma; por isso, não hesitando mais: — Meu senhor, disse, ou minha senhora, deveras vos peço vênia; mas o fato é que eu estava em modorra, e tão devagar viestes bater, tão molemente viestes bater à porta de meu quarto, que eu mal estava certo de vos haver ouvido. E, então, escancarei a porta.... As trevas, e nada mais.
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Perscrutando profundamente as trevas, permaneci por muito tempo atônito, cheio de terrores, sonhando sonhos que nunca mortal algum se atreveu a sonhar antes de mim! Mas o silêncio não foi interrompido; a imobilidade não deu sinal algum, e a única palavra proferida foi um nome murmurado apenas: Lenora! Era eu quem murmurava tal nome, e o eco respondeu pelo mesmo nome: Lenora!.... Só essa palavra, e nada mais.

Voltando ao meu quarto, e sentindo no peito toda a minha alma a arder, logo depois ouvi uma nova pancada mais forte do que a primeira: — Certamente, disse, certamente há alguma coisa nas gelosias da janela; vejamos o que é, e indaguemos tal mistério; deixemos o meu coração sossegar um instante, e indaguemos tal mistério... É o vento, e nada mais.

Então empurrei a janela, e, subitamente, com um tumultuário bater de asas, entrou um majestoso corvo, digno dos dias que foram. Não fez a mais pequena cortesia, não se deteve, não hesitou um minuto; mas, com os ademanes de um lord ou de uma lady, pousou em uma das portas de meu quarto, pousou num busto de Palas, justamente em uma das portas de meu quarto... Pousou, sentou-se e nada mais.

Então, essa ave de ébano, fazendo sorrir algum tanto a minha tristeza com o seu porte grave e a sua fisionomia severa: — Embora seja calva e depenada a tua cabeça, disse-lhe, não és certamente nenhum covarde, lúgubre e vetusto corvo vindo das plagas da noite. Dize-me: qual é o teu nome senhoril nas plagas da noite plutônica?... O corvo disse: Nunca mais!

Fiquei maravilhado de que o feio volátil entendesse com tanta facilidade a palavra humana, ainda que a sua resposta não tinha muito significado e não explicasse nada; pois, cumpre confessar que nunca ente humano viu por cima da porta de seu quarto uma ave ou animal, num busto esculpido, por cima da porta de seu quarto... Uma ave com tal nome: Nunca mais.

Mas o corvo, pousando solitário sobre o busto, não proferiu mais do que essa palavra, como se a sua alma, nesse único vocábulo, se tivesse exalado inteira. Não proferiu mais coisa alguma, não agitou nenhuma pena até que eu murmurasse sorrateiro: — Outras almas já se foram; lá pela manhã, ele também se despedirá de mim como as minhas esperanças há muito fugidas! Então o pássaro disse: Nunca mais!

Estremecendo ao ouvir a resposta tão bem adequada: Sem dúvida, disse, o que ele está a dizer constitui toda a sua ciência, tudo quanto aprendeu com algum senhor malogrado que a impiedosa miséria perseguiu contínua até que as cantigas suas só tivessem um estribilho, até que o dobre da sua esperança só repetisse este merencório estribilho: Nunca! Nunca mais!

Como, porém, o corvo ainda levasse a minha alma enlutada a sorrir outra vez, de repente levei um assento com almofadas para defronte da ave, do busto e da porta. E, mergulhando-me no veludo, apliquei-me a encadear ideias com ideias, procurando adivinhar o que essa agoureira ave dos dias de outrora, o que esse tristonho, desajeitado, magro e agoureiro pássaro dos dias de outrora queria significar ao grasnar o seu: Nunca mais!

Assim estava eu engolfado no meu cismar, sem dirigir mais nenhuma sílaba ao pássaro, cujos olhos de fogo agora me requeimavam até o íntimo do coração; assim estava eu procurando adivinhar isso e muitas outras coisas, com a fronte reclinada a gosto na almofada de veludo afagada pela luz da lâmpada, naquele veludo roxo afagado pela luz da lâmpada, em que a fronte dela não se reclinará mais... Ah! Nunca mais!

Pareceu-me então que adensava-se o ar, perfumado por um turíbulo invisível que balançavam serafins, cujos passos calcavam levemente a alfombra do quarto. Desgraçado! exclamei, deu-te Deus por seus anjos, enviou-te Deus descanso, descanso e nepentes para suavizar as saudades que tens de Lenora. Bebe, oh bebe a doce nepentes, esse esquecimento da tua Lenora perdida.... O corvo disse: Nunca mais!

— Ah I Profeta, alimária de infortúnio! ave ou demônio, mas sempre profeta! Quer sejas algum mensageiro do Tentador, quer tenhas sido arrojado pela tempestade aqui, a esta terra viúva de encantos, ao fundo deste aposento em que assiste o horror, fala-me sincero. Eu te imploro! Haverá, dize, haverá algum bálsamo da Judeia para a minha dor? Responde, responde-me, eu to suplico.... O corvo disse: Nunca mais!

— Ah! Profeta! alimária de infortúnio! ave ou demônio, mas sempre profeta, por aquele céu que nos encobre, por aquele Deus que ambos adoramos, dize a esta minha misérrima alma se, no Éden longínquo, poderá ela abraçar a uma virgem santa que os anjos chamam Lenora, abraçar a preciosa e radiosa virgem que os anjos chamam Lenora.... O corvo disse: Nunca mais!

— Que esse teu dito seja o sinal da nossa separação, anjo ou demônio, bradei eu, erguendo-me. Regressa à tempestade, volta às plagas da noite plutônica, que aqui não fique uma única das tuas negras penas, recordação da mentira que proferiu a tua alma. Foge desta solidão inviolada, voa para longe desse busto que está acima da minha porta, arranca o teu bico do meu peito, e leva o teu espectro para longe da minha porta O corvo disse: Nunca mais!

E o corvo, imóvel, está sempre a pousar, sempre a pousar em cima do pálido busto de Palas, exatamente em cima da porta de meu quarto, e seus olhos têm toda a parecença com os olhos de um demônio que sonha, e a luz da lâmpada, espalhando-se nele, deita a sua sombra no soalho, — e minha alma, fora do círculo daquela sombra que jaz flutuante no soalho, minha alma nunca mais poderá erguer-se.... Mais nunca! Nunca mais!

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