
Um poeta dos
escravos
Do horror trágico da escravidão
nasceu, na Bahia, em 1830, Luís Gonzaga Pinto da Gama, que veio a ser mais tarde
grande poeta, e grande abolicionista. O período em que a sua alma desabrochou
para a vida, em que o seu espírito lucidíssimo fulgiu, era daqueles que
mergulhavam em trevas, em sangue, em aflições os deserdados da liberdade, nos moirões,
nos potros, nos troncos, nas senzalas, e no mesmo refúgio das capoeiras.

O prefacista dessa pequena
obra-prima do humorismo e da sátira nacional, escrevendo dele, quando ainda
Coelho Neto se achava em Campinas, em março de 1904, disse nas "Duas
palavras sobre Luís Gama...", apensas ao anterrosto da obra:
"Julgam-me os editores deste
livro capaz de síntese tão concentrada que, com dois escassos vocábulos, numa
cunhagem rápida, dê a medalha de Luís Gama, apresentando no verso o poeta, e no
anverso o abolicionista.
É difícil — o mais perfeito
gravador não se atreveria a tal empresa, e não serei eu quem a realize.
A vida do propagandista
intemerato é das que exigem páginas largas, e o poeta é dos raros que, neste
risonho país, onde só o homem é triste, riem francamente.
O seu verso, se não prima pela beleza
da forma, se não cintila em lavores de arte, se a rima, por vezes, é
paupérrima, é leve como a flecha, silva, vai direito ao alvo, crava-se, e fica
vibrando. Satírico, como Gregório de Matos, dando golpes no ridículo, como
Tolentino, Luís Gama trouxe da poesia a audácia que empregou na sagrada
campanha — as cordas da sua lira foram tomadas à um látego.
Que mais hei de eu dizer do herói
se uma página, e acanhada, apenas me concedem? Nem a pequenina medalha consegui
fazer gravando a imagem enérgica do que pede um monumento. O tempo fará justiça".
Infelizmente essa justiça, ainda
não a cumpriu o tempo. Pouca é a porção dos homens públicos que ainda se
lembram, com justeza, da figura inconfundível e inolvidável de Luís Gama. José
Bonifácio de Andrade e Silva admirava-o tanto que lhe dedicou várias poesias,
que hoje fazem parte do livrinho de Luís Gama, por este mesmo reunidas, e com a
explicação de lhe servirem as mesmas de "santelmo" nesta empresa
temerária.
Uma qualidade excepcional integra
a personalidade moral de Luís Gama no real conceito dos verdadeiros homens de
bom caráter, e de bons sentimentos: a da afeição e reconhecimento pelo que lhe
amparou os passos no cativeiro da existência. No seu referido trabalho, pôs Luís
Gama essa dedicatória no frontispício: "A seu Protetor e Amigo o ilustríssimo
e excelentíssimo senhor Desembargador doutor. F. M. S. Furtado de Mendonça,
decano da Faculdade de Direito da Cidade de São Paulo, membro do Instituto da
Ordem dos Advogados, e de outras muitas associações científicas. O. D. C., como
mesquinha prova de profundo reconhecimento, o seu humilde servo — L. G. Pinto da Gama".
Sabe-se que foi esse
desembargador que o iniciou, à sua custa, no curso de ciências jurídicas e
sociais. Durante a sua vida acadêmica, o poeta da Abolição e da mordacidade,
também se distinguiu como um dos mais eloquentes oradores de seu meio. Na
campanha pelo Abolicionismo, foi um dos companheiros de José do Patrocínio e Rui
Barbosa.
Em suas poesias palpita uma
grande alma socialista, como bem se depreende de sua famosa Bodorrada, que é um dos capítulos mais
finos e perfeitos da poesia social contemporânea.
Da sua biografia ressalta que foi Luís
Gama escravo, e conseguiu libertar-se, vindo a ser depois notável advogado,
orador eloquente, como dissemos, e um dos mais devotados campeões na luta
contra a escravidão do homem negro. Faleceu, sem muitos rumores em torno de seu
fulgurante nome, em 1882, mas com a tranquila e serena atitude de um herói da inteligência
e da vontade.
---
EPAMINONDAS DUTRA
Bahia Ilustrada, janeiro de 1920.
Pesquisa, transcrição e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019)
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